terça-feira, 19 de abril de 2016

SOB O SIGNO DE CAPRICÓRNIO, Alfred Hitchcock, 1949


por Jacques Rivette


A reação crítica ao último filme de Hitchcock indica um certo desconforto. Ao que parece, o silêncio conspiratório só será quebrado a fim de tomar abrigo rapidamente em dois ou três tranqüilizadores lugares comuns sobre teatro filmado, monólogos e o retorno ao “filme de arte”. O enredo, além do mais, nunca é mencionado exceto como um melodrama bastante raso, indigno de prender a atenção de pessoas honestas. Isso seria, sem dúvida, antecipar-se, e algumas linhas, a título de exceção, chamam a nossa atenção: “É como se Hitchcock fosse o único diretor capaz de entender o que o cinema pode tomar do universo de Dostoievski; refiro-me a um universo puramente moral” (J. J. Saloman). Não seria este roteiro - que combina vários dos mais belos temas que o cinema americano já teve o deleite de tratar - o melhor com o qual Hitchcock já trabalhou? Ele toma parte então, primeiramente, do prestígio de filmes em que um passado obscuro pesa no presente da história e a ação se resume pelas variações nas relações que os dois protagonistas têm com ele. Nenhuma revelação, ademais, motiva suas mudanças de atitude e é a partir de uma maior consciência de si mesmos e das suas verdadeiras relações que nasce uma nova, mais lúcida perspectiva, que os fazem superar o passado. Este é um passado cujo poder é estendido pela aparição de uma governanta que oferece à história seu único escape espetacular e que objetiva a ação, que poderia ter permanecido completamente interiorizada. Os planos dela coincidem com aqueles de uma íntima fatalidade que paira sobre eles: separar os amantes da forma como foram separados no passado, a memória ruim do qual quer engolir a todos para si mesmo. O alcoolismo de Bergman, encorajado pela governanta, é apenas a imagem do segredo que a devasta por dentro e a punição da pessoa imprudente que procurava esconder o seu passado dentro dela.

Tudo se passa, então, à luz da memória e em relação a ela. O assunto secreto deste drama é a confissão, a libertação de um segredo nas suas duas formas: no sentido psicanalítico, pois ela nos liberta do segredo ao dar a este uma forma verbal, e no sentido religioso, a confissão dos pecados sendo aqui o equivalente às suas redenções.

A reconquista por uma pessoa do seu próprio eu é realizada sob o signo duplo da libertação e da redenção, proporcionando ao filme sua progressão dramática interna, uma vitória frente ao auto-desprezo e o temor pelo desprezo dos outros. O deslocamento social é apenas a imagem de um declínio mais profundo: o que é pior, ter de odiar a si mesmo e sentir a própria queda ou saber que se é responsável pela queda de uma outra pessoa? A transferência de responsabilidade pelo pecado havia previamente separado o casal, tendo um assumido a punição, o outro a má consciência. Este primeiro sacrifício, erroneamente consentido, obriga-os a abandonarem-se à euforia de outros sacrifícios mútuos incessantemente renovados. Ao fim, não é possível para eles abandonarem o sacrifício e aceitar a felicidade sem que a terceira pessoa por sua vez se sacrifique antes de partir - a portadora do mal, trazendo em seu rastro o drama das erínias, longe do solo australiano.

Não menos importante nos méritos do roteiro é a sua resolução desta complexa rede de emoções e planos em uma história de continuidade clara e linear. A direção de Hitchcock - que também é bastante discreta - intencionalmente permanece lado a lado do seu enredo, recusando-se a sublinhar os pontos importantes e, ao invés disso, simplesmente apresentando-os a nós. A câmera se entrega aos personagens enquanto eles deambulam, mas geralmente se recusa a penetrar e intervir nas suas vidas interiores. Se os detalhes superficiais da história - incluindo a evidência macabra - são sublinhados em uma pincelada carregada e brusca, isto se deve ao fato de que Hitchcock dedica-se a despojar todo o lado espetacular de uma trama através do excesso e, ao assumir ele próprio a ousadia de tais detalhes, liberta o espectador de se preocupar muito com eles.

