domingo, 31 de maio de 2015

ONDE JAZ O TEU SORRISO?


(Pedro Costa, 2001)

De Sorrisos Ocultos

1: Eu sei que a interrogação titular do filme de Pedro Costa não pergunta quem escondeu o sorriso, nem pergunta quando é que esse sorriso se ocultou. Mas o quem e o quando parece-me, crescentemente, da maior importância, à medida que revejo o mais claustral e o mais clausural dos filmes de Pedro Costa. No sentido monacal de clausura, pois - foi Camilo quem o escreveu - “isto de viver na clausura não é para todas as compleições”.

Talvez, por isso, tanto tardei em escrever este texto e tanto tenha revisto o filme (em sala ou em casa) à busca do claustro dele. Ou seja, à busca de um espaço exterior e descoberto, onde, mesmo nos mais severos conventos, se demanda a paz e se pode achar a paz. Não estou nada certo de o ter encontrado, como não estou nada certo de saber melhor onde jaz o sorriso oculto, nem quem o ocultou, nem quando foi ocultado.

Mas vamos por partes.

2: Como se sabe, ou se é suposto saber, este filme situa-se numa sala de montagem do Fresnoy, perto de Tourcoing, no Pas-de-Calais, onde Jean-Marie Straub e Danièle Huillet montaram a terceira versão do seu filme Sicilia!.

50% das imagens dele são imagens de Sicilia!, do qual seguimos, por ordem cronológica, algumas das seqüências, ou alguns planos dessas seqüências. Para além de Sicilia!, são-nos mostradas também algumas imagens (comparativamente poucas) de Chronik der Anna Magdalena Bach, obra de 1968, realizada trinta e dois anos antes de Sicilia!. Dos 24 filmes Straub-Huillet, Chronik é o terceiro e Sicilia! o vigésimo segundo, como, aliás, o próprio Straub o sublinha a certa altura do filme.

No entanto, desviando-me da trindade - tomista ou marxista - idéia-matéria-forma, sobre a qual Straub insiste com particular veemência, parece-me legítimo dizer - até porque estou a falar de um filme de Pedro Costa e não de um filme dos Straub - que a obra straubiana com quem mais rima, não éSicilia! nem Chronik, mas Von heute auf morgen, o filme dos Straub imediatamente anterior a Sicilia!.

Como se sabe, ou se é suposto saber, Von heute auf morgen baseia-se na ópera homônima de Schönberg, terceira e última das óperas do compositor, estreada a 1 de Fevereiro de 1930. O libreto, da autoria da mulher de Schönberg, Gertrud, sob o pseudônimo de Max Blonda (pseudônimo masculino, pois) situa a ação num apartamento da alta burguesia, regressado a casa, noite alta, após uma festa. Tudo o que se passa, passa-se durante a noite, uma “noite branca” em vários sentidos, até ao romper do dia. Recorrendo a uma tradição, velha como as “comédias de enganos”, a intriga varia sobre o “on ne badine pas avec l’amour”, com a mulher a provocar os ciúmes do marido e a tentar salvar o casamento da rotina e da superficialidade. Resumindo ainda mais, a conjugalidade é o grande tema dessa noite entre o hoje e o amanhã, para me refugiar na tradução literal de Von heute auf morgen. A “velha fidelidade” ou a “moderna infidelidade”. Por alguma razão, Schönberg acabou a ópera com uma criança - o filho do casal - a perguntar à mãe o que é que quer dizer “pessoas modernas”.

Ao contrário do que fizeram em 1974, quando adaptaram, também de Schönberg, Moses und Aaron, os Straub não recorreram a décors ditos “naturais” para esta segunda incursão no mundo do escritor vienense. Pela primeira e única vez na sua obra, filmaram tudo em estúdio, “numa incerteza entre o teatro e a vida”. E só fugiram ao texto da ópera, uma única vez. No final, após a pergunta da criança, filmaram um muro com um grafito que, durante a rodagem, ocasionalmente lhes chamara a atenção. Wo liegt euer Lacheln begraben? O que se pode traduzir por onde jaz o teu sorriso oculto? ou, na mais explicativa tradução francesa (escolhida por Pedro Costa para título original do seu filme) Où gît votre sourire enfoui?, vertido mais elipticamente, no titulo português, como Onde Jaz o Teu Sorriso?.

Nem o marido nem a mulher da ópera formulam, alguma vez, nesses termos, a pergunta sobre o que aconteceu ao amor deles, mas há múltiplas referências ao muito que mudaram e o marido, a dado passo, exprime mesmo saudade pelo brilho do olhar dela, o brilho de quando casaram, o brilho que ele já não vê. Aliás, é o tempo e a passagem do tempo o que domina a ópera de Schönberg (e o filme dos Straub), como a questão da modernidade, da verdadeira modernidade (a de Schönberg, utilizando, pela primeira vez, o dodecafonismo serial numa obra cênica), à falsa modernidade, personificada no “casal livre” da ópera. Como escreveu Andreas Maul: “Schönberg, compositor ‘moderno’ por excelência, troça, na sua ópera, de uma ‘modernidade’ mal entendida. Os diálogos ligeiros conferem à obra a aparência de uma ‘ópera-bufa’, com repetido recurso ao coloquial para a assemelhar ao nível e à desenvoltura de um sketch musical”.

3: A conversa vai estranha.

Se vim para falar de um filme de Pedro Costa, sobre e com os Straub, filme que tem como matéria o filme Sicilia! e não o filme Von heute auf morgen,por quê e para quê perder tanto tempo e espaço com Schönberg e com o filme dos Straub sobre a ópera de Schönberg?

Porque, na minha opinião (às vezes convém ser pedagógico) penso, genericamente, que tudo quanto disse se aplica tanto à ópera de Schönberg como ao filme de Pedro Costa; porque Pedro Costa, ao escolher para título do seu filme, uma frase daquele filme, me reenviou (não julgo das suas intenções, penso em fatos) às três questões maiores que atravessam o cinema dos Straub e o cinema dele, e que, elíptica ou explicitamente, são as três questões maiores que atravessam a ópera de Schönberg.

a) Concebeu o seu filme como uma “arte poética”, ou seja, como uma reflexão sobre o que o cinema é para os Straub e para ele. Situando-o num estúdio (não num estúdio de cinema, mas numa sala de montagem de um moderno estúdio de artes) deixou-nos na mesma incerteza entre o teatro e a vida (incerteza entre o cinema e a vida) em que os Straub nos quiseram deixar em Von heute auf morgen, ou, mais aventurosamente, em toda a sua obra. Do estúdio, nunca se sai do filme. Da sala de montagem sai incessantemente Jean-Marie Straub (para um corredor que nunca saberemos nem donde vem nem para onde vai) e sai Pedro Costa, com os Straub, por três vezes: duas para um auditório onde Straub, no lugar de professor, expõe aos seus alunos que participaram no mesmo atelier, as suas confissões maiores sobre o cinema e a vida; uma, ao final, quando o par abandona (fim de um dia de trabalho) a sala de montagem e se prepara para sair para o exterior.

Eventualmente, Danièle Huillet saiu, mas Jean-Marie Straub detém-se num patamar a espreitar para o interior de um auditório (não vemos o que ele vê, nem sabemos o que ele espreita) e, depois de algum tempo como voyeur, senta-se no degrau de uma escada, e fica de cabeça entre as mãos, em cansaço ou reflexão, até o plano fundir em negro para o genérico final.

E, enquanto entra e sai, em permanente agitação, em permanente solilóquio, permanentemente a fumar, na sala de montagem (quase todo o filme) não cessa de expor a sua “arte poética” (a sua teoria de cinema) quer recorrendo à teoria, quer contando histórias, quer socorrendo-se da história do cinema (Chaplin, Eisenstein, Dreyer, Bresson, Buñuel, Nicholas Ray, Godard, Cassavetes, etc., são dos muitos autores citados).

Mas a arte leva consigo uma espécie de rudeza, como dizia o velho Mathias Ayres. Straub não é um teórico, ou não é sobretudo um teórico. E a sua “arte poética” exprime-se sobretudo ligada à prática, ou seja à montagem (ou remontagem) do seu filme Sicilia!, tão cerne deste filme como o corpo e as vestes da mulher o eram na ópera de Schönberg. Essa é a matéria (para voltar ao vocabulário straubiano) com que Pedro Costa deu forma à sua idéia de um filme sobre os Straub. E através da qual nos comunicou a sua própria arte poética, ou seja a sua absorção da arte poética dos Straub na arte poética dele. Herdeira da deles mas não inteiramente coincidente com a deles.

b) Subjacente ao filme (subjacente?) está também a reflexão sobre a modernidade no cinema, sobre o “was ist das die Modernitat”, modificando muito pouco a pergunta final da criança de Von heute auf morgen.

