terça-feira, 26 de abril de 2016

MACHORKA-MUFF, Jean-Marie Straub & Danièle Huillet, 1963


por Jacques Rivette & Karlheinz Stockhausen

Este curta-metragem de 15 minutos, livremente inspirado em Heinrich Böll, realizado por um jovem francês exilado na Alemanha já há alguns anos, não seria simplesmente o primeiro (pequeno) filme de autor de toda a produção alemã do pós-guerra? A ambição do autor era filmar um “caráter” (no caso, de um ex-oficial superior nazista reencontrando o seu lugar, pouco a pouco, na sociedade adenaueriana), ou seja, mais que um retrato, a “descrição feita do exterior, do caráter de uma pessoa”; e para, junto com Jean-Marie Straub, seguir a citação (de Marmontel): “Quando se pinta uma espécie de homens, como o avarento, o ciumento, o hipócrita, o puritano, o frívolo, não se trata mais de um retrato, mas sim de um caráter; e é isto o que distingue a sátira...” Esta era a ambição de Straub, e ela se encontra aqui completamente concretizada, com uma densidade e um equilíbrio das relações internas que imediatamente solicitam metáforas musicais. É um músico, pois, que toma aqui a palavra: é, numa carta ao autor, Karlheinz Stockhausen, um dos três grandes, com Pierre Boulez e Luigi Nono, da música contemporânea. - Jacques Rivette

“Você sabe muito bem que escolheu o caminho difícil. Eis por que eu lhe escrevo: para que você saiba que realizou um bom trabalho. No domínio do espírito a abundância não conta, mas sim a verdade e a eficácia criativa.

“O assunto é tomado do nosso presente. Ele é verdadeiro, preciso, universalmente válido. Os que reclamam da extrema agudeza nada sabem da necessidade artística de aguçar uma idéia ao extremo a fim de que ela seja verdadeiramente tocante. Dê a esses resmungões alguns dramas gregos ou Shakespeare para lerem.

“O que mais me interessou no seu filme foi a composição de um tempo especificamente cinematográfico - como existe um tempo musical. Você alcançou as proporções certas para as durações entre as cenas em que os acontecimentos quase não contêm movimentos - como é espantoso, num filme de duração relativamente curta, a coragem de fazer pausas e tempos lentos! - e aquelas em que os acontecimentos são extremamente rápidos - é cintilante a escolha de trechos de jornais dispostos em todos os ângulos na verticalidade da tela. Além disso, a relativa densidade das mudanças nos tempos variados é justa... Deixar que cada elemento venha num momento insubstituível, que seria impensável suprimir; nenhum ornamento. ‘Tudo é essencial’, diria Webern nestes casos (mas com cada coisa no seu tempo, deveríamos acrescentar). Também aprecio a franqueza, a reflexão que se prolonga na cabeça do espectador, a renúncia a qualquer ato de abertura e o ato final. Eu ainda poderia afirmar muita coisa: nada de ‘pedagogia’, para-melhorar-o-mundo, iludindo, simbolizando, falsamente se-fosse-assim: você não sentiu necessidade disto e, ao invés, utilizou os fatos; não os de uma pálida reportagem, mas precisamente por essa agudeza, esse comportamento estranhamente fulgurante da câmera nas ruas, no hotel (muito bom o fato de vermos longamente as paredes vazias do quarto de hotel, de cuja nudez não podemos nos desprender), à janela... E também a condensação ‘irreal’ do tempo, sem que nunca se tenha pressa. É nesta cortante aresta entre a verdade, a concentração e a agudeza (que penetra e queima na percepção do real) que o progresso será possível. E só aqui. Nós sabemos muito bem que atualmente até mesmo a ilusão fragmentada não passa de ilusão. Você não quer ‘mudar’ o mundo, mas sim inscrever nele o traço de sua presença e através disto dizer que você viu, que você abriu uma parte desse mundo, pela forma como essa parte do mundo se apresentou a você. Isso me agradou.

“Espero com impaciência seu trabalho vindouro.”

