Guarda do Subsolo (Jigoku no keibîn), de Kiyoshi
Kurosawa (Japão, 1992)
“(…) O fantástico nunca ‘vem
livre, solto’; subordinado ao mundo material, suas injunções e limites; o lado
negro da fantasia sempre foi visto como a sombra lançada pelo nosso mundo
cotidiano, do qual é totalmente dependente e no qual adquire seu pleno
significado”.
J.P.
Telotte, “Dreams of darkness, Fantasy and the films of Val Lewton”.
“Que me importa minha sombra! que
ela me persiga! Eu me salvarei, eu vou lhe escapar…(…) Mas quando me vi no
espelho, dei um grito e meu coração se estilhaçou: pois não foi a mim mesmo que
vi, mas a face zombadora de um demônio”.
Nietzsche,
“Assim Falou Zaratustra”.
“Minha é a vingança e a
recompensa; (…) porque o dia da sua ruína está próximo, e as coisas que lhes
hão de suceder se apressam a chegar”.
Deuteronômio, 32:35.
A frontalidade dos clássicos manifesta; em Guarda do Subsolo (1992), de Kiyoshi Kurosawa,
inquire e confere. A frontalidade, as straight lines do cinema clássico voltam
agora com uma tendência entomológica e investigadora; a lição nos é sugerida
desde Litchtenberg: “Um livro é um espelho; se um macaco nele se olhar, jamais
enxergará um apóstolo”. Se a fórmula define o livro, quanto mais um filme!,
este caleidoscópio de espelhos em movimento, refratando-se, julgando-se,
entreolhando-se e entrechocando-se de um campo a outro… Exerça
desapaixonadamente – no cinema de Kurosawa, podemos mesmo falar, sem pudor nem
ironia, em uma neutralidade científica na inquirição do espaço-tempo, por mais
fantasmagórico que este seja – o dom da contemplação, e logo o que lhe parece
mais próximo e casual vai revelar uma faceta
imprevisível, pois será erodido pelo tempo, este grande deflagrador de
fantasmagorias. Escrevo “revelar” no sentido fotográfico mesmo, pois
uma prise de vue (tomada) é um fantasma, uma visão que
só se revela a posteriori, diferida no tempo – um naco de tempo que se encarnou num plano.
Há uma caligrafia kafkiana transposta
para este filme, na qual o escabroso e o monstruoso nascem como efeitos de uma
escavação sistemática do anódino e do casual, da dosada acumulação de
insignificâncias rotineiras, desde que registradas com a atenção e
a tensão devidas – e por tensão ou suspense, leia-se: durações
incomensuráveis dedicadas à descrição de notas de rodapé do cotidiano, como
fazer um café ou dar um cochilo sobre a mesa do escritório. Pascal Bonitzer,
num texto precisamente clínico sobre Hitchcock, assinala a importância em seu
cinema – o componente indispensável da mística de seu suspense – do que Freud
identificou como unheimlich, ou seja: o
congraçamento em um mesmo evento do familiar e do insólito, do casual e do
absolutamente extraordinário, do Acaso e da Graça, ou – como geralmente em
Hitchcock, Kafka, Hoffman, nos filmes de Tourneur e não só aqui, mas em toda
obra ulterior de Kurosawa – do monstruoso e do banal, do chão e
do fantástico, do registro neutro e do evento ontologicamente escandaloso.
“A narrativa de Hitchcock obedece a esta lei: quanto mais uma situação é a
priori ‘qualquer’, familiar, convencional, mais ela é suscetível de tornar-se
perturbadora, unheimlich, por pouco que um dos
elementos de que ela se compõe ‘comece a girar do lado contrário ao vento’.
Todo o trabalho do roteiro e da mise en scène consiste
em agenciar e desenvolver esta paisagem natural com seu elemento perverso, e o
que se segue daí. O suspense, no oposto da montagem acelerada das
corridas-perseguições, reside na insistência da mise en
scène sobre a contaminação progressiva, a perversão
progressiva ou súbita da paisagem inicial. A mise en scène, a
montagem do suspense insistem junto ao público sobre o elemento perverso”. O
suspense se funda sobre uma pequena diferença, cicatriz
ou traço, desde que devidamente incrustados – ou infiltrados – na integridade
de um organismo em aparência saudável – raso, chão, casual, normal.
