quinta-feira, 21 de abril de 2016

Carta sobre Rossellini (fragmento)


“A ordenação encobre. A ordem reina.” (Charles Péguy)

                Vocês não gostam muito de Rossellini. Dizem que vocês não gostam de Viagem à Itália. Até aí, tudo bem. Mas não; sua recusa não é tão segura para que não procurem saber a opinião dos rossellinianos; estes lhes irritam, lhes inquietam, como se vocês não tivessem boa consciência de seu gosto. Estranho comportamento!
                Mas abandonemos este tom jocoso. Sim, admiro especialmente o último filme de Rossellini (pelo menos o último que vimos). Por quais motivos? Ah, aí fica mais difícil dizer; não posso invocar diante de vocês o enlevo, a emoção, a alegria: é uma linguagem que vocês não admitem muito como prova; espero que ao menos a compreendam.(E se não, que Deus lhes ajude).
                Mudemos de tom mais uma vez para lhes agradar .A maestria, a liberdade, eis palavras que vocês podem entender, pois este é o filme em que Rossellini melhor afirma sua maestria, e como em qualquer arte, pelo exercício mais livre dos seus meios, ao qual voltarei. Antes, tenho mais a dizer, e que deve lhes interessar mais: se existe um cinema moderno, ei-lo. Mas vocês ainda precisam de provas.
*
                1. Se considero Rossellini o cineasta mais moderno, não é sem razão; mas tampouco pela razão. Parece-me impossível ver Viagem à Itália sem experimentar brutalmente a evidência de que este filme abre uma brecha, pela qual o cinema inteiro deve passar se não quiser morrer. (Sim, não há hoje outra salvação para o nosso miserável cinema francês do que uma boa transfusão deste sangue novo). Vê-se que é só um sentimento pessoal. E eu gostaria de evitar desde já um mal-entendido: há outras obras, outros autores, que provavelmente não são menores do que este, mas são, como direi, menos exemplares; no ponto a que chegaram de sua carreira, sua criação parece fechar-se sobre si mesma, o que fazem vale por ela e nas suas perspectivas. Eis certamente a culminância da arte, que só deve contas a si própria e, passados os tateios e as pesquisas, desencoraja os discípulos, isolando os mestres: seu domínio morre com eles, assim como as leis e os métodos a que recorreram. Vocês reconhecem aqui Renoir, Hawks, Lang e, de uma certa maneira, Hitchcock. A Carruagem de Ouro4 poderá provocar cópias confusas, mas não pode fazer escola; as cópias só são possíveis por presunção e ignorância, e os verdadeiros segredos estão tão bem escondidos sob o jogo das caixas sucessivas que, para descobri-los, seriam provavelmente necessários tantos anos quanto os que a carreira de Renoir tem hoje; há trinta anos eles se confundem com os avatares e os progressos de uma inteligência criadora excepcionalmente curiosa e exigente. A obra de juventude, ou da primeira maturidade, guarda em seu entusiasmo, em seus saltos, a imagem dos movimentos da vida cotidiana; atravessada por um outro impulso, ela está ligada a seu tempo e dele se afasta com dificuldade. Mas, o segredo de A Carruagem de Ouro é o da criação, e dos problemas, das dificuldades, dos desafios que se impõe para arrematar um objeto e lhe dar a autonomia e o refinamento de um mundo ainda desconhecido. Qual exemplo, senão o do trabalho obstinado e discreto que apaga por fim todo rastro de sua passagem? Mas, o que pintores ou músicos poderão reter das últimas obras de Poussin ou Picasso, de Mozart ou Stravinsky, senão um desespero salutar?
                Podemos pensar que Rosselini também chegará a este ponto de pureza (e a ele se habituará) em cinco ou dez anos; ele ainda não o alcançou, ousemos dizer, felizmente; ainda é tempo de segui-lo, antes da eternidade nele mesmo, enquanto o homem de ação ainda vive no artista.