Colônia, 2-5-63 - Karlheinz Stockhausen

(Cahiers du Cinéma n° 145, julho 1963, pp. 36. Traduzido por Antônio Rodrigues e Bruno Andrade e extraído de http://focorevistadecinema.com.br/jornalstockhausenstraub.htm

Entrevista com Fritz Lang

por Jean Domarchi e Jacques Rivette

Uma posição crítica
Começaremos lhe perguntando qual o período de sua obra que prefere.
Fritz Lang: É muito difícil. Não se trata, para mim, de uma desculpa. Não sei o que devo responder. Prefiro os filmes americanos ou os filmes alemães? Não é a mim que cabe responder, vocês sabem. Acreditamos que o filme que estamos realizando será o melhor, naturalmente. Nós somos apenas homens, não deuses. Mesmo se você não ignora que este filme será menos importante — mesmo pela sua mise en scène — do que este ou aquele filme precedente, você no entanto se empenha em fazer a sua melhor obra.
Certamente. De qualquer forma, no interior de períodos diferentes, tanto alemão como americano, há alguns filmes que o interessam mais em retrospecto?
FL: Sim, naturalmente. Escutem: quando rodo superproduções, me interesso hoje em dia pelas emoções das pessoas, pelas reações do público. É o que se passou na Alemanha com M., o vampiro de Düsseldorf (M, 1931). Porque num filme de aventura ou num filme criminal, como os Dr. Mabuse ou Os espiões (Spione, 1928), há apenas a pura sensação, não existe o desenvolvimento de personagens. Mas, em M, eu comecei algo que era bastante novo para mim, que mais tarde prossegui em Fúria (Fury, 1936). M e Fúria são os filmes que prefiro, creio. Há outros também, como Almas perversas (Scarlet Street, 1945), Um retrato de mulher (The Woman in the Window, 1944) e No silêncio de uma cidade (While the City Sleeps, 1956). São todos filmes baseados numa crítica social. Naturalmente prefiro isso, pois acredito que a crítica é algo fundamental para um cineasta.