Aqui, o monstruoso nasce desta (nesta) conflagração de rituais e
interlocuções humanas, demasiado humanas – na justa medida em que nos são
apresentadas com a riqueza de detalhes e de duração que sua consecução
requer -, a vidinha chula e chulé de uma repartição pública, situada (sitiada)
nos fundos de um prédio de escritórios que não por caso me recorda o Empire
State Building, mas visto sob a perspectiva do monstro Kong, no filme de 1933 –
King Kong identifica no prédio de escritórios, a terceira maravilha do
capitalismo, “Boulevard Haussman” dos 1930, a sua montanha natal,
onde reinava soberano. A aura fantástica do filme é colocada sob a égide de
dois monstros clássicos do cinema, aos quais Fujimaru (Yutaka Matsushige) é
associado: King Kong e Nosferatu. Toda vez em que nos apresenta uma cena com o
gigantesco segurança do prédio de escritórios – ex-lutador de sumô e suposto
assassino da mulher e seu amante -, Kurosawa corta para um plano geral do
Empire State japa. A correlação é clara: há um ovni que habita este
lugar, entre nós, há um ser bigger than life -
como Kong ou Nosferatu – que não pertence a esta comezinha, achatada igrejinha
(negra embora) pequeno-burguesa.
O unheimlich aparece assim em duas instâncias: na descrição entomológica, estritamente catalogadora, do cotidiano do escritório, e no fato de que esta alteridade radical, este ovni não passa justamente de um segurança de escritório; em aparência integrado àquele submundo middle class - função ou arrimo do sistema -, ele é Aquele encarregado de o solapar. E há uma soturna ironia na forma como o Abaddon da Reificação executa suas vítimas: literalmente arquivando-as, dando um uso redentor (um uso enfim, desligado da subserviência à troca) à atividade emblemática de sua alienação. Guarda do Subsolo é um filme de fantasmas que se traveste de slasher film para melhor sobreviver; ele precisa – à imagem e semelhança da criatura sobre-humana que dá título ao filme – passar por um mero segurança para exercer o ofício de um anjo exterminador. “Quando terminar o que vim fazer, logo terei de voltar para onde vim”, relata com ar taciturno ao seu provisório Knock, um segurança mais velho que se serve dele para vingar as humilhações sofridas no escritório; precisa mimetizar-se em Mesmo para expiar-se (expiar-nos) em Outro. Kurosawa, outro contrabandista.
E Nosferatu? Kurosawa enfatiza sempre a entrada no quadro de Fujimaru (geralmente pela esquerda, como o navio empesteado pelo monstro no filme de Murnau). O monstro é uma figura do limiar; entre os mortos e os vivos, a aurora e o crepúsculo, o humano e o inumano. Limítrofe ontológica e figurativamente – Nosferatu é um collage de rato e porco -, no meio do caminho, este no man’s land em que somos Mesmo e Outro. Desde os curtas dirigidos por Griffith para a Biograph, sabemos o que significa ocupar este limiar, esta zona que nos arrasta insensível mas inapelavelmente para o fora de quadro: é penetrar na esfera do fantasma, é virar uma imagem. Sem mais. Não mais habitar e ser habitado por um plano (e o ser central e frontal da estética clássica tem o seu sentido nesta coalescência absoluta entre o décor e o corpo do personagem, entre mundo e homem). Não mais agir e ser agido, afetar e afetado. Aqui, a reciprocidade fenomenológica é suspensa; è finito o “olhar e ser olhado” encenado paradigmaticamente nas Meninas, campo e contracampo (em reversível determinação); temos agora apenas um ser “desenquadrado”, condição meramente negativa; não um plano de cinema, mais juste une image. E Kurosawa designa com esfuziante ciranda de efeitos de “cinema primitivo” este caráter espectral do personagem: além do trabalho com os limites do quadro, jogo de silhuetas – performando um teatrinho de sombras pós-tudo, entre Secondo de Chómon e Night of the Demon-, e este retardo epifânico, sistematizado por Nosferatu, que consiste não em mostrar – o que haveria para se mostrar de um fantasma, ente feito puramente de possível, de chiaroscuro amniótico?-, mas em dar a vera aparição figurada no rosto da vítima. O Monstro é para um Outro; se ele existe no fora de quadro ( como limiar de ou rastro de), o seu efeito de presença se dá como fora de campo; ou seja: no tempo. Ele só é percebido como diferença, só se dá como aquilo que se retrai; cabe unicamente à vítima, àquele que detém a vidência do fantasma, manifestar a sua presença.