                2. Moderno, afirmava eu; é assim que desde os primeiros minutos de projeção de Viagem à Itália, um nome que parece não ter nada a fazer aqui não cessou de martelar meu espírito: Matisse. Cada imagem, cada movimento confirmava para mim o secreto parentesco entre o pintor e o cineasta. Isso é algo mais fácil de enunciar do que de demonstrar. Arriscarei-me, porém, a fazê-lo, receando que minhas razões iniciais lhes pareçam bem frívolas, e as seguintes, obscuras ou ilusórias.
                De início, basta ver: ao longo de toda a primeira parte, constatem o gosto pelas amplas superfícies brancas, realçadas por um traço claro, por um detalhe quase decorativo; se a casa é nova e de aspecto inteiramente moderno, é obviamente porque Rossellini se apega primeiro às coisas contemporâneas, à forma mais recente de nosso contexto e de nossos costumes; é também por simples prazer visual. Isto pode surpreender em um realista (e mesmo neorrealista); por que, meu Deus? Que eu saiba, Matisse também é realista: a economia de uma matéria ágil, a atração pela página branca e carregada de um só signo, pela superfície virgem5 aberta à invenção do traço exato, tudo isso me parece de um realismo de melhor  qualidade do que os excessos, as caretas, a grandiloquência pseudorrussa de Milagre em Milão6; tudo isso, longe de prejudicar o propósito do cineasta, lhe dá um acento novo, atual, que nos atinge em nossa sensibilidade mais recente e mais viva; tudo isso toca o homem moderno que há em nós, e já exprime a nossa época tão precisamente quanto a narrativa; tudo isso já trata do homem de bem de 1953 ou 1954, e já é o assunto.
                3. No quadro, uma curva voluntária circunda, sem aprisioná-la, a cor mais viva; uma linha quebrada, mas única, cerca uma matéria milagrosamente viva, como que apreendida, intacta, na sua origem. Na tela [do cinema], uma longa parábola, suave e precisa, guia e retém cada sequência, depois se fecha em si mesma com exatidão. Pensem em qualquer filme de Rossellini: cada cena, cada episódio retornará à sua memória não como uma sucessão de planos e enquadramentos, uma cadeia mais ou menos harmoniosa de imagens mais ou menos impressionantes, mas como uma longa frase melódica, um arabesco contínuo, um único traço implacável que conduz firmemente os seres em direção àquilo que ainda ignoram, e delimita na sua trajetória um universo agitado e definitivo; seja num fragmento de Paisá [1946], num fioretto de Francisco, Arauto de Deus [Francesco, Giullare di Dio, 1950], num “passo” [do Calvário] de Europa 51 [1952], ou no conjunto mesmo de seus filmes, na sinfonia em três movimentos de Alemanha, Ano Zero [Germania Anno zero, 1948], na linha ascendente obstinada de O Milagre [Il Miracolo, 1948] ou de Stromboli [1950] (as metáforas musicais surgem tão espontaneamente quanto as pictóricas) – o olhar incansável da câmera cumpre sempre o papel do lápis, um desenho temporal avança diante dos nossos olhos (e, estejamos tranquilos, sem câmera lenta que pretenda nos instruir decompondo expressamente para nós a inspiração do mestre); seguimos seu progresso até o desfecho, até que ele se perca na duração assim como surgira da brancura da tela. Pois há filmes que começam e terminam, que têm  um início e um fim, que conduzem uma narrativa desde seu primeiro termo até que tudo se ordene e se acalme, mesmo que haja mortos, um casamento ou uma verdade. São os de Hawks, Hitchcock, Murnau, Ray, Griffith. Mas há filmes que não possuem nada disso, e retornam ao tempo como os rios ao mar; e que nos propõem ao final apenas as imagens mais banais: rios que correm, multidões, exércitos, sombras que passam, cortinas que caem ao infinito, uma menina que dança até o fim dos tempos. São os de Renoir e Rossellini. Cabe a nós prolongar depois em silêncio este movimento novamente secreto, esta curva dissimulada, retornada à terra: ela ainda não terminou.     
                (É claro que tudo isso é arbitrário e vocês têm razão: os primeiros também se prolongam, mas me parece que não exatamente da mesma maneira; eles satisfazem o espírito, suas agitações nos acalmam, enquanto os outros nos incumbem e nos pesam. Eis o que eu queria dizer.)