Todo o meu coração
O que você entende exatamente por crítica social: aquela de um sistema ou a de uma civilização?
FL: Não se pode diferenciar. É a crítica de nosso “ambiente”, de nossas leis, de nossas convenções. Vou lhes confessar um projeto. Devo rodar um filme no qual pus todo o meu coração. É um filme que quer mostrar o homem de hoje, tal como é: ele esqueceu o sentido profundo da vida, ele só trabalha para as realidades, pelo dinheiro, não para enriquecer sua alma, mas para adquirir vantagens materiais. E, porque esqueceu o sentido da vida, ele já está morto. Ele tem medo do amor; ele quer apenas ir para a cama, fazer amor, mas não quer assumir responsabilidades. Apenas o interessa a satisfação de seu desejo. Esse filme, creio, é importante filmá-lo agora. No silêncio de uma cidade, que mostra a competitividade acirrada de quatro homens no interior de um jornal, é o começo. Meu personagem recusa a satisfação pessoal de ser um homem. Pois hoje em dia cada um procura uma posição, o poder, uma situação, dinheiro, mas jamais algo de interior. Vejam, é muito difícil dizer: “Eu amo isto, ou não amo aquilo.” Quando se começa um filme, talvez se ignore mesmo o que se está fazendo exatamente. Sempre há pessoas para me explicar o que quis fazer e eu lhes respondo: “Você sabe muito melhor do que eu mesmo.” Quando realizo uma obra tento traduzir uma emoção.
No fundo, o que você critica em seus filmes seria um tipo de alienação, no sentido em que se compreende na Alemanha “Entfremdung”?
FL: Não, trata-se do combate do indivíduo contra as circunstâncias, o eterno problema dos antigos gregos, do combate contra os deuses, o combate de Prometeus. Ainda hoje combatemos as leis, lutamos contra imperativos que não nos parecem nem justos nem bons para os nossos tempos. Talvez sejam necessários daqui a trinta ou cinquenta anos, mas não o são neste momento. Nós sempre combatemos.
Isso valeria para todos os seus filmes, para O diabo feito mulher (Rancho Notorious, 1952), para No silêncio de uma cidade?
FL: Sim, para todos os meus filmes.
Até mesmo Os Nibelungos (Die Nibelungen, 1924)?
FL: Sim, exato, mas eu acho que o filme se pretendeu grande demais para atingir minuciosamente as almas.
Em Metrópolis, igualmente, este assunto já é nitidamente indicado.
FL: Sou bastante severo para com as minhas obras. Não se pode mais dizer que o coração é o mediador entre a mão e o cérebro, pois se trata de um problema puramente econômico. Eis por que não gosto de Metrópolis. É falso, a conclusão é falsa; eu já não a aceitava quando realizei o filme.
Ela lhe foi imposta?
FL: Não, não.
Ela nos surpreende, parece postiça, adicionada ao filme, e não integrada.
FL: Creio que vocês têm razão.
Ao passo que a conclusão de Fúria, você não a renega?
FL: Não, a conclusão de Fúria é uma conclusão individual, não uma conclusão geral. Não se pode dar receitas para se viver. É impossível.
Finalmente, a lição de seus filmes em conjunto seria a de que cada homem deve encontrar sua própria solução.
FL: É o que penso. O homem pode se revoltar contra as coisas que são ruins, que são falsas. É preciso se revoltar quando se está “emboscado”, seja pelas circunstâncias, seja pelas conven- ções. Mas eu não creio que a morte seja uma solução. O crime passional não soluciona nada. Eu amo uma mulher, ela me engana, eu a mato. Então o que me resta? Perdi o meu amor porque ela está morta. Se mato seu amante, ela me detesta e eu ainda perco seu amor. Matar não pode jamais ser uma solução.
Então para o senhor o que seria uma solução? Por exemplo, no caso dos heróis de No silêncio de uma cidade: que solução para eles, visto que a conclusão do filme nos pareceu bastante pessimista, e, mais até do que isso, repleta de amargura.
FL: Eu não creio que a vida seja muito doce. (Risos.) Mas minha conclusão não é pessimista. Nós vemos o combate de quatro homens para obter uma posição social: um pelo dinheiro, o outro pelo poder, o terceiro não lembro mais, e o quarto porque ama isso. Mas o homem que ganha de todos os outros é aquele que tem um ideal. Isso quer dizer que se você faz aquilo que deve fazer sem se detestar, se você não sente a necessidade de esmurrar o espelho no qual você se olha pela manhã, você recebe aquilo que deseja. Então, onde vocês veem pessimismo?
Tivemos a impressão de que o herói com quem simpatizamos não é no fim das contas tão simpático assim.
FL: Isso é outra coisa, é outra coisa.
Não, queremos dizer que a tonalidade do filme…
FL: A tonalidade desse filme é talvez um rascunho do filme que desejo realizar neste instante, essa crítica da nossa vida contemporânea, em que ninguém vive sua vida pessoal. Cada um é sempre submisso às obrigações de seu trabalho, que são bastante importantes para ele. Afinal de contas, o dinheiro é importante. Frequentemente os críticos me perguntam por que eu rodei tal filme. A verdade é que preciso de dinheiro. (Risos.) Somerset Maugham escreveu que até mesmo o artista tem o direito de ganhar dinheiro.