Há uma bela página de Lotte Eisner sobre estes efeitos de suspensão espaço-temporal do fantasma no filme de Murnau que poder-se-iam aplicar ipsis litteris ao filme de Kurosawa:
“Murnau cria a atmosfera de pavor por meio de movimentos mais diretos em direção à câmera: a forma horrorosa do vampiro avança, com uma lentidão exasperante, da profundidade extrema de um plano em direção ao outro, onde se torna subitamente gigantesca. Murnau captou toda a potência visual que emana do encadeamento de planos diversos, e dirige com uma virtuosidade verdadeiramente genial esta gama de planos, dosando o avanço do vampiro ao mostrar durante alguns segundos o efeito que sua visão produz sobre o jovem aterrorizado. Ao invés de nos apresentar gradualmente todo o trajeto, ele rompe a aproximação por meio de uma porta fechada bruscamente, com o fito de estacar a terrível aparição; e a visão desta porta detrás da qual sabemos que o perigo nos espreita nos mantém em suspense”.
Mas aqui há uma diferença notável. Ao contrário de Murnau, que usa a profundidade de campo para mostrar a dimensão cósmica do confronto com Nosferatu – as forças de Eros contrapostas às de Thanatos -, verticalizando o campo (com todas as implicações místico-metafísicas que esta verticalização implica), Kurosawa tende a lateralizar as aparições de Fujimaru. Sim, Limiares; entradas e saídas do campo: O cinema contemporâneo inexiste sem eles – sem a sua designação explícita, bem entendido. A foto-reportagem frontal – os instantâneos da repartição – pervertida por um tracking shot centrípeto, que inscreve a alteridade (o fora de quadro, o monstro, o fantástico) na clareira do cotidiano: unheimlich. O cósmico de Murnau aqui se estreita e achata, o romantismo se dessacraliza, o trágico flerta com o caricato, a Floresta negra vira uma Cohab para funcionários públicos de patético trato.
A dor de Nosferatu é a dor de Fujimaru; uma certa exegese clássica – Eisner, Douchet – interpreta Nosferatu como uma espécie de alter ego de Murnau, homossexual solitário vivendo numa Alemanha puritana, que até 1918 ainda colocava na cadeia os seus dandys e quaquás. Como em Nosferatu, esta ferida narcísica – o exílio e o festim de ser um Outro – se traduz numa aparência monstruosa, uma chaga feito carne. O gigantismo do guarda do subsolo é, como a máscara simiesca de Nosferatu, o estigma de uma Natureza violentada, que cobra os direitos do recalque sofrido com o uso atrabiliário da força.
Há uma outra Alteridade, complementar e inversamente proporcional ao guarda, que aparece no filme. É Akiko (Makiko Kuno), a marchande designada para trabalhar naquele meio – um mundo no qual (como Fujimaru) ela não cabe, para o qual não foi feita sob medida; é uma Outra. A máscara casmurra de Akiko é tão impenetrável quanto o hieratismo Nô do serial killer. Ambos sabem-se habitantes de territórios exclusivos, irredutíveis ao domínio do sitcom que os outros personagens ocupam. Aliás, dois “métiers” relatados ao Sublime: a estética (Akiko é marchande), o Sagrado (Fujimaru é um deus exilado, mesmo que por efeito da marijuana). Na presciência mediúnica que possuem um do outro e na intensidade epifânica de seus afrontamentos – Kurosawa restitui ao campo e contracampo o caráter de choque frontal que tinha no cinema primitivo -, são um só.
Ao roubar o brinco de Akiko, Fujimaru sagra sua gemelidade ontológica. “Nunca me esqueça”, é o pedido que lhe faz à hora da morte, tirando o brinco da orelha; é um anelo e uma promessa que se canta aqui. EmNosferatu, há também uma corrente sub-reptícia de Sturm und drang que liga, trágica e estertóricamente, o verdadeiro casal do filme, Ellen (noiva de Hutter) e Nosferatu. Quando Nosferatu segue para Hamburgo, é Ellen quem espera por ele, debruçada sobre uma laguna estéril. Na economia do romantismo que o filme mobiliza, o Feminino expressa uma aspiração à Reconciliação – com o mundo, o cosmo, o Totalmente Outro, em suma: a Morte – que se engendra ao final, com a celebração dos esponsais entre a Noiva fúnebre de Lamermoor e o Werther cadáver, embalsamados pelo beijo do Nada: Requiscet Im Pace.