                E há os filmes que alcançam o tempo numa imobilidade dolorosamente mantida; que chegam a seu termo sem fraquejar na etapa perigosa de um ápice irrespirável7: este é o caso de O Milagre, de Europa 51.
                4. É cedo demais para tais entusiasmos? Receio que um pouco; voltemos então à Terra, e já que vocês o desejam, falemos de enquadramentos: mas permitam-me ainda encontrar neste desequilíbrio, nesta distância dos centros de gravidade habituais e nesta aparente incerteza que tanto lhes choca secretamente a mesma marca, a assimetria de Matisse: a “falsidade” magistral da composição, calmamente descentrada, que choca também ao primeiro olhar e só depois revela seu equilíbrio secreto, em que os valores contam tanto quanto as linhas, e que dá a cada tela este movimento discreto, como aqui a cada momento esse dinamismo contido, a inclinação profunda de todos os elementos, todas as curvas e todos os volumes do instante, rumo ao novo equilíbrio, e ao novo desequilíbrio do próximo segundo rumo ao seguinte; poderíamos chamar isso, pomposamente, de uma arte do sucessivo na composição (ou então, da composição sucessiva) que, ao contrário de todas as pesquisas estáticas que sufocam o cinema há mais de trinta anos, me parece, com todo o bom senso, a única invenção plástica permitida ao cineasta.
                5. Não insisto mais: todo paralelo se torna logo tedioso, e temo que este já tenha durado muito; de resto, quem pode convencer alguém senão aquele que já o verificou assim que o formulou? Permitam-me apenas uma última observação, sobre o traço: a graça e o desajeito intimamente ligados. Saúdem aqui e ali uma graça jovem, brusca e rígida, desajeitada, mas cuja fluidez desconcerta: a meu ver, a mesma graça da adolescência, idade ingrata em que os gestos mais perturbadores e os mais bem sucedidos nascem assim, “no susto”, de um corpo sustentado por um grande embaraço. Matisse e Rossellini afirmam a liberdade do artista, mas não se enganem: trata-se de uma liberdade vigiada, construída, em que a arquitetura primeira se dissipa no esboço.
                Pois é preciso acrescentar este aspecto, que resumirá todos os outros: o senso do esboço, comum aos dois artistas. O esboço mais verdadeiro, mais detalhado que o detalhe e a cópia mais minuciosa, a preparação mais verdadeira que a composição, eis os milagres em que irrompe a verdade soberana da invenção, da ideia mãe que só aparece para reinar, sumariamente desenhada por grandes traços essenciais, desajeitados e apressados, mas que resumem vinte estudos aprofundados. Pois é precisamente nestes filmes rápidos, improvisados com elementos do acaso e filmados aos solavancos que a imagem deixa amiúde adivinhar, que se encontra a única pintura real do nosso tempo; e este tempo também é um esboço; como não reconhecer de pronto a aparência fundamentalmente esboçada, mal composta, inacabada da nossa existência cotidiana; estes grupos arbitrários, estas reuniões completamente teóricas de seres atormentados pelo tédio e pelo cansaço, nós os reconhecemos, eles são a imagem irrefutável, acusadora, das nossas sociedades heteróclitas, sem harmonia, desacordes. Europa 51, Alemanha, Ano Zero, e este filme que poderá se intitular Itália 53, como Paisá já era Itália 44, eis o nosso espelho, que não nos lisonjeia muito: esperemos ainda que este tempo, fiel por sua vez à imagem destes filmes fraternais, se oriente em segredo para uma ordem profunda, para uma verdade que lhe dará sentido e justificará, no fim, tanta desordem e tanta afobação confusa.