Palavra dada, palavra de honra
Não obstante, existem filmes que o senhor realizou por dinheiro e pelos quais não teria se interessado de outra forma?
FL: Não, absolutamente. Eu nunca assinei um filme unicamente pelo dinheiro, jamais. Mas com certos filmes eu confesso que poderia ter feito algo mais. A partir do momento em que concebo um filme eu me interesso, mas certos filmes de aventura me interessam menos do que M, Fúria ou Um retrato de mulher, em suma, filmes que criticam nossa sociedade.
O que o levou a realizar um western como O diabo feito mulher?
FL: Primeiramente, mostrar no que se tornaram uma mulher que foi uma rainha de casa de jogos e um homem que foi um célebre assaltante, mas que por ter envelhecido e por não empunhar o revólver com a rapidez de antes deixou de ser um herói. Chega um homem mais jovem que atira mais rápido do que o homem envelhecido. É o eterno preâmbulo. Posteriormente, um elemento técnico me interessou bastante: introduzir um canto como elemento dramático. Com seis ou oito linhas desta canção eu chegava mais rapidamente à conclusão e evitava mostrar certas coisas que teriam sido entediantes para o público e que não eram tão importantes para o filme.
Nessa época o senhor via, e hoje ainda vê, muitos westerns?
FL: Sim. Eu amo westerns. Eles possuem uma ética muito simples e muito necessária. É uma ética para a qual não se chama mais a atenção porque os críticos são muito sofisticados. Eles querem ignorar que é algo muito necessário amar realmente uma mulher e lutar por ela. Quando preparava O tigre de Bengala (Der Tiger von Eschnapur, 1959), eu discutia com meu dialoguista porque queria que o Marajá dissesse: “Se você me der sua palavra de honra, eu o deixo livre em meu palácio.” E o dialoguista me respondeu: “Mas, escute, todo mundo rirá. O que significa uma palavra de honra hoje em dia?” Reconheçamos que é muito triste. (Risos.) Não existem mais contratos hoje que eu não possa romper, ou que meu associado não possa romper. De que serve escrever cem páginas se ele se recusa a me dar dinheiro; sou obrigado a ir ao tribunal e isso durará cinco anos. O mesmo para mim. Se me recuso a executar meu contrato, ninguém pode me forçar. Então, é uma idiotice. Ao passo que, se dou minha palavra de honra, isso me implica muito mais. São ideias simples, primárias, que convém repetir à juventude, que é preciso repetir todos os anos porque a cada ano surge uma nova geração. Eu vi em Berlim um filme alemão contra a guerra. As críticas foram bastante ruins, tendo como pretexto o fato de que o filme não apresentava nada de original, que desenvolvia apenas velhos temas. Mas o que se pode dizer de novo sobre a guerra? O importante é que se repita mais uma vez e mais uma vez e mais uma vez.
O senhor considera o cinema como um instrumento de pregação e de educação?
FL: Para mim, o cinema é um vício. Amo-o muito, infinitamente. Escrevi muitas vezes que é a arte de nosso século. E que ele deve ser crítico.

Vocês são muito gentis
 Em quais circunstâncias o senhor foi levado a realizar Desejo humano (Human Desire, 1954), e por quais razões modificou o desfecho e incluiu os antecedentes?
FL: Numa crítica, os vossos Cahiers me deram uma resposta. Por quê?
Mas o senhor gosta desse filme ou prefere não falar sobre ele?
FL: Eu desejo, sim, falar, mas o filme de Renoir é tão melhor…¹ Primeiramente eu tinha um contrato. Se tivesse recusado, me teriam dito: “Perfeito, mas se nós tivermos outro filme para você, por ter recebido dinheiro por este, você não receberá mais.” Isso poderia ter durado um ou dois anos. Eu me curvei. Depois o produtor me disse: “Entenda, nós gostamos muito do filme de Renoir, mas não podemos ter um pervertido sexual. Precisamos ter um americano bem-apessoado.” Na realidade ele tinha razão, porque a censura teria se oposto a um personagem como o de Gabin. Vocês não imaginam as dificuldades que tivemos para encontrar uma companhia ferroviária que autorizasse as filmagens, sob o pretexto de que mostraríamos um assassinato. Respondiam-nos: “Na nossa linha, uma morte, impossível.” E tinham razão, em absoluto. Vocês acham que os acionários da companhia Santa Fé ficariam contentes ao ver um filme sobre a Santa Fé com um assassino nele? (Risos.) E então quem pode realizar um filme sobre a besta humana se não filma o livro? Meu filme não é A besta humana. Batizaram-no em inglês de Human Desire. É algo que era inspirado por um livro, por um filme. Pergunto-me por que vocês escreveram uma boa crítica na Cahiers.
Formalmente, seu filme é muito bonito.
FL: Muito obrigado, vocês são muito gentis, mas não é A besta humana.