Há ainda um detalhe intrigante que intensifica o subtexto metafísico de Guarda do Subsolo. Ao matar uma de suas últimas vítimas, Fujimari contempla demorada, lancinantemente, uma gravura de Saturno devorando os filhos, de Goya. Saturno é Cronos, o Tempo – e sabemos na carne e no espelho para onde este “devorando seus filhos” vai nos conduzir. Em seu último tête-a-tête com Akiko, Fujimaru, entre desconsolado e grogue de tanto leucócito (me inclinaria sobretudo à segunda opção), murmura: “Pertenço a um outro tempo que você”. Akiko retruca: “Não. Você pertence a este mundo”. Nesta declaração de uma origem mítica e uma vindicação escatológica, Fujimaro, em um mesmo movimento, se perde e se eterniza: ao declarar no cartório de ser da linguagem a essência do que é, desvanece-se sua força, mirra sua Hybris, caduca-se sua divindade; a palavra mata a coisa, e não só em Hölderlin e Celan, mas também nesta pérola “contrabandista” que contém virtualmente todos os elementos da cosmologia niilista que Kurosawa vai desenvolver obra afora.
Luiz Soares JúniorO unheimlich aparece assim em duas instâncias: na descrição entomológica, estritamente catalogadora, do cotidiano do escritório, e no fato de que esta alteridade radical, este ovni não passa justamente de um segurança de escritório; em aparência integrado àquele submundo middle class - função ou arrimo do sistema -, ele é Aquele encarregado de o solapar. E há uma soturna ironia na forma como o Abaddon da Reificação executa suas vítimas: literalmente arquivando-as, dando um uso redentor (um uso enfim, desligado da subserviência à troca) à atividade emblemática de sua alienação. Guarda do Subsolo é um filme de fantasmas que se traveste de slasher film para melhor sobreviver; ele precisa – à imagem e semelhança da criatura sobre-humana que dá título ao filme – passar por um mero segurança para exercer o ofício de um anjo exterminador. “Quando terminar o que vim fazer, logo terei de voltar para onde vim”, relata com ar taciturno ao seu provisório Knock, um segurança mais velho que se serve dele para vingar as humilhações sofridas no escritório; precisa mimetizar-se em Mesmo para expiar-se (expiar-nos) em Outro. Kurosawa, outro contrabandista.
E Nosferatu? Kurosawa enfatiza sempre a entrada no quadro de Fujimaru (geralmente pela esquerda, como o navio empesteado pelo monstro no filme de Murnau). O monstro é uma figura do limiar; entre os mortos e os vivos, a aurora e o crepúsculo, o humano e o inumano. Limítrofe ontológica e figurativamente – Nosferatu é um collage de rato e porco -, no meio do caminho, este no man’s land em que somos Mesmo e Outro. Desde os curtas dirigidos por Griffith para a Biograph, sabemos o que significa ocupar este limiar, esta zona que nos arrasta insensível mas inapelavelmente para o fora de quadro: é penetrar na esfera do fantasma, é virar uma imagem. Sem mais. Não mais habitar e ser habitado por um plano (e o ser central e frontal da estética clássica tem o seu sentido nesta coalescência absoluta entre o décor e o corpo do personagem, entre mundo e homem). Não mais agir e ser agido, afetar e afetado. Aqui, a reciprocidade fenomenológica é suspensa; è finito o “olhar e ser olhado” encenado paradigmaticamente nas Meninas, campo e contracampo (em reversível determinação); temos agora apenas um ser “desenquadrado”, condição meramente negativa; não um plano de cinema, mais juste une image. E Kurosawa designa com esfuziante ciranda de efeitos de “cinema primitivo” este caráter espectral do personagem: além do trabalho com os limites do quadro, jogo de silhuetas – performando um teatrinho de sombras pós-tudo, entre Secondo de Chómon e Night of the Demon-, e este retardo epifânico, sistematizado por Nosferatu, que consiste não em mostrar – o que haveria para se mostrar de um fantasma, ente feito puramente de possível, de chiaroscuro amniótico?-, mas em dar a vera aparição figurada no rosto da vítima. O Monstro é para um Outro; se ele existe no fora de quadro ( como limiar de ou rastro de), o seu efeito de presença se dá como fora de campo; ou seja: no tempo. Ele só é percebido como diferença, só se dá como aquilo que se retrai; cabe unicamente à vítima, àquele que detém a vidência do fantasma, manifestar a sua presença.