Longe vão os anos 60 e 70 em que o cinema dos Straub era o nec plus ultra dessa modernidade. As “pessoas modernas” hoje, ultrapassados até os chavões sem sentido do que chegou a ser chamado “pós-modernismo” (a expressão mais contraditória nos termos que inventar se pôde) rejeitam esse cinema como relíquia pré-histórica, último suspiro de uma raça em vias de extinção, que acreditava em arte, em cinema como este e em cinema como forma de expressão individual e coletiva. O cinema dos Straub - hoje - como o cinema de Pedro Costa, é um cinema de resistência, à margem de qualquer discurso dominante.

Onde está a modernidade? No fundo daquela sala de montagem, onde Jean-Marie Straub e Danièle Huillet lutam, fotograma a fotograma, para chegar à forma que exprima com fidelidade a idéia deles, dedicando horas de tempo a segundos de filme?

Ou no que se passa lá fora, nos outros estúdios de cinema, nas produções que são vistas por milhões e que dão milhões a ganhar?

A resposta de Pedro Costa - como a dos Straub - é inequívoca. Mesmo que sejam os últimos, serão fiéis até ao fim. Mas é sobre isso - sendo o isso o cinema - que Onde Jaz o Teu Sorriso? é. Como o era, há setenta e alguns anos, a ópera de Schönberg.

O oculto - o sorriso oculto - é o sorriso deste cinema jacente e ressurreto. Neste filme e enquanto se fizerem filmes como este.

c) Mas há também a questão da conjugalidade. Os Straub não são um, são dois e dois que são marido e mulher. Jean-Marie e Danièle. E todo o filme é um filme sobre a relação daquele casal, sobre a paz e a guerra conjugal.

Contrastando com a permanente mobilidade de Jean-Marie, com as suas idas e vindas, com o seu in e com o seu off, temos a imobilidade quase permanente de Danièle Huillet, que nunca se levanta da mesa de montagem (a não ser quando o dia de trabalho acabou), que quase não fala e que nunca desvia os olhos da mesa de montagem. Ele fala, fala, fala. Ela responde-lhe cortantemente, tratando-o sempre por “vous”, ora por “Jean-Marie”, ora por “Straub”. Certamente conhece de cor e salteado todas as histórias que ele conta, certamente antecipa e adivinha as soluções que ele pensou encobrir e ela lhe dá, de fotograma beijado. Mas, como em todas as discussões de velhos casais, repetem-se incessantemente discussões velhas como eles, mas que os apaixonam, irritam ou enfurecem como sempre os apaixonaram, irritaram ou enfureceram.

Li numa critica ao filme uma comparação que não me parece nada parva: a guerra Jean-Marie - Danièle parece repetir as guerras conjugais de Spencer Tracy e Katherine Hepburn nas comédias clássicas de Cukor. Até fisicamente, qualquer deles faz lembrar os atores citados. Adam’s RibPat and Mike. Tracy e Hepburn discutiam sobre outras coisas? É bem verdade. Como é bem verdade que era sobre outra coisa que discutiam o marido e a mulher na ópera de Schönberg. Mas a violência e a ternura (para usar termos utilizados por Straub no filme) são idênticos, como idêntica é a comunhão e a separação. Nenhum deles assume a divisão de trabalho (gênero eu trato da montagem, você trata da rodagem). Como não vimos a rodagem, não sabemos do lugar que qualquer deles teve nela. Mas a obra é na montagem comum, por mais que Straub se afaste da mesa e Danièle se agarre a ela. A rivalidade está implícita e não precisa de ser explicitada, como a comunhão. A discussão faz parte do jogo, é regra do jogo, aceito pelos dois, por muito que ou um ou o outro pareçam impacientar-se com a obstrução. Uma tal conflitualidade cúmplice ou uma tal cúmplice conflitualidade só pode ser conjugal. Mesmo que nunca se toquem, mesmo que nunca nenhuma intimidade intervenha (até há o vous, até há o Straub e nunca há o Danièle) sentimos a cada momento a história comum, o passado comum, medido a vinte e dois filmes e trinta e oito anos de vida.

O tom de voz de qualquer deles é sempre crispado, agressivo, quase violento. Nunca os vemos brincar, nunca os vemos rir (à exceção de uma breve gargalhada, que não sabemos a quem atribuir). Mas sabemos que ambos se lembram (e não estou a fazer poesia) do sorriso que nos fica oculto e que a pergunta tutelar a ambos interpela também. Como todos os grandes filmes, Onde Jaz o Teu Sorriso? é também um filme de amor e foi sobretudo para um filme de amor que Pedro Costa nos convocou.

4: Mas há outra questão e é a minha questão final.

Durante todo o filme - já o disse - quase não saímos de uma sala de montagem nas profundezas de um estúdio. Von heute auf morgen (neste caso de manhã à noite) aquele casal esteve enterrado numa sala subterrânea, sem luz que não luz artificial, sem qualquer contato com o exterior e com a luz “natural”.

Será por acaso que nunca os vemos chegar cá fora? Sabemos que vão sair, sabemos que vão voltar para casa. Mas perdemo-nos deles nas subidas das escadas e ficamos com ele, a meio da subida, prostrado num degrau.

Pouco antes, Jean-Marie notou à mulher que a vida deles, comparada com a vida de 90% das pessoas, é uma vida feliz. O trabalho deles é um trabalho feito por prazer, enquanto o comum dos mortais trabalha para viver.

Mas o princípio do prazer está ausente do filme, ou o sinal dele fica-nos tão oculto como o sorriso ou os sorrisos.

Ou como esse sorriso, que Danièle Huillet vê esboçar-se no rosto do cético protagonista de Sicilia!, quando, na carruagem do comboio para Catania, o companheiro de viagem se apresenta como chefe do cadastro. “É preciso que o espectador o perceba” diz-lhe Straub, “perceba que ele não se deixa levar pelas lérias do outro”. Mas até esse sorriso ficou oculto. Como todos os outros, jaz algures. Onde? É a pergunta capital do filme de Pedro Costa.

“Por nós, por ti, por mim, falou a dor/E a dor é evidente/libertada”.

Este filme lembrou-me esse final do soneto final de Jorge de Sena em As Evidências. Esse soneto que fala da “cendrada luz”. Tudo se aplica, menos a libertação. Seja por ela a minha última pergunta a Pedro Costa.

João Bénard da Costa

Texto original: http://www.focorevistadecinema.com.br/FOCO1/benard-sorriso.htm

sexta-feira, 29 de maio de 2015

NASSAR, Raduan. Lavoura Arcaica (fragmento). São Paulo: Companhia das Letras, 1989 (pp. 5 – 32)