                6. Ah, vocês começam a se inquietar: o autor se revela; já os ouço murmurar: panelinha, fanatismo, intolerância. Mas essa famosa e tão invocada liberdade de expressão, em primeiro lugar liberdade de tudo exprimir de si, quem a leva mais longe? Até ao impudor, se acrescenta então; pois o mais estranho é que ainda se proteste, e justamente aqueles que a reivindicam mais alto (para quais fins? Libertação do homem? Seja, mas de quais amarras? Que o homem é livre, é o que aprendemos no catecismo, é o que simplesmente mostra Rossellini; e seu cinismo é aquele da grande arte). Nosso amigo M. diz com elegância: “Viagem à Itália é como os ensaios de Montaigne”, e não parece estar elogiando; permitam-me julgar de outro modo, e me admirar que em nosso século, que nada mais poderia chocar, alguém finja se escandalizar com o fato de um cineasta ousar falar de si sem restrição; é verdade que os filmes de Rossellini são cada vez mais, no seu conjunto, filmes de amador; filmes familiares: Joana D’Arc [Giovanna d’Arco al Rogo, 1954] não é uma transposição cinematográfica do célebre oratório, mas um simples filme-lembrança de uma representação deste por sua esposa, assim como A Voz Humana [La voce umana, 1948] era, de início, o registro de uma performance de Anna Magnani (o mais estranho é que, como A Voz Humana, Joana D’Arc é um filme verdadeiro, em que a emoção nada tem de teatral, mas isso nos levaria longe). Assim, o episódio de Nós, as Mulheres [Siamo Donne, 1953] é apenas o relato de um dia da mãe Ingrid Bergman; assim, Viagem à Itália oferece uma fábula transparente, e George Sanders, um rosto que não dissimula muito aquele do cineasta (um pouco pálido talvez, mas por humildade). Eis que ele já não se limita a filmar suas ideias, como em Stromboli ou Europa 51, e passa a abordar também sua vida mais cotidiana. Esta vida, porém, é “exemplar” na acepção mais goethiana: tudo nela é ensinamento, e ao mesmo tempo erro; e o relato de uma tarde movimentada da Madame Rossellini não é mais frívolo neste conjunto do que o longo relato por Eckermann daquele belo dia do 1o de maio de 1825, em que Goethe e ele próprio praticaram arco e flecha. E eis o seu país, a sua cidade; mas um país privilegiado, uma cidade excepcional, mantendo intactas a inocência e a fé, vivendo inteiramente na eternidade; uma cidade providencial; e eis assim o segredo de Rossellini, o de se mover com uma liberdade contínua e num mesmo e simples movimento, no eterno visível: o mundo da encarnação; mas que o gênio de Rossellini só seja possível no cristianismo, é um ponto sobre o qual não insistirei, já que Maurice Schérer já o desenvolveu, melhor do que eu saberia fazer, numa revista, se me lembro bem, os Cahiers du Cinéma.
                7. Uma tal liberdade, completa, extravagante, em que a extrema licença nunca se exerce em detrimento do rigor interior, é uma liberdade conquistada; ou melhor, merecida. Esta ideia de mérito é bem nova, receio eu, e surpreendente para ser clara; e merecida como? Pela meditação, pelo aprofundamento de um pensamento ou de um acordo central; pelo enraizamento deste germe predestinado na terra concreta que é também a terra intelectual (“que é a mesma que a terra espiritual”); pela obstinação, que autoriza todo abandono aos acasos da criação, e impele mesmo a ela nosso infeliz autor. Mais uma vez, a ideia se fez carne; a obra e a verdade por vir se transformaram na própria vida do artista, que não pode então fazer nada que fuja deste polo, deste ponto magnético. E receio que nós também, de agora em diante, já não possamos sair muito deste círculo central, deste refrão fundamental retomado em coro; que o corpo é alma, o outro eu, o objeto verdade e mensagem; eis-nos presos também a este lugar, em que a passagem de um plano a outro é perpétua e infinitamente recíproca; em que os arabescos de Matisse não estão apenas invisivelmente ligados ao seu fogo, não só o figuram, mas são este fogo.