Fiquei muito emocionado
 Retomando algumas proposições precedentes suas sobre o western, há uma objeção que inúmeros críticos lhe fizeram, da qual por sinal não partilhamos, censurando seu gosto por aquilo que é comumente chamado de melodrama. Ora, o senhor não ama justamente esse dito melodrama, tanto em seus westerns e em seus filmes policiais como em seus filmes de triângulo amoroso, na medida em que ele lhe permite situações mais fortes, em que os seres, os homens, ficam ainda mais expostos, mais nus?
FL: Ignoro o que seja um melodrama, não sei o que é. A verdade é que frequentemente vi assassinos em minha vida, eu frequentemente fui a locais onde haviam cometido um crime. Eu não penso que o que vi era melodrama. E, depois, não cabe a mim fazer a crítica dos críticos. Eu realizo um filme, é uma criança que eu trago ao mundo. Todo mundo tem o direito de criticá-lo. É tudo. Permitam-me ter a única vaidade que me deixa contente: o acolhimento favorável do público. Eu não trabalho para os crí- ticos, mas para os espectadores, que espero que sejam jovens. Não trabalho para as pessoas de minha idade, porque elas deveriam estar mortas, incluindo eu. Eu não queria vir a Paris. Este coquetel, estas palavras diante do público da Cinemateca, eu disse à senhora Lotte Eisner que isso me parece um monumento a um homem que infelizmente ainda não morreu. É ela que tinha razão. Um público jovem foi o que verdadeiramente respondeu. Fiquei emocionado, bastante emocionado, porque é a prova que não trabalhei para nada.
Você nos disse anteriormente que o propósito de um cineasta era criticar. Será que essa não poderia ser a definição da mise en scène?
 FL: Toda arte, penso, deve criticar algo. Ela não consiste em dizer que algo é bom, que é incrível, que é maravilhoso. Em todo caso, o que podemos dizer de uma mulher que é boa? É uma boa mãe, uma boa esposa. Mas o que podemos contar sobre uma mulher bastante cruel? Pode-se falar duas horas sobre ela, ela é interessante. (Risos.) É verdade ou não é? Você diz que uma é boa, mas a outra… Porque a questão se coloca da seguinte forma: por que ela é perversa? E: ela é realmente perversa? Ela tem o direito? Quais foram as circunstâncias? Os homens não são responsáveis? Poderíamos falar por toda uma noite. E poderíamos até mesmo falar toda uma vida com ela. (Risos.) Eu vi aqui, em Paris, um filme inglês chamado Almas em leilão (Room at the Top, 1959). Há duas mulheres: uma bem franca, a outra cruel. A mais interessante era Simone Signoret, não porque era melhor atriz, mas porque seus sentimentos são muitos mais apaixonantes.