A Partida
"Que culpa temos nós dessa planta da infância, de sua sedução, de seu viço e constância?" (Jorge de Lima)
1
Os olhos no teto, a nudez dentro do quarto; róseo, azul ou violáceo, o quarto é inviolável; o quarto é individual, é um mundo, quarto catedral, onde, nos intervalos da angústia, se colhe, de um áspero caule, na palma da mão, a rosa branca do desespero, pois entre os objetos que o quarto consagra estão primeiro os objetos do corpo; eu estava deitado no assoalho do meu quarto, numa velha pensão interiorana, quando meu irmão chegou pra me levar de volta; minha mão, pouco antes dinâmica e em dura disciplina, percorria vagarosa a pele molhada do meu corpo, as pontas dos meus dedos tocavam cheias de veneno a penugem incipiente do meu peito ainda quente; minha cabeça rolava entorpecida enquanto meus cabelos se deslocavam em grossas ondas sobre a curva úmida da fronte; deitei uma das faces contra o chão, mas meus olhos pouco apreenderam, sequer perderam a imobilidade ante o voo fugaz dos cílios; o ruído das batidas na porta vinha macio, aconchegava-se despojado de sentido, o floco de paina insinuava-se entre as curvas sinuosas da orelha onde por instantes adormecia; e o ruído se repetindo, sempre macio e manso, não me perturbava a doce embriaguez, nem minha sonolência, nem o disperso e esparso torvelinho sem acolhimento; meus olhos depois viram a maçaneta que girava, mas ela em movimento se esquecia na retina como um objeto sem vida, um som sem vibração, ou um sopro escuro no porão da memória; foram pancadas num momento que puseram em sobressalto e desespero as coisas letárgicas do meu quarto; num salto leve e silencioso, me pus de pé, me curvando pra pegar a toalha estendida no chão; apertei os olhos enquanto enxugava a mão, agitei em seguida a cabeça pra agitar meus olhos, apanhei a camisa jogada na cadeira, escondi na calça meu sexo roxo e obscuro, dei logo uns passos e abri uma das folhas me recuando atrás dela: era meu irmão mais velho que estava na porta; assim que ele entrou, ficamos de frente um para o outro, nossos olhos parados, era um espaço de terra seca que nos separava, tinha susto e espanto nesse pó, mas não era uma descoberta, nem sei o que era, e não nos dizíamos nada, até que ele estendeu os braços e fechou em silêncio as mãos fortes nos meus ombros e nós nos olhamos e num momento preciso nossas memórias nos assaltaram os olhos em atropelo, e eu vi de repente seus olhos se molharem, e foi então que ele me abraçou, e eu senti nos seus braços o peso dos braços encharcados da família inteira; voltamos a nos olhar e eu disse "não te esperava" foi o que eu disse confuso com o desajeito do que dizia e cheio de receio de me deixar escapar não importava com o que eu fosse lá dizer, mesmo assim eu repeti "não te esperava" foi isso o que eu disse mais uma vez e eu senti a força poderosa da família desabando sobre mim como um aguaceiro pesado enquanto ele dizia "nós te amamos muito, nós te amamos muito" e era tudo o que ele dizia enquanto me abraçava mais uma vez; ainda confuso, aturdido, mostrei-lhe a cadeira do canto, mas ele nem se mexeu e tirando o lenço do bolso ele disse "abotoe a camisa, André".
2
Na modorra das tardes vadias na fazenda, era num sítio lá do bosque que eu escapava aos olhos apreensivos da família; amainava a febre dos meus pés na terra úmida, cobria meu corpo de folhas e, deitado à sombra, eu dormia na postura quieta de uma planta enferma vergada ao peso de um botão vermelho; não eram duendes aqueles troncos todos ao meu redor, velando em silêncio e cheios de paciência meu sono adolescente? Que urnas tão antigas eram essas liberando as vozes protetoras que me chamavam da varanda? de que adiantavam aqueles gritos, se mensageiros mais veloes, mais ativos, montavam melhor o vento, corrompendo os fios da atmosfera? (meu sono, quando maduro, seria colhido com a volúpia religiosa com que se colhe um pomo)
3
E me lembrei que a gente sempre ouvia nos sermões do pai que os olhos são a candeia do corpo, e que se eles eram bons é porque o corpo tinha luzz, e se os olhos não eram limpos é que eles revelavam um corpo tenebroso, e eu ali, diante de meu irmão, respirando um cheiro exaltado de vinho, sabia que meus olhos eram dois caroços repulsivos, mas nem liguei que fossem assim, eu estava era confuso, e até perdido, e me vi de repente fazendo coisas, mexendo as mãos, correndo o quarto, como se o meu embaraço viesse da desordem que existia a meu lado: arrumei as coisas em cima da mesa, passei um pano na superfície, esvaziei o cinzeiro no cesto, dei uma alisada no lençol da cama, dobrei a toalha na cabeceira, e já tinha voltado à mesa para encher dois copos quando escorreguei e quase perguntei por Ana, mas isso só foi um súbito ímpeto cheio de atropelos, eu poderia isto sim era perguntar como ele pôde chegar até minha pensão, me descobrindo no casario antigo, ou ainda, de um jeito ingênuo, procurar conhecer o motivo da sua vinda, mas eu nem sequer estava pensando nessas coisas, eu estava era escuro por dentro, não conseguia sair da carne dos meus sentimentos, e ali junto da mesa eu só estava certo era de ter os olhos exasperados em cima do vinho rosado que eu entornava nos copos; "as venezianas" ele disse "por que as venezianas estão fechadas? " ele disse da cadeira do canto onde se sentava e eu não pensei duas vezes e corri abrir a janela e fora tinha um fim de tarde tenro e quase frio, feito de um sol fibroso e alaranjado que tingiu amplamente o poço de penumbra do meu quarto, e eu ainda encaixava as folhas das venezianas nas carrancas quando, ligeira, me percorreu uma primeira crise, mas nem fiz caso dela, foi passageira, por isso eu só pensei em concluir minha tarefa e fui logo depois, generoso e com algum escárnio, pôr também entre suas mãos um soberbo copo de vinho; e enquanto uma brisa impertinente estufava as cortinas de renda grossa, que desenhava na meia altura dois anjos galgando nuvens, soprando tranqüilos clarins de bochechas infladas, me larguei na beira da cama, os olhos baixos, dois bagaços, e foram seus olhos plenos de luz em cima de mim, não tenho dúvida, que me fizeram envenenado, e foi uma onda curta e quieta que me ameaçou de perto, me levando impulsivo quase a incitá-lo num grito "não se constranja, meu irmão, encontre logo a voz solene que você procura, uma voz potente de reprimenda, pergunte sem demora o que acontece comigo desde sempre, componha gestos, me desconforme depressa a cara, me quebre contra os olhos a velha louça lá de casa", mas me contive, achando que exortá-lo, além de inútil, seria uma tolice, e, sem dar por isso, caí pensando nos seus olhos, nos olhos de minha mãe nas horas mais silenciosas da tarde, ali onde o carinho e as apreensões de uma família inteira se escondiam por trás, e pensei quando se abria em vago instante a porta do meu quarto ressurgindo um vulto maternal e quase aflito "não fique assim na cama, coração, não deixe sua mãe sofrer, fale comigo" e surpreso, e assustado, senti que a qualquer momento eu poderia também explodir em choro, me ocorrendo que seria bom aproveitar um resto de embriaguez que não se deixara espantar com sua chegada para confessar, quem sabe piedosamente, "é o meu delírio, Pedro, é o meu delírio, se você quer saber", mas isso só foi um passar pela cabeça um tanto tumultuado que me fez virar o copo em dois goles rápidos, e eu que achava inútil dizer fosse o que fosse passei a ouvir (ele cumpria a sublime missão de devolver o filho tresmalhado ao seio da família) a voz de meu irmão, calma e serena como convinha, era uma oração que ele dizia quando começou a falar (era o meu pai) da cal e das pedras da nossa catedral.
4