                8. Essa posição tem estranhas recompensas; mas permitam-me ainda um desvio que, como todos os desvios, terá a vantagem de nos trazer mais rápido para onde quero lhes conduzir (está claro, de resto, que não procuro traçar um raciocínio concatenado, mas que me obstino antes a repetir a mesma coisa de diferentes maneiras: a afirmá-la em tons diversos). Já falei há pouco do olhar de Rossellini; cheguei mesmo, creio eu, a compará-lo um pouco apressadamente ao lápis obstinado de Matisse; não importa, não podemos insistir demais no olho do cineasta (e quem duvida que não resida aí o seu gênio?), e sobretudo na sua singularidade; ah, não se trata tanto de cine-olho, de objetividade documental e de outras banalidades; gostaria de fazê-los tocar (com o dedo) os verdadeiros poderes deste olhar; que talvez não seja o mais sutil, como o de Renoir, nem o mais agudo, como o de Hitchcock, mas o mais ativo; e não é tampouco que ele se prenda a alguma transfiguração das aparências, como Welles, nem à sua condensação, como Murnau, mas à sua captura: uma caça de cada instante, a cada instante perigosa, uma busca corporal (e, portanto, espiritual; uma busca do espírito pelo corpo), um movimento incessante de conquista e de perseguição que confere à imagem um não sei quê de vitorioso e de inquietante ao mesmo tempo: o próprio tom da conquista. (Mas sintam, por favor, o que há nela de diferente; não se trata de alguma conquista pagã, de proezas de algum general incrédulo; vocês sentem o que há de fraterno nesta palavra, e de qual conquista se trata? O que entra nela de humildade, de caridade?).
                9. Porque “fiz uma descoberta”: há uma estética da televisão; não riam, pois é claro que não está aí a minha descoberta; e o que é essa estética (o que ela começa a ser), aprendi recentemente num artigo de André Bazin,
que vocês leram, assim como eu, no número colorido dos Cahiers du Cinéma (excelente revista, decididamente); mas eis o que vi: os filmes de Rossellini, embora em película, também estão submetidos a esta estética do direto, com tudo o que isso comporta de desafio, de tensão, de acaso e de providência (e isso já é uma primeira explicação do mistério de Joana d’Arc, em que cada mudança de plano parece correr os mesmo riscos e provocar a mesma angústia do que cada movimento de câmera). E eis-nos, desta vez pelo filme, escondidos na sombra, prendendo o fôlego, o olhar suspenso na tela que nos concede, enfim, tais privilégios: espiar nosso próximo com a indiscrição mais chocante, violar impunemente a intimidade física dos seres, submetidos sem saber ao nosso olhar apaixonado; e, ao mesmo tempo, [incorrer na] violação imediata da alma. É preciso, porém, punição justa, viver logo a angústia da espera, a ideia fixa daquilo que deve vir depois; que peso de tempo conferido subitamente a cada gesto; não sabemos o que vai acontecer, quando e como; pressentimos o acontecimento, mas sem vê-lo progredir; tudo aí é acidente, imediatamente inevitável; o sentimento mesmo do futuro, na trama impassível daquilo que dura. Eis aí, dizem vocês, filmes de “voyeur”? – ou de vidente.
                10. Eis uma palavra perigosa, em torno da qual tolices foram ditas, e que não me agrada muito escrever; vocês precisam ainda de uma definição. Mas como nomear de outra maneira essa faculdade de ver através dos seres e das coisas a alma e a ideia que elas carregam, este privilégio de atingir pelas aparências o duplo que as suscita? (Seria Rossellini platônico? Por que não? Ele bem que pensava em filmar Sócrates.)
                 Pois, à medida que a projeção avançava, não é mais em Matisse que eu pensava após uma hora, mas, me perdoem, em Goethe: a arte de unir primeiro em pensamento a ideia à matéria, de confundi-la com seu objeto
pelas virtudes da meditação; mas quem descreve o objeto em voz alta nomeia logo a ideia através dele. É preciso aí, evidentemente, várias condições – e não apenas esta concentração primeira, esta íntima maceração do real –, que são o segredo do artista e às quais não temos acesso; de resto, elas não são da nossa conta. Em seguida, a clareza na apresentação deste objeto, secretamente enriquecido; a lucidez e a franqueza (a famosa “descrição objetiva” de Goethe). Isto ainda não basta; é aqui que entra em jogo a ordenação, ou melhor, a própria ordem, coração da criação, desenho do criador; o que chamamos modestamente, em termos de ofício, construção (e que não tem nada a ver com o assemblage em voga, e obedece a outras leis); a ordem, enfim, que, conferindo valor segundo seus méritos a cada aparência, na ilusão de sua simples sucessão, obriga o espírito a conceber uma lei outra que a do acaso para sua sábia aparição.