Uma obra repleta de idiotices
 Em que medida o senhor foi influenciado ou reagiu contra a corrente expressionista?
 FL: Eu fui bastante influenciado. Não se pode atravessar uma época sem dela receber alguma coisa.
Os dois Nibelungos nos parecem expressionistas no bom sentido do termo, ao passo que O gabinete do Dr. Caligari (Das Cabinet des Dr. Caligari, 1920) nos parece sê-lo no pior sentido possível.
FL: Vocês se enganam. Porque Caligari era um ensaio interessante, uma primeira tentativa. Quando Wiene tentou recomeçar com Genuine (1920), isso já não funcionava mais. O cinema é uma arte viva. Deve-se tomar tudo que é novo, não sem exame, mas aquilo que é bom para você, que lhe enriquece.
O que lhe parecia bom no movimento expressionista, o que você utilizou em seus filmes?
 FL: Isto é difícil de responder. O que utilizo são minhas emoções, tento criar alguma coisa. Nestes tipos de entrevistas me perguntam ou me demonstram aquilo que quis fazer. Um dia, nos Estados Unidos, uns admiradores me ensinaram aquilo que eu estava pensando quando realizei M. Eu lhes respondi: “É bem interessante, mas é a primeira vez que me dou conta.” Não posso responder-lhes; são emoções. Quando jovens cineastas vêm até mim e me perguntam: “Dê-nos regras para fazer a mise en scène”, eu respondo: “Não há regras.” Hoje eu vejo que isso é bom, que é necessário seguir nesta via, e amanhã eu digo que isso não serve mais, que é necessário se orientar de outra forma. Utilizei a ferrovia e agora me sirvo do avião, mas é impossível pretender que agora a ferrovia é má. Não posso dizer o que encontrei no expressionismo. Eu o utilizei, tentei digeri-lo.
Alguns de seus companheiros gostam de desenvolver teorias sobre suas artes, em particular Eisenstein, que escreveu inúmeros artigos teóricos. O senhor também não se vê tentado a desenvolver considerações teóricas a partir de sua obra, no mesmo sentido em que Eisenstein realizou para a dele, e da qual pretendeu tirar uma teoria geral sobre o cinema?
FL: Penso que a partir do momento em que se tem uma teoria sobre algo é porque já se está morto. Não tenho tempo para pensar em teorias. Deve-se criar emoções, e não a partir de regras. Trabalhar com regras é trabalhar com sua experiência, é ingressar na rotina. Eu conheço um homem chamado S. Kracauer que escreveu um livro, De Caligari a Hitler. Sua teoria é absolutamente falsa. Ele procurou todos os argumentos para provar a verdade de uma teoria falsa. Por este motivo, me esforcei em dissuadir a juventude de hoje de acreditar na verdade de um livro que contém tantas idiotices. Eu cheguei a dizer isso a este senhor. Ele ficou muito irritado. (Risos.) Vocês sabem, eu tenho uma língua, basta que eu me sirva dela para poder provar o que for. Mas não é necessário à minha verdade. Uma teoria não é nada para um criador, serve apenas a pessoas que já estão mortas.

Roubem-me, ficarei orgulhoso
Você teve a oportunidade de conhecer Murnau na Alemanha?
FL: Sim, mas não muito bem. Ele partiu muito cedo para os Estados Unidos e já havia morrido quando cheguei lá. Ele realizou obras excelentes. Era uma personalidade bem interessante. Ele fez Nosferatu (1922), muito, muito bom, Tabu (1931), e até mesmo um Fausto (Faust, 1926) que continha coisas muito, muito apaixonantes.
Roubem-me, ficarei orgulhoso Você teve a oportunidade de conhecer Murnau na Alemanha?
FL: Sim, mas não muito bem. Ele partiu muito cedo para os Estados Unidos e já havia morrido quando cheguei lá. Ele realizou obras excelentes. Era uma personalidade bem interessante. Ele fez Nosferatu (1922), muito, muito bom, Tabu (1931), e até mesmo um Fausto (Faust, 1926) que continha coisas muito, muito apaixonantes.
Visto que você vai frequentemente ao cinema, existem cineastas que você admira mais do que outros, ou prefere não responder?
FL: Eu me calarei quanto aos nomes, mas, naturalmente, prefiro certos atores, certos cineastas.
Você admira Renoir?                     
FL: Eu já lhes disse, A besta humana é um filme superior a Desejo humano. Não se pode comparar os dois filmes.
E o que o senhor pensa de Orson Welles e de Nicholas Ray?
FL: Eu vi dois ou três filmes de Ray de que gosto muito. Juventude transviada (Rebel Without a Cause, 1955) é um filme muito bom.
O primeiro filme dele, Amarga esperança (They Live by Night, 1949), era bastante inspirado por seus filmes.
FL: Eu aceito. Escute, eu roubei coisas de outros cineastas, e fico bastante contente e orgulhoso se alguém me rouba algo. O que isso significa, roubar? Pega-se uma ideia que se admira e depois tenta-se torná-la sua.

Publicado originalmente sob o título de “Entretien avec Fritz Lang”. Cahiers du Cinéma n° 99, setembro de 1959, pp. 1-9. Traduzido do francês por Bruno Andrade. (N.E.) extraído do catálogo “Fritz Lang – o horror está no horizonte”.


Nota: 1 Desejo humano, de Lang, foi uma refilmagem de A besta humana (La Bête humaine, 1938), de Jean Renoir, filme por sua vez adaptado do livro homônimo de Émile Zola, publicado em 1890. (N.E.)

Nenhum comentário:

Postar um comentário