Sudanesa (ou Schuda) era assim: farta; debaixo de uma cobertura de duas águas, de sapé grosso e dourado, ela vivia dentro de um quadro de estacas bem plantadas, uma ao lado da outra, que eu nos primeiros tempos mal ousava espiar através das frinchas; era numa vasilha de barro fresca e renovada todas as manhãs que ela lavava a língua e sorvia a água, era numa cama bem fenada, cheirosa e fofa, que ela deitava o corpo e descansava a cabeça quando o sol lá fora já estava a pino; tinha um cocho sempre limpo com milho granado de debulho e um capim verde bem apanhado onde eu esfregava a salsa para apurarlhe o apetite; a primeira ve que vi Sudanesa com meus olhos enfermiços foi num fim de tarde em que eu a trouxe para fora, ali entre os arbustos floridos que circundavam seu quarto agreste de cortesã: eu a conduzi com cuidados de amante extremoso, ela que me seguia dócil pisando suas patas de salto, jogando e gingando o corpo ancho suspenso nas colunas bem delineadas das pernas; era do seu corpo que passei a cuidar no entardecer, minhas mãos humosas mergulhando nas bacias de unguentos de cheiros vários, desaparecendo logo em seguida no pêlo franjado e macio dela; mas não era uma cabra lasciva, era uma cabra de menino, um contorno de tetas gordas e intumescidas, expondo com seus trejeitos as partes escuras mais pudendas, toda sensível quando o pente corria o pêlo gostoso e abaulado do corpo; era uma cabra faceira, era uma cabra de brincos, tinha um rabo pequeno que era um pedaço de mola revestido de boa cerda, tão reflexivo ao toque leve, tão sensitivo ao carinho sutil e mais suave de um dedo; se esculturava o corpo inteiro quando uma haste verde - atravessada na boca paciente - era mastigada não com os dentes mas com o tempo; e era então uma cabra de pedra, tinha nos olhos bem imprimidos dois traços de tristeza, cílios longos e negros, era nessa postura mística uma cabra predestinada; Sudanesa foi trazida à fazenda para misturar seu sangue, veio porém coberta, veio pedindo cuidados especiais, e, nesse tempo, adolescente tímido, dei os primeiros passos fora do meu recolhimento: saí da minha vadiagem e, sacrílego, me nomeei seu pastor lírico: aprimorei suas formas, dei brilho ao pêlo, dei-lhe colares de flores, enrolei no seu pescoço longos metros de cipó-desão-caetano, com seus frutos berrantes e pendentes como se fossem sinos; Schuda, paciente, mais generosa, quando uma haste mais túmida, misteriosa e lúbrica, buscava no intercurso o concurso do seu corpo.
5
O amor, a união e o trabalho de todos nós junto ao pai era uma mensagem de pureza austera guardada em nossos santuários, comungada solenemente em cada dia, fazendo o nosso desjejum matinal e o nosso livro crepuscular; sem perder de vista a claridade piedosa desta máxima, meu irmão prosseguia na sua prece, sugerindo a cada passo, e discretamente, a minha imaturidade na vida, falando dos tropeços a que cada um de nós estava sujeito, e que era normal que isso pudesse ter acontecido, mas que era importante não esquecer também as peculiaridades afetivas e espirituais que nos uniam, não nos deixando sucumbir às tentações, pondo-nos de guarda contra a queda (não importava de que natureza), era este o cuidado, era esta pelo menos a parte que cabia a cada membro, o quinhão a que cada um estava obrigado, pois bastava que um de nós pisasse em falso para que toda a família caísse atrás; e ele falou que estando a casa de pé, cada um de nós estaria também de pé, e que para manter a casa erguida era preciso fortalecer o sentimento do dever, venerando os nossos laços de sangue, não nos afastando da nossa porta, respondendo ao pai quando ele perguntasse, não escondendo nossos olhos ao irmão que necessitasse deles, participando do trabalho da família, trazendo os frutos para casa, ajudando a prover a mesa comum, e que dentro da austeridade do nosso modo de vida sempre haveria lugar para muitas alegrias, a começar pelo cumprimento das tarefas que nos fossem atribuídas, pois se condenava a um fardo terrível aquele que se subtraísse às exigências sagradas do dever; ele falou ainda dos anseios isolados de cada um em casa, mas que era preciso refrear os maus impulsos, moderar prudentemente os bons, não perder de vista o equilíbrio, cultivando o autodomínio, precavendo-se contra o egoísmo e as paixões perigosas que o acompanham, procurando encontrar a solução para nossos problemas individuais sem criar problemas mais graves para os que eram de nossa estima, e que para ponderar em cada caso tinha sempre existido o mesmo tronco, a mão leal, a palavra de amor e a sabedoria dos nossos princípios, sem contar que o horizonte da vida não era largo como parecia, não passando de ilusão, no meu caso, a felicidade que eu pudesse ter vislumbrado para além das divisas do pai; evitando conhecer os motivos ímpios da minha fuga (embora sugerindo discretamente que meus passos fossem um mau exemplo pró Lula, o caçula, cujos olhos sempre estiveram mais perto de mim), meu irmão pôs um sopro quente na sua prece pra me lembrar que havia mais força no perdão do que na ofensa e mais força no reparo do que no erro deixando claro que deveriam ser estes o anverso e o reverso sublimes do bom caráter, cabendo, por ocasião de minha volta, o primeiro à família, e o reparo do meu erro cabendo a mim, o filho desgarrado; "você não sabe o que todos nós temos passado esse tempo da tua ausência, te causaria espanto o rosto acabado da família; é duro eu te dizer, irmão, mas a mãe já não consegue esconder de ninguém os seus gemidos" ele disse misturando na sua reprimenda um certo e cada vez mais tenso sentimento de ternura, ele que vinha caminhando sereno e seguro, um tanto solene (como meu pai), enquanto eu me largava numa rápida vertigem, pensando nas provisões dessa pobre família nossa já desprovida da sua antiga força, e foi talvez, na minha escuridão, um instante de lucidez eu suspeitar que na carência do seu alimento espiritual se cozinhava num prosaico quarto de pensão, em fogofátuo, a última reserva de sementes de um plantio; "ela não contou pra ninguém da tua partida; naquele dia, na hora do almoço, cada um de nós sentiu mais que o outro, na mesa, o peso da tua cadeira vazia; mas ficamos quietos e de olhos baixos, a mãe fazendo os nossos pratos, nenhum de nós ousando perguntar pelo teu paradeiro; e foi uma tarde arrastada a nossa tarde de trabalho com o pai, o pensamento ocupado com nossas irmãs em casa, perdidas entre os afazeres na cozinha e os bordados na varanda, na máquina de costura ou pondo ordem na despensa; não importava onde estivessem, elas já não seriam as mesmas nesse dia, enchendo como sempre a casa de alegria, elas haveriam de estar no abandono e desconforto que sentiam; era preciso que você estivesse lá, André, era preciso isso; e era preciso ver o pai trancado no seu silêncio: assim que terminou o jantar, deixou a mesa e foi pra varanda; ninguém viu o pai se recolher, ficou ali junto da balaustrada, de pé, olhando não se sabe o que na noite escura; só na hora de deitar, quando entrei no teu quarto e abri o guarda-roupa e puxei as gavetas vazias, só então é que compreendi, como irmão mais velho, o alcance do que se passava: tinha começado a desunião da família" ele disse e parou, e eu sabia por que ele tinha parado, era só olhar o seu rosto, mas não olhei, eu também tinha coisas pra ver dentro de mim, eu poderia era dizer "a nossa desunião começou muito mais cedo do que você pensa, foi no tempo em que a fé me crescia virulenta na infância e em que eu era mais fervoroso que qualquer outro em casa" eu poderia dizer com segurança, mas não era a hora de especular sobre os serviços obscuros da fé, levantar suas partes devassas, o consumo sacramental da carne e do sangue, investigando a volúpia e os tremores da devoção, mesmo assim eu passei pensando na minha fita de congregado mariano que eu, menino pio, deixava ao lado da cama antes de me deitar e pensando também em como Deus me acordava às cinco todos os dias pra eu comungar na primeira missa e em como eu ficava acordado na cama vendo de um jeito triste meus irmãos nas outras camas, eles que dormindo não gozavam da minha bem-aventurança, e me distraindo na penumbra que brotava da aurora, e redescobrindo a cada lance da claridade do dia, ressurgindo através das frinchas, a fantasia mágica das pequenas figuras pintadas no alto da parede como cercadura, e só esperando que ela entrasse no quarto e me dissesse muitas vezes "acorda, coração" e me tocasse muitas vezes suavemente o corpo até que eu, que fingia dormir, agarrasse suas mãos num estremecimento, e era então um jogo sutil que nossas mãos compunham debaixo do lençol, e eu ria e ela cheia de amor me asseverava num cicio "não acorda teus irmãos, coração", e ela depois erguia minha cabeça contra a almofada quente do seu ventre e, curvando o corpo grosso, beijava muitas vezes meus cabelos, e assim que eu me levantava Deus estava do meu lado em cima do criado-mudo, e era um deus que eu podia pegar com as mãos e que eu punha no pescoço e me enchia o peito e eu menino entrava na igreja feito balão, era boa a luz doméstica da