                Filme ou romance, a narrativa, se for grande, já sabe disso; os romancistas, os cineastas de longa data, Stendhal e Renoir, Hawks e Balzac, sabem fazer da construção a parte secreta de sua obra. O cinema esnobava, porém, o ensaio (retomo a expressão de A. M.) e renegava seus infelizes franco-atiradores: Intolerância, A Regra do Jogo, Cidadão Kane. Havia O Rio Sagrado, primeiro poema didático; há agora Viagem à Itália, que, com uma clareza perfeita, oferece enfim ao cinema (até então obrigado a narrar) a possibilidade do ensaio.
                11. O ensaio, há mais de 50 anos, é a língua mesma da arte moderna; é a liberdade, a inquietude, a busca, a espontaneidade; pouco a pouco, ele – Gide, Proust, Valéry, Chardonne, Audiberti – matou sob si mesmo o romance; desde Manet e Degas, ele reina na pintura e lhe confere seu modo apaixonado de proceder, sua maneira de pesquisar e de abordar [seus objetos]. Mas vocês se lembram daquele grupo bem simpático que, há alguns anos,
assumiu como objetivo não sei mais qual número, e não se cansava de defender a “libertação” do cinema; fiquem tranquilos, não se tratava ali do progresso do homem; simplesmente se desejava para a sétima arte um pouco deste ar mais leve em que florescem suas irmãs mais velhas; tudo vinha de um bom sentimento. No entanto, consta que alguns dos sobreviventes não gostam nada de Viagem à Itália, por incrível que pareça. Pois eis um filme que é ao mesmo tempo quase tudo o que eles defendiam: ensaio metafísico, confissão, diário de bordo, diário íntimo – e eles não o reconheceram. É uma história moral que eu fazia questão de lhes contar em detalhes.
                12. Para isso, só encontro um motivo, e temo pecar por maldade (mas ela parece estar em alta): é o medo doentio do gênio que reina em nossos dias. A moda prefere a sutileza, os refinamentos, os jogos da aristocracia espiritual; Rossellini não é sutil, mas prodigiosamente simples. Ela prefere ainda a literatura: quem sabe fazer pastiche de Moravia é um gênio; e cada um se extasia com os rascunhos de um Soldati, de um Wheeler, de um Fellini (falaremos noutra ocasião do senhor Zavattini); a repetição e o tédio fazem figura de espessura romanesca ou de senso da duração; a inércia e a moleza são o fino da sutileza psicológica. Rossellini cai neste pântano como a pedra do urso; desvia-se com expressão reprovadora deste camponês do Danúbio. Com efeito, nada de menos literário ou romanesco: Rossellini não gosta muito de narrar, e menos ainda de demonstrar; o que tem ele a ver com as desonestidades da argumentação? A dialética é uma moça que se deita com qualquer pensamento que chega, e se entrega a todos os sofismas; e os dialéticos são uns canalhas. Os personagens de Rossellini não provam nada, agem: para São Francisco de Assis, a santidade não é um belo pensamento. Se ocorre a Rossellini querer defender uma ideia, ele não tem outro meio de nos convencer senão agir também, criar, filmar; a tese de Europa 51, absurda a
 cada novo episódio, nos maravilha cinco minutos depois, e cada sequência é, antes de tudo, o Mistério da encarnação deste pensamento; nós recusamos o desenvolvimento temático da intriga, capitulamos diante das lágrimas de Bergman, diante da evidência de seus atos e de seu sofrimento; a cada cena, o cineasta completa o teórico, multiplicando-o pela maior variável. Mas, aqui, não há o menor entrave: Rossellini não demonstra, ele mostra.