Longas tomadas também são empregadas sem quaisquer problemas. Mudanças de plano são freqüentes - no eixo ou em pausas e intervalos na ação. Ainda assim, cada momento da tensão contínua exige a filmagem em um plano só: o monólogo insidioso da governanta, a longa confissão de Bergman. O plano é identificado com cada movimento do drama.

Como a câmera permanece dentro de uma residência, em torno de quatro personagens, e pelo fato do mundo exterior intervir escassamente, exceto de forma caricata e reduzida a um universo de fantoches e postais, as pessoas falam de teatro filmado. No entanto, aquilo que nos é mostrado não é constantemente estabelecido como o mais importante, se não o mais espetacular? Desapontar-se por não ter visto um cavalo quebrar sua pata, enquanto toda a tensão dramática se concentra em um momento posterior bem diante dos nossos olhos entre Cotton e Bergman, é uma concepção profundamente infantil do cinema.

Se o cinema e o teatro apresentam-nos o homem em ação (fala e gestos), os modos de aparência diferem de maneiras singulares e essa mudança de perspectiva não ocorre sem alterar seriamente o seu objeto. Não é apenas que, neste caso, trata-se da organização de um mundo concreto onde os cenários sempre enganam os nossos olhos e parecem tão reais como os corpos dos atores, onde o homem é inserido em um universo real, na sua imagem. Aqui, esta ordem assume a forma do irremediável: afixar algo em filme - voluntariamente ou não - a impõe mas exige um acordo definitivo entre todos os elementos do plano. Como poderíamos, afinal, separar cada momento do ponto de vista ao qual a câmera nos submete - um olhar pré-fabricado, também irremediável, cuja conformidade com o seu objeto é, indubitavelmente, não tanto verificada pela invisibilidade da decupagem como por sua transparência? Parece que somos mais sensíveis a isto quanto mais o artifício é ameaçado e, certamente, não se define por uma ausência de pesquisa, mas por uma pesquisa extrema feita até o ponto de destruir os seus próprios registros. O teatro está sujeito à virtude da presença e ao contágio do lirismo corporal; o cinema intelectualiza as ligações concretas através da distinção exclusiva da organização rigorosa do tempo e espaço, irremediavelmente vinculados e posicionados. Não é a menor das virtudes da tomada de dez minutos a sua capitulação de todos os elementos do filme a uma organização tão precisamente mecânica: a economia impõe sua lei sobre a estética e a completa, o tempo de cada gesto constrange os atores a movimentos métricos. Submetidos à câmera, eles são focados nessas performances mecânicas que são características de performances cinematográficas, geralmente atingidas através da fadiga de longos ensaios. Os atores cedem à câmera, enquanto a câmera, ao contrário, segue-os e as performances alternadamente tensas e relaxadas cumprem o duplo movimento de tensão e relaxamento na respiração dramática. O corpo do ator - que no teatro é apenas um suporte abstrato do gesto e da fala - descobre sua plena realidade carnal: um olho que abre irrompe a tela, mãos e rostos, em seus menores frêmitos, desdobram e expressam, como vozes, uma verdade que é inteiramente das aparências. Constantemente, diante dos nossos olhos, a carne é visitada pelo espírito. Uma certafeiúra plástica apenas traz mais à tona a beleza inteiramente moral deste filme: Ingrid Bergman encolhida, coberta de maquiagem, envelhecida durante a sua primeira aparição, redescobre pouco a pouco, ao mesmo tempo que uma paz interior, a força para sorrir e ficar bonita e é enquanto irradia a sua pureza e felicidade que ela se escusa com uma reverência.

(La Gazette du Cinéma nº 4, outubro 1950. Traduzido por Felipe Medeiros)
Texto extraído de 
http://focorevistadecinema.com.br/jornalcapricorn.htm

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