nossa infância, o pão caseiro sobre a mesa, o café com leite e a manteigueira, essa claridade luminosa da nossa casa e que parecia sempre mais clara quando a gente vinha de volta lá da vila, essa claridade que mais tarde passou a me perturbar, me pondo estranho e mudo, me prostrando desde a puberdade na cama como um convalescente, "essas coisas nunca suspeitadas nos limites da nossa casa" eu quase deixei escapar, mas ainda uma vez achei que teria sido inútil dizer qualquer coisa, na verdade eu me sentia incapaz de dizer fosse o que fosse, e erguendo meus olhos vi que meu irmão tinha os olhos mergulhados no seu copo, e, sem se mexer, como se respondesse ao aceno do meu olhar, ele disse: "quanto mais estruturada, mais violento o baque, a força e a alegria de uma família assim podem desaparecer com um único golpe" foi o que ele disse com um súbito luto no rosto, e parou, e num jorro instantâneo renasceram na minha imaginação os dias claros de domingo daqueles tempos em que nossos parentes da cidade se transferiam para o campo acompanhados dos mais amigos, e era no bosque atrás da casa, debaixo das árvores mais altas que compunham com o sol o jogo alegre e suave de sombra e luz, depois que o cheiro da carne assada já tinha se perdido entre as muitas folhas das árvores mais copadas, era então que se recolhia a toalha antes estendida por cima da relva calma, e eu podia acompanhar assim recolhido junto a um tronco mais distante os preparativos agitados para a dança, os movimentos irrequietos daquele bando de moços e moças, entre eles minhas irmãs com seu jeito de camponesas, nos seus vestidos claros e leves, cheias de promessas de amor suspensas na pureza de um amor maior, correndo com graça, cobrindo o bosque de risos, deslocando as cestas de frutas para o lugar onde antes se estendia a toalha, os melões e as melancias fartas aos gritos da alegria as uvas e as laranjas colhidas dos pomares e nessas cestas com todo o viço bem dispostas sugerindo no centro do espaço o mote para a dança, e era sublime essa alegria com o sol descendo espremido entre as folhas e os galhos, se derramando às vezes na sombra calma através de um facho poroso de luz divina que reverberava intensamente naqueles rostos úmidos, e era então a roda dos homens se formando primeiro, meu pai de mangas arregaçadas arrebanhando os mais jovens, todos eles se dando rijo os braços, cruzando os dedos firmes nos dedos da mão do outro compondo ao redor das frutas o contorno sólido de um círculo como se fosse o contorno destacado e forte da roda de um carro de boi, e logo meu velho tio, velho imigrante, mas pastor na sua infância, puxava do bolso a flauta, um caule delicado nas suas mãos pesadas, e se punha então a soprar nela como um pássaro, suas bochechas se inflando como as bochechas de uma criança, e elas inflavam tanto, tanto, e ele sanguíneo dava a impressão de que faria jorrar pelas orelhas, feito torneiras, todo o seu vinho, e ao som da flauta a roda começava, quase emperrada, a deslocar-se com lentidão, primeiro num sentido, depois no seu contrário, ensaiando devagar a sua força num vaivém duro e ritmado ao toque surdo e forte dos pés batidos virilmente contra o chão, até que a flauta voava de repente, cortando encantada o bosque, correndo na floração do capim e varando os pastos, e a roda então vibrante acelerava o movimento circunscrevendo todo o círculo, e já não era mais a roda de um carro de boi, antes a roda grande de um moinho girando célere num sentido e ao toque da flauta que reapanhava dês voltando sobre seu eixo, e os mais velhos que presenciavam, e mais as moças que aguardavam a sua vez, todos eles batiam palmas reforçando o novo ritmo, e não tardava Ana, impaciente, impetuosa, o corpo de campônia, a flor vermelha feito um coalho de sangue prendendo de lado os cabelos negros e soltos, essa minha irmã que, como eu, mais que qualquer outro em casa, trazia a peste no corpo, ela varava então o círculo que dançava e logo eu podia adivinhar seus passos precisos de cigana se deslocando no meio da roda, desenvolvendo com destreza gestos curvos entre as frutas e as flores dos cestos, só tocando a terra na ponta dos pés descalços, os braços erguidos acima da cabeça serpenteando lentamente ao trinado da flauta mais lento, mais ondulante, as mãos graciosas girando no alto, toda ela cheia de uma selvagem elegância, seus dedos canoros estalando como se fossem, estava ali a origem das castanholas, e em torno dela a roda girava cada vez mais veloz, mais delirante, as palmas de fora mais quentes e mais fortes, e mais intempestiva, e magnetizando a todos, ela roubava de repente o lenço branco do bolso de um dos moços, desfraldando-o com a mão erguida acima da cabeça enquanto serpenteava o corpo e sabia fazer as coisas, essa minha irmã, esconder primeiro bem escondido sob a língua a sua peçonha e logo morder o cacho de uva que pendia em bagos túmidos de saliva enquanto dançava no centro de todos, fazendo a vida mais turbulenta, tumultuando dores, arrancando gritos de exaltação, e logo entoados em língua estranha começavam a se elevar os versos simples, quase um cântico, nas vozes dos mais velhos, e um primo menor e mais gaiato, levado na corrente, pegava duas tampas de panelas fazendo os pratos estridentes, e ao som contagiante parecia que as garças e os marrecos tivessem voado da lagoa pra se juntarem a todos ali no bosque e eu podia imaginar, depois que o vinho tinha umedecido sua solenidade a alegria nos olhos do eu pai mais certo então de que nem tudo em um navio se deteriora no porão, e eu sentado onde estava sobre uma raiz exposta num canto do bosque mais sombrio, eu deixava que o vento leve que corria entre as árvores me entrasse pela camisa e me inflasse o peito, e na minha fronte eu sentia a carícia livre dos meus cabelos, e eu nessa postura aparentemente descontraída ficava imaginando de longe a pele fresca do seu rosto cheirando a alfazema, a boca um doce gomo cheia de meiguice, mistério e veneno nos olhos de tâmara, e os meus olhares não se continham eu desamarrava os sapatos, tirava as meias e com os pés brancos e limpos ia afastando as folhas secas e alcançando abaixo delas a camada de espesso húmus, e a minha vontade incontida era de cavar o chão com as próprias unhas e nessa cova me deitar à superfície e me cobrir intero de terra úmida, e eu nessa senda oculta não percebia quando ela se afastava do grupo buscando por todos os lados com olhos amplos e aflitos, e seus passos, que se aproximavam, se confundiam de início com o ruído tímido e súbito dos pequenos bichos que se mexiam num aceno afetuoso ao meu redor, e eu só dava pela sua presença quando ela já estava por perto, e eu então abaixava a cabeça e ficava atento para os seus passos que de repente perdiam a pressa e se tornavam lentos e pesados, amassando distintamente as folhas secas sob os pés e me amassando confusamente por dentro, e eu de cabeça baixa sentia num momento sua mão quente e aplicada colhendo antes o cisco e logo apanhando e alisando meus cabelos, e sua voz que nascia das calcificações do útero desabrochava de repente profunda nesse recanto mais fechado onde eu estava, e era como se viesse do interior de um templo erguido só em pedras mas cheio de uma luz porosa vazada por vitrais, "vem, coração, vem brincar com teus irmãos", e eu ali, todo quieto e encolhido, eu só dizia "me deixe, mãe, eu estou me divertindo" mas meus olhos cheios de amargura não desgrudavam de minha irmã que tinha as plantas dos pés em fogo imprimindo marcas que queimavam dentro de mim. . .; que poeira clara, vendo então as costas daquele tempo decorrido, o mesmo tempo que eu um dia, os pés acorrentados, abaixava os olhos para não ver-lhe a cara; e que peso o dessa mochila presa nos meus ombros quando saí de casa; colada no meu dorso, caminhamos como gêmeos com as mesmas costas, as gemas de um mesmo ovo, com olhos voltados pra frente e olhos voltados pra trás; e eu ali, vendo meu irmão, via muitas coisas distantes, e ia tomando naquele fim de tarde a resolução desesperada de me jogar no ventre mole daquela hora; quem sabe eu de repente terno ainda pedisse a meu irmão que fosse embora: "lembranças pra família", e fecharia a porta; e quando estivesse só na minha escuridão, me enrolaria no tenro pano de sol estendido numa das. paredes do quarto, entregando-me depois, protegido nessa manta, ao vinho e à minha sorte.