                E nós vimos: que tudo na Itália carrega um sentido, que a Itália inteira é uma lição e participa de um dogmatismo profundo, que nos encontramos aí, de repente, no domínio do espírito e da alma; eis o que talvez não pertença ao reino das verdades puras, mas, pelo filme, certamente pertence ao das verdades sensíveis, ainda mais verdadeiras. Não se trata de símbolos, e já estamos a caminho da grande alegoria cristã. Tudo o que o olhar desta mulher errante, perdida no reino da graça, encontra agora, estas estátuas, estes amantes, estas mulheres gordas que em toda parte lhe fazem um cortejo obsessivo, e depois estas estátuas funerárias [gisants], estes crânios, estas bandeiras, esta procissão de um culto quase bárbaro, tudo irradia agora com uma outra luz, tudo se afirma como outra coisa; eis visivelmente sob nossos olhos a beleza, o amor, a maternidade, a morte, Deus.
                13. Todas estas noções estão fora de moda; ei-las, porém, visíveis. Só nos resta esconder o rosto ou nos ajoelhar.
                Há um instante em Mozart no qual a música não parece mais se nutrir senão dela mesma, da obsessão de um acorde puro, todo o resto ficando relegado a aproximações, aprofundamentos sucessivos, e retornos deste lugar supremo onde o tempo é abolido. Toda a arte talvez só atinja sua plenitude na destruição passageira dos seus meios, e o cinema nunca é maior do que em certos instantes que ultrapassam e suprimem bruscamente o drama: penso nos rodopios ardentes de Lillian Gish, na imobilidade prodigiosa de [Emil] Jannings, nos admiráveis repousos do Rio Sagrado, na cena noturna, nos despertares e nos adormecimentos de Tabu15; em todos aqueles planos que os maiores cineastas sabem inserir no meio de um western, de um filme policial, de uma comédia, em que o breve olhar sobre si mesmo do protagonista abole bruscamente o gênero (e, sobretudo, nas duas confissões de [Ingrid] Bergman e Anne Baxter, estes dois longos retornos a si das personagens que são o centro exato e o núcleo de Sob o Signo de Capricórnio e A Tortura do Silêncio). Aonde quero chegar com tudo isto? Ao fato de que nada revela melhor o grande cineasta em Rossellini do que estes largos acordes que são, no meio de seus filmes, todos os planos de olhares, sejam eles os do jovem garoto para as ruínas de Berlim, os de [Anna] Magnani para a montanha de O Milagre, os de [Ingrid] Bergman para a periferia de Roma ou para a ilha de Stromboli, para toda a Itália enfim (e, a cada vez, os dois planos, o da mulher que olha, depois o do seu olhar e, às vezes, os dois fundidos); uma nota alta e bruscamente alcançada, que resta manter por ínfimas modulações e retornos perpétuos à dominante (vocês conhecem a “Cantata 1952” de Stravinsky?); assim as estrofes sucessivas dos Fioretti (Francisco, Arauto de Deus) se encadeiam sob o baixo (decifrável) da caridade. Ou é no coração do filme, este momento em que os personagens vivem contra o seu fundo e se procuram sem sucesso visível; essa vertigem de si que os domina, como no centro da sinfonia o próprio deleite por si mesmo da nota fundamental; de onde vem a grandeza de Roma, Cidade Aberta [Roma, Città Aperta, 1945] ou de Paisá, senão deste brusco repouso dos seres, destes ensaios imóveis diante da fraternidade impossível; desta súbita lassidão, que os paralisa um segundo no seio mesmo da ação. A solidão de [Ingrid] Bergman está no centro de Stromboli como no de Europa 51: ela gira em vão, sem progresso aparente; ela avança, porém, sem saber, pelo próprio desgaste do tédio e do tempo, que não poderão resistir a um esforço tão prolongado, a um retorno tão obstinado sobre a sua queda, uma fadiga tão pouco cansada, tão ativa, tão impaciente, que acabará por vencer o muro da inércia e do abandono, esse exílio do verdadeiro reino.
  

(...)             

(Texto na íntegra e notas no catálogo “Jacques Rivette – Já Não Somos Inocentes” e originalmente publicado na revista Cahiers du Cinéma, n. 46, abril de 1955.)

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