quinta-feira, 28 de maio de 2015

Cineclube da Cinemateca: “Onde Jaz o Teu Sorriso?” de Pedro Costa

Neste sábado, dia 30, o Cineclube da Cinemateca exibe "Onde Jaz o Teu Sorriso?" encerrando o ciclo Pedro Costa. Sempre com entrada franca!

Cineclube da Cinemateca apresenta:
“Onde Jaz o Teu Sorriso?” de Pedro Costa  

No momento da montagem da terceira versão de "Sicília!" por Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, Pedro Costa fechou-se com os dois cineastas na sala de montagem, filmando cada momento do processo. O resultado é uma lição de cinema e também uma homenagem aos autores de "Sicília".

Serviço:
30 de maio (sábado)
Excepcionalmente às 15h 
Na Cinemateca de Curitiba (Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174 - São Francisco)
(41) 3321 - 3552
ENTRADA FRANCA

Realização: Cinemateca de Curitiba e Coletivo Atalante

terça-feira, 26 de maio de 2015

Cineclube Sesi: "Lavoura Arcaica" de Luiz Fernando Carvalho

Nesta quinta-feira, dia 28, o Cineclube Sesi exibe "Lavoura Arcaica" de Luiz Fernando Carvalho, encerrando o ciclo Cinema e outras artes. Em junho o tema será o cinema de Lucrecia Martel.
Sempre com entrada franca!

Cineclube Sesi apresenta:

"Lavoura Arcaica" de Luiz Fernando Carvalho

André (Selton Mello) é um filho desgarrado, que saiu de casa devido à severa lei paterna e o sufocamento da ternura materna. Pedro (Leonardo Medeiros), seu irmão mais velho, recebe de sua mãe a missão de trazê-lo de volta ao lar. Cedendo aos apelos da mãe e de Pedro, André resolve voltar para a casa dos seus pais, mas irá quebrar definitivamente os alicerces da família ao se apaixonar por sua bela irmã Ana (Simone Spoladore).

Serviço:
dia 28/05 (quinta)
às 19h30
na Sala Multiartes do Centro Cultural do Sistema Fiep
(Av. Cândido de Abreu, 200, Centro Cívico)
ENTRADA FRANCA
 

Realização: Sesi 
   
   (
http://www.sesipr.org.br/cultura/)
Produção: Atalante (http://coletivoatalante.blogspot.com.br/)

sábado, 23 de maio de 2015

A CARTA DE VENTURA


Uma mudança de dimensões - assim poderíamos resumir a novidade deste Juventude em Marcha, o terceiro e mais belo filme da trilogia consagrada por Pedro Costa aos habitantes do bairro de lata, hoje demolido, das Fontainhas. No início, há altas muralhas de um cinzento metálico que brilham na penumbra. Duma janela, vemos passar objetos que se vão destruir no chão.
No plano seguinte, uma mulher está perante nós, imagem de fúria antiga, a segurar uma faca que parece também fazer a vez de uma tocha na obscuridade. Ela fala, como quem recita um monólogo, para contar como, ainda menina, em Cabo Verde, se atirava à água sem recear os tubarões e sem dar troco aos rapazes, que da praia lhe falavam prudentemente de amor. As duas sequências encontram de seguida as suas "explicações": a mulher, Clotilde, pôs na rua o marido, o antigo pedreiro Ventura, e atirou os seus móveis pela janela. Mas o essencial não está aí. Está no espaço construído por esta abertura, na tonalidade que ela dá à história. Estamos aparentemente muito longe do espaço e das personagens de No Quarto da Vanda.
A câmara arrastava-se então pelo labirinto das ruas, alojava-se nos cantos de quartos estreitos e colocava-se à altura das personagens semi-asfixiadas que lutavam pela vida entre dois chutos. Aqui o espaço abre-se, a câmara dirige-se para o alto de um imóvel que se assemelha às muralhas de fortalezas antigas ou medievais e de onde surge esta mulher de aparência selvagem, de palavra nobre e dicção teatral que evoca Climnestra ou Medeia.
Ossos e No Quarto da Vanda apresentavam-nos jovens marginais a fazer pela vida no dia a dia. Juventude em Marcha gira em torno de duas figuras mitológicas, vindas de longe e do fundo dos tempos: primeiro, Clotilde, que não reveremos mais, mas que continuará a habitar o discurso do esposo rejeitado que reclama um alojamento apropriado para a sua numerosa família e que mais tarde conta à sua "filha" Bete, como é que aprisionou a mulher indomável num dia de festa da Independência em que ela cantava (desafinada) um hino à liberdade; segue-se Ventura, figura de soberano deposto, exilado da sua realeza africana, inapto para o trabalho por um acidente e para a vida social por uma falha do espírito, espécie de errante sublime, entre Édipo e Lear, mas também entre os heróis fordianos Tom Joad e Ethan Edwards.
A tragédia invadiu assim o terreno da crónica. No Quarto da Vanda lutava, plano após plano, para libertar o potencial poético do cenário sórdido e da palavra abafada de vidas atrofiadas, para fazer coincidir, para lá de toda a estetização da miséria, as potencialidades artísticas de um espaço e as capacidades dos indivíduos mais desclassificados em tomar as rédeas dos próprios destinos.
A imagem emblemática era oferecida pelo episódio em que um dos três ocupas insistia, por preocupação estética, em raspar com a sua faca as manchas de uma mesa prometida aos dentes das máquinas de demolição. A figura de Ventura, essa, resolve imediatamente o problema. Não há miséria que a câmara tivesse como objetivo sublimar. Entre a câmara e Vanda, mãe de família em cura de desintoxicação ou Nhurro, tornado num empregado honrado, vem interpor-se Ventura, figura de destino trágico, que nada pode reconciliar com os muros brancos das habitações novas e as imagens de folhetins televisivos. Não acompanhamos um desempregado incapacitado na sua difícil reinserção, mas um príncipe no exílio que recusa justamente toda a reabilitação "social"; isso é ilustrado de forma impressionante por dois episódios do filme, duas incursões de Ventura num espaço onde está deslocado, dois confrontos com dois irmãos de pele que jogaram o jogo da integração. Antes de mais, a visita ao apartamento novo onde o empregado da câmara municipal, de frente para a janela, enumera as vantagens que os equipamentos desportivos e culturais do bairro vão trazer à "esposa" e às "crianças" de Ventura. Este, silhueta negra de costas em primeiro plano, levanta lentamente um braço majestoso na direção do teto: "Há muitas aranhas", diz ele simplesmente. Num só gesto, a relação entre o administrador da habitação social e o seu devedor inverteu-se. O antigo pedreiro reuniu na sua atitude duas ciências separadas pela tradição: a arte dos meios, a arte mecânica do construtor de edifícios, e a arte dos fins, a arte daquele que sabe como habitar os edifícios. Às paredes brancas inabitáveis, que a televisão de Vanda preenche com o seu rumor contínuo, opõem-se as paredes cinzentas da barraca em que Bete (que ainda não foi realojada) e Ventura, com a cabeça nos joelhos da "filha", interpretam os desenhos fantásticos traçados pelos acasos da vivência e pela humidade da própria habitação: a arte de habitar dos pobres revela-se irmã da leitura de figuras aleatórias celebrada pelo pintor por excelência, Leonardo Da Vinci.
Esta relação entre a grande arte e a arte de viver dos pobres, é o tema do filme. Uma ilustração espetacular é o episódio da visita ao museu, se é que se pode chamar de visita: de facto, o filme transporta-nos sem transição narrativa para uma sala da Fundação Gulbenkian onde Ventura já se encontra, apoiado na parede, entre o Portrait d'Hélène Fourment de Rubens e o Portrait d'homme de Van Dyck. Silenciosamente, um empregado do museu, negro, como o funcionário da câmara municipal, vem dizer a Ventura que saia, tirando um lenço para limpar as marcas do intruso no chão, tal como o funcionário público já tinha feito, limpando as manchas da sua cabeça da parede branca do apartamento novo. Mais tarde vem buscar Ventura, sentado meditativo num sofá Régence, e fá-lo sair, sempre em silêncio, pela porta de serviço. O segurança está satisfeito com o seu trabalho: não tem nada a ver com a fauna cosmopolita e trafulha dos hipermercados. Aqui, diz ele sobriamente a Ventura, temos paz, a não ser quando vêm pessoas como nós, o que é raro. Ventura não revela ao que vem. Sentado abaixo dele e sem o olhar, com as árvores do jardim em fundo, Ventura fala do país de onde veio, do pântano que era este terreno cheio de sapos que se multiplicavam, terreno que ele cavou e limpou, e onde colocou pedras e relva, apontando então com um gesto imperial, o lugar de onde um dia caiu do andaime. Não se trata de opôr o suor e as dores dos construtores de museus ao prazer estético dos ricos. Trata-se de confrontar história com história, espaço com espaço e palavra com palavra. O tratamento da palavra provoca de facto uma ruptura com os dois filmes precedentes. A ficção de "Ossos" acontecia sob o signo de um certo mutismo, o de Tina, a jovem mãe ultrapassada pela vida que gerou. No Quarto de Vanda adoptava, com a aparência do documentário, o tom de conversa entre quarto paredes. Juventude em Marcha instala espaços de silêncio entre os dois regimes bem distintos da palavra. De um lado, há a conversa que continua no novo quarto da Vanda, o quarto da mãe de uma família aumentada e "aburguesada", preenchido pela cama matrimonial de design de supermercado e ocupado continuamente pelo som da televisão cujo ecrã não vemos. Vanda fala do seu difícil regresso à norma no mesmo tom familiar de anteriormente. Ventura não conversa. Muitas vezes cala-se, impondo quer apenas a massa sombria da sua silhueta, quer a força de um olhar que talvez julgue aquilo que vê, ou talvez se perca noutro lugar mas que, em todo o caso, resiste a toda a interpretação. A palavra que emerge deste silêncio, que dele se parece alimentar, varia entre a fórmula lapidar, como um epitáfio ou um hemistíquio de uma tragédia, e a dicção lírica. É deste modo que ele evoca, nas costas de um interlocutor que não o vê, a partida de Cabo Verde num grande avião a 19 de Agosto de 1972 que nos relembra outra partida, aquela de um poeta e dos seus dois amigos num pequeno automóvel, a 31 de Agosto de 1914.
Ao escutar esta palavra bem assimilada que parece emanar diretamente do fundo de um ser e da sua história, mais do que dos lábios de quem fala, é difícil não pensar na arte desses cineastas a quem Pedro Costa consagrou um filme, Danièle Huillet e Jean-Marie Straub. Estes transformavam em partitura de oratório as histórias de Vittorini para as pôr na boca de homens do povo orgulhosos, que escandindo o texto sem olhar para nenhum interlocutor, testemunhavam a capacidade idêntica dos pobres de mãos hábeis para a linguagem nobre e para a construção de um novo mundo comum. Sentimos aqui, mais do que em qualquer outro filme de Pedro Costa, o eco da lição de cinema dos Straub. O filme, no entanto, apresenta um dispositivo de conjunto heteróclito no que respeita à poética e à política straubianas. A nobreza das vidas vulgares diz-se de dois modos diferentes: o modo de conversação de No Quarto da Vanda e o modo "literário", concordante com esse espaço mítico traçado pelas deambulações de Ventura por entre as casas pobres e os alojamentos novos, entre o passado e o presente, África e Portugal. Mas a grande palavra de que Ventura tem o monopólio, com o prejuízo de por vezes esmagar um pouco Vanda e o que ela diz, é em si mesma construída como um patchwork. Assim o demonstra o soberbo episódio das variações da carta que dá ao filme o seu refrão: uma carta do emigrante para aquela que ficou na terra e que tanto fala do quotidiano do trabalho ou do sofrimento como do amor, prometendo à amada cem mil cigarros, um automóvel, uma dezena de vestidos e um ramo de quatro tostões. Ventura recita a carta, com modulações diferentes, para a ensinar a Lento, o iletrado. Tanto a pronuncia como se estivesse perdido em sonhos, como pelo contrário, o faz com a autoridade do professor que martela as palavras para as fazer entrar numa cabeça teimosa. Num certo sentido é a grande posse de Ventura, a grandeza literária do autodidata que "cada dia aprende novas palavras, belas palavras, apenas para nós dois, à nossa medida, como um pijama de seda fina". Ora, Pedro Costa compô-la a partir de duas fontes diferentes: verdadeiras cartas de emigrantes – parecidas com aquelas de que outrora foi mensageiro e que o levaram às Fontainhas – e uma carta de poeta, uma das últimas cartas enviadas do Campo de Flöha por Robert Desnos a Youki. A palavra do poeta francês morto em Terezin funde-se com as dos letrados da imigração para compôr uma partitura do mesmo género que aquela talhada por Danièle Huillet e Jean-Marie Straub para os textos de Vittorini. Lento jamais aprenderá a carta, a qual de resto não necessita mais, mas, num apartamento devastado pelo incêndio, Ventura o louco, o Senhor, estende-lhe a mão, sem o olhar, e concede-lhe a dignidade trágica e o direito a chorar pelos infortúnios do seu amigo, tal como este chora pelos seus.
A diferença de poética é também uma diferença de política. Para afirmar uma dignidade política dos homens do povo idêntica à sua dignidade estética, os Straub rejeitaram a miséria quotidiana das inquietações e das intenções. Os seus operários e camponeses oferecem em direto, perante as únicas potências da natureza e do mito, algumas horas de comunismo, algumas horas de igualdade sensível. Mas Ventura, apesar da carta que conduz o filme, não propõe nenhum comunismo, passado, presente ou por vir. Permanece até ao fim o Estrangeiro, aquele que vem de longe para atestar a possibilidade de cada ser ter um destino e ser igual ao seu destino. Nos filmes Vittorini de Straub, a querela dialética e a capacidade lírica fundiam-se finalmente na epopeia coletiva de um comunismo eterno. Em Pedro Costa não existe unidade épica: a preocupação política não pode, para cantar a glória comum, demitir-se da gestação laboriosa de vidas vulgares. A capacidade dos pobres permanece acantonada entre a conversa familiar de Vanda e o solilóquio trágico de Ventura. Nem horizonte aberto de aventura comum nem punho cerrado de rebelde irreconciliado para concluir Juventude em Marcha. O filme termina, como numa pirueta, no quarto da Vanda, onde Ventura, o homem que inventa filhos, se dedica ao trabalho de baby-sitter, sem que saibamos bem se é ele que guarda a pequena filha de Vanda, se é a criança que vela pelo repouso do homem cansado. A fé na arte que testemunha a grandeza do pobre – a grandeza de um homem comum – brilha aqui mais que nunca. Mas não uma fé que se assemelhe ao afirmar da salvação. É por aí talvez, que passa a não-reconciliação de que Pedro Costa é hoje o primeiro poeta.

Jacques Rancière

(Publicação original: “La lettre de Ventura”. Trafic, Paris, n.61. Esta tradução brasileira foi publicada pela primeira vez num dossiê especial sobre Pedro Costa da Revista Devires – cinema e humanidades. Retirado do catálogo “O Cinema de Pedro Costa” e no link: 
http://www.porta33.com/eventos/content_eventos/Pedro_costa/pedro_costa_juventude_em_marcha.html)

sexta-feira, 22 de maio de 2015

Abaddon, o arquivista


Guarda do Subsolo (Jigoku no keibîn), de Kiyoshi Kurosawa (Japão, 1992)

“(…) O fantástico nunca ‘vem livre, solto’; subordinado ao mundo material, suas injunções e limites; o lado negro da fantasia sempre foi visto como a sombra lançada pelo nosso mundo cotidiano, do qual é totalmente dependente e no qual adquire seu pleno significado”.
J.P. Telotte, “Dreams of darkness, Fantasy and the films of Val Lewton”.
“Que me importa minha sombra! que ela me persiga! Eu me salvarei, eu vou lhe escapar…(…) Mas quando me vi no espelho, dei um grito e meu coração se estilhaçou: pois não foi a mim mesmo que vi, mas a face zombadora de um demônio”.
Nietzsche, “Assim Falou Zaratustra”. 
“Minha é a vingança e a recompensa; (…) porque o dia da sua ruína está próximo, e as coisas que lhes hão de suceder se apressam a chegar”.
Deuteronômio, 32:35.
A frontalidade dos clássicos manifesta; em Guarda do Subsolo (1992), de Kiyoshi Kurosawa, inquire e confere. A frontalidade,  as straight lines do cinema clássico voltam agora com uma tendência entomológica e investigadora; a lição nos é sugerida desde Litchtenberg: “Um livro é um espelho; se um macaco nele se olhar, jamais enxergará um apóstolo”. Se a fórmula define o livro, quanto mais um filme!, este caleidoscópio de espelhos em movimento, refratando-se, julgando-se, entreolhando-se e entrechocando-se de um campo a outro… Exerça desapaixonadamente – no cinema de Kurosawa, podemos mesmo falar, sem pudor nem ironia, em uma neutralidade científica na inquirição do espaço-tempo, por mais fantasmagórico que este seja – o dom da contemplação, e logo o que lhe parece mais próximo e casual vai revelar uma faceta imprevisível, pois será erodido pelo tempo, este grande deflagrador de fantasmagorias. Escrevo “revelar” no sentido fotográfico mesmo, pois uma prise de vue (tomada) é um fantasma, uma visão que só se revela a posteriori, diferida no tempo – um naco de tempo que se encarnou num plano.
Há uma caligrafia kafkiana transposta para este filme, na qual o escabroso e o monstruoso nascem como efeitos de uma escavação sistemática do anódino e do casual, da dosada acumulação de insignificâncias rotineiras, desde que registradas com a atenção e a tensão devidas – e por tensão ou suspense, leia-se: durações incomensuráveis dedicadas à descrição de notas de rodapé do cotidiano, como fazer um café ou dar um cochilo sobre a mesa do escritório. Pascal Bonitzer, num texto precisamente clínico sobre Hitchcock, assinala a importância em seu cinema – o componente indispensável da mística de seu suspense – do que Freud identificou como unheimlich, ou seja: o congraçamento em um mesmo evento do familiar e do insólito, do casual e do absolutamente extraordinário, do Acaso e da Graça, ou – como geralmente em Hitchcock, Kafka, Hoffman, nos filmes de Tourneur e não só aqui, mas em toda obra ulterior de Kurosawa – do monstruoso e do banal, do chão e do fantástico, do registro neutro e do evento ontologicamente escandaloso. “A narrativa de Hitchcock obedece a esta lei: quanto mais uma situação é a priori ‘qualquer’, familiar, convencional, mais ela é suscetível de tornar-se perturbadora, unheimlich, por pouco que um dos elementos de que ela se compõe ‘comece a girar do lado contrário ao vento’. Todo o trabalho do roteiro e da mise en scène consiste em agenciar e desenvolver esta paisagem natural com seu elemento perverso, e o que se segue daí. O suspense, no oposto da montagem acelerada das corridas-perseguições, reside na insistência da mise en scène sobre a contaminação progressiva, a perversão progressiva ou súbita da paisagem inicial. A mise en scène, a montagem do suspense insistem junto ao público sobre o elemento perverso”. O suspense se funda sobre uma pequena diferença, cicatriz ou traço, desde que devidamente incrustados – ou infiltrados – na integridade de um organismo em aparência saudável – raso, chão, casual, normal.
 Aqui, o monstruoso nasce desta (nesta) conflagração de rituais e interlocuções humanas, demasiado humanas – na justa medida em que nos são apresentadas com a riqueza de detalhes e de duração que sua consecução requer -, a vidinha chula e chulé de uma repartição pública, situada (sitiada) nos fundos de um prédio de escritórios que não por caso me recorda o Empire State Building, mas visto sob a perspectiva do monstro Kong, no filme de 1933 – King Kong identifica no prédio de escritórios, a terceira maravilha do capitalismo, “Boulevard Haussman” dos 1930, a sua montanha natal, onde reinava soberano. A aura fantástica do filme é colocada sob a égide de dois monstros clássicos do cinema, aos quais Fujimaru (Yutaka Matsushige) é associado: King Kong e Nosferatu. Toda vez em que nos apresenta uma cena com o gigantesco segurança do prédio de escritórios – ex-lutador de sumô e suposto assassino da mulher e seu amante -, Kurosawa corta para um plano geral do Empire State japa. A correlação é clara: há um ovni que habita este lugar, entre nós, há um ser bigger than life - como Kong ou Nosferatu – que não pertence a esta comezinha, achatada igrejinha (negra embora) pequeno-burguesa.
unheimlich aparece assim em duas instâncias: na descrição entomológica, estritamente catalogadora, do cotidiano do escritório, e no fato de que esta alteridade radical, este ovni não passa justamente de um segurança de escritório; em aparência integrado àquele submundo middle class - função ou arrimo do sistema -, ele é Aquele encarregado de o solapar. E há uma soturna ironia na forma como o Abaddon da Reificação executa suas vítimas: literalmente arquivando-as, dando um uso redentor (um uso enfim, desligado da subserviência à troca) à atividade emblemática de sua alienação. Guarda do Subsolo é um filme de fantasmas que se traveste de slasher film para melhor sobreviverele precisa – à imagem e semelhança da criatura sobre-humana que dá título ao filme – passar por um mero segurança para exercer o ofício de um anjo exterminador. “Quando terminar o que vim fazer, logo terei de voltar para onde vim”, relata com ar taciturno ao seu provisório Knock, um segurança mais velho que se serve dele para vingar as humilhações sofridas no escritório; precisa mimetizar-se em Mesmo para expiar-se (expiar-nos) em Outro. Kurosawa, outro contrabandista.
E Nosferatu? Kurosawa enfatiza sempre a entrada no quadro de Fujimaru (geralmente pela esquerda, como o navio empesteado pelo monstro no filme de Murnau). O monstro é uma figura do limiar; entre os mortos e os vivos, a aurora e o crepúsculo, o humano e o inumano. Limítrofe ontológica e figurativamente – Nosferatu é um collage de rato e porco -, no meio do caminho, este no man’s land em que somos Mesmo e Outro. Desde os curtas dirigidos por Griffith para a Biograph, sabemos o que significa ocupar este limiar, esta zona que nos arrasta insensível mas inapelavelmente para o fora de quadro: é penetrar na esfera do fantasma, é virar uma imagem. Sem mais. Não mais habitar e  ser habitado por um plano (e o ser central e frontal da estética clássica tem o seu sentido nesta coalescência absoluta entre o décor e o corpo do personagem, entre mundo e homem). Não mais agir e ser agido, afetar e afetado. Aqui, a reciprocidade fenomenológica é suspensa; è finito o “olhar e ser olhado” encenado paradigmaticamente nas Meninas, campo e contracampo (em reversível determinação); temos agora apenas um ser “desenquadrado”, condição meramente negativa; não um plano de cinema, mais juste une image. E Kurosawa designa com esfuziante ciranda de efeitos de “cinema primitivo” este caráter espectral do personagem: além do trabalho com os limites do quadro, jogo de silhuetas – performando um teatrinho de sombras pós-tudo, entre Secondo de Chómon e Night of the Demon-, e este retardo epifânico, sistematizado por Nosferatu, que consiste não em mostrar – o que  haveria para se mostrar de um fantasma, ente feito puramente de possível, de chiaroscuro amniótico?-, mas em dar a vera aparição figurada no rosto da vítima. O Monstro é para um Outro; se ele existe no fora de quadro ( como limiar de ou rastro de), o seu efeito de presença se dá como fora de campo; ou seja: no tempo. Ele só é percebido como diferença, só se dá como aquilo que se retrai; cabe unicamente à vítima, àquele que detém a vidência do fantasma, manifestar a sua presença.
Há uma bela página de Lotte Eisner sobre estes efeitos de suspensão espaço-temporal do fantasma no filme de Murnau que poder-se-iam aplicar ipsis litteris ao filme de Kurosawa:
“Murnau cria a atmosfera de pavor por meio de movimentos mais diretos em direção à câmera: a forma horrorosa do vampiro avança, com uma lentidão exasperante, da profundidade extrema de um plano em direção ao outro, onde se torna subitamente gigantesca. Murnau captou toda a potência visual que emana do encadeamento de planos diversos, e dirige com uma virtuosidade verdadeiramente genial esta gama de planos, dosando o avanço do vampiro ao mostrar durante alguns segundos o efeito que sua visão produz sobre o jovem aterrorizado. Ao invés de nos apresentar gradualmente todo o trajeto, ele rompe a aproximação por meio de uma porta fechada bruscamente, com o fito de estacar a terrível aparição; e a visão desta porta detrás da qual sabemos que o perigo nos espreita nos mantém em suspense”.
Mas aqui há uma diferença notável. Ao contrário de Murnau, que usa a profundidade de campo para mostrar a dimensão cósmica do confronto com Nosferatu – as forças de Eros contrapostas às de Thanatos -, verticalizando o campo (com todas as implicações místico-metafísicas que esta verticalização implica), Kurosawa tende a lateralizar as aparições de Fujimaru. Sim, Limiares; entradas e saídas do campo: O cinema contemporâneo inexiste sem eles – sem a sua designação explícita, bem entendido. A foto-reportagem frontal – os instantâneos da repartição – pervertida por um tracking shot centrípeto, que inscreve a alteridade (o fora de quadro, o monstro, o fantástico) na clareira do cotidiano: unheimlich. O cósmico de Murnau aqui se estreita e achata, o romantismo se dessacraliza, o trágico flerta com o caricato, a Floresta negra vira uma Cohab para funcionários públicos de patético trato.
A dor de Nosferatu é a dor de Fujimaru; uma certa exegese clássica – Eisner, Douchet – interpreta Nosferatu como uma espécie de alter ego de Murnau, homossexual solitário vivendo numa Alemanha puritana, que até 1918 ainda colocava na cadeia os seus dandys e quaquás. Como em Nosferatu, esta ferida narcísica – o exílio e o festim de ser um Outro – se traduz numa aparência monstruosa, uma chaga feito carne. O gigantismo do guarda do subsolo é, como a máscara simiesca de Nosferatu, o estigma de uma Natureza violentada, que cobra os direitos do recalque sofrido com o uso atrabiliário da força.
Há uma outra Alteridade, complementar e inversamente proporcional ao guarda, que aparece no filme. É Akiko (Makiko Kuno), a marchande designada para trabalhar naquele meio – um mundo no qual (como Fujimaru) ela não cabe, para o qual não foi feita sob medida; é uma Outra. A máscara casmurra de Akiko é tão impenetrável quanto o hieratismo Nô do serial killer. Ambos sabem-se habitantes de territórios exclusivos, irredutíveis ao domínio do sitcom que os outros personagens ocupam. Aliás, dois “métiers” relatados ao Sublime: a estética (Akiko é marchande), o Sagrado (Fujimaru é um deus exilado, mesmo que por efeito da marijuana). Na presciência mediúnica que possuem um do outro e na intensidade epifânica de seus afrontamentos – Kurosawa restitui ao campo e contracampo o caráter de choque frontal que tinha no cinema primitivo -, são um só.
Ao roubar o brinco de Akiko, Fujimaru sagra sua gemelidade ontológica. “Nunca me esqueça”, é o pedido que lhe faz à hora da morte, tirando o brinco da orelha; é um anelo e uma promessa que se canta aqui. EmNosferatu, há também uma corrente sub-reptícia de Sturm und drang que liga, trágica e estertóricamente, o verdadeiro casal do filme, Ellen (noiva de Hutter) e Nosferatu. Quando Nosferatu segue para Hamburgo, é Ellen quem espera por ele, debruçada sobre uma laguna estéril. Na economia do romantismo que o filme mobiliza, o Feminino expressa uma aspiração à Reconciliação – com o mundo, o cosmo, o Totalmente Outro, em suma: a Morte – que se engendra ao final, com a celebração dos esponsais entre a Noiva fúnebre de Lamermoor e o Werther cadáver, embalsamados pelo beijo do Nada: Requiscet Im Pace.
Há ainda um detalhe intrigante que intensifica o subtexto metafísico de Guarda do Subsolo. Ao matar uma de suas últimas vítimas, Fujimari contempla demorada, lancinantemente, uma gravura de Saturno devorando os filhos, de Goya. Saturno é Cronos, o Tempo – e sabemos na carne e no espelho para onde este “devorando seus filhos” vai nos conduzir. Em seu último tête-a-tête com Akiko, Fujimaru, entre desconsolado e grogue de tanto leucócito (me inclinaria sobretudo à segunda opção), murmura: “Pertenço a  um outro tempo que você”. Akiko retruca: “Não. Você pertence a este mundo”. Nesta declaração de uma origem mítica e uma vindicação escatológica, Fujimaro, em um mesmo movimento, se perde e se eterniza: ao declarar no cartório de ser da linguagem a essência do que é, desvanece-se sua força, mirra sua Hybris, caduca-se sua divindade; a palavra mata a coisa, e não só em Hölderlin e Celan, mas também nesta pérola “contrabandista” que contém virtualmente todos os elementos da cosmologia niilista que Kurosawa vai desenvolver obra afora.
Luiz Soares Júnior
(Texto original: http://revistacinetica.com.br/home/guarda-do-subsolo-jigoku-no-keibin-de-kiyoshi-kurosawa-japao-1992/)