Há uma bela página de Lotte Eisner sobre estes efeitos de suspensão espaço-temporal do fantasma no filme de Murnau que poder-se-iam aplicar ipsis litteris ao filme de Kurosawa:
“Murnau cria a atmosfera de pavor por meio de movimentos mais diretos em direção à câmera: a forma horrorosa do vampiro avança, com uma lentidão exasperante, da profundidade extrema de um plano em direção ao outro, onde se torna subitamente gigantesca. Murnau captou toda a potência visual que emana do encadeamento de planos diversos, e dirige com uma virtuosidade verdadeiramente genial esta gama de planos, dosando o avanço do vampiro ao mostrar durante alguns segundos o efeito que sua visão produz sobre o jovem aterrorizado. Ao invés de nos apresentar gradualmente todo o trajeto, ele rompe a aproximação por meio de uma porta fechada bruscamente, com o fito de estacar a terrível aparição; e a visão desta porta detrás da qual sabemos que o perigo nos espreita nos mantém em suspense”.
Mas aqui há uma diferença notável. Ao contrário de Murnau, que usa a profundidade de campo para mostrar a dimensão cósmica do confronto com Nosferatu – as forças de Eros contrapostas às de Thanatos -, verticalizando o campo (com todas as implicações místico-metafísicas que esta verticalização implica), Kurosawa tende a lateralizar as aparições de Fujimaru. Sim, Limiares; entradas e saídas do campo: O cinema contemporâneo inexiste sem eles – sem a sua designação explícita, bem entendido. A foto-reportagem frontal – os instantâneos da repartição – pervertida por um tracking shot centrípeto, que inscreve a alteridade (o fora de quadro, o monstro, o fantástico) na clareira do cotidiano: unheimlich. O cósmico de Murnau aqui se estreita e achata, o romantismo se dessacraliza, o trágico flerta com o caricato, a Floresta negra vira uma Cohab para funcionários públicos de patético trato.
A dor de Nosferatu é a dor de Fujimaru; uma certa exegese clássica – Eisner, Douchet – interpreta Nosferatu como uma espécie de alter ego de Murnau, homossexual solitário vivendo numa Alemanha puritana, que até 1918 ainda colocava na cadeia os seus dandys e quaquás. Como em Nosferatu, esta ferida narcísica – o exílio e o festim de ser um Outro – se traduz numa aparência monstruosa, uma chaga feito carne. O gigantismo do guarda do subsolo é, como a máscara simiesca de Nosferatu, o estigma de uma Natureza violentada, que cobra os direitos do recalque sofrido com o uso atrabiliário da força.
Há uma outra Alteridade, complementar e inversamente proporcional ao guarda, que aparece no filme. É Akiko (Makiko Kuno), a marchande designada para trabalhar naquele meio – um mundo no qual (como Fujimaru) ela não cabe, para o qual não foi feita sob medida; é uma Outra. A máscara casmurra de Akiko é tão impenetrável quanto o hieratismo Nô do serial killer. Ambos sabem-se habitantes de territórios exclusivos, irredutíveis ao domínio do sitcom que os outros personagens ocupam. Aliás, dois “métiers” relatados ao Sublime: a estética (Akiko é marchande), o Sagrado (Fujimaru é um deus exilado, mesmo que por efeito da marijuana). Na presciência mediúnica que possuem um do outro e na intensidade epifânica de seus afrontamentos – Kurosawa restitui ao campo e contracampo o caráter de choque frontal que tinha no cinema primitivo -, são um só.
Ao roubar o brinco de Akiko, Fujimaru sagra sua gemelidade ontológica. “Nunca me esqueça”, é o pedido que lhe faz à hora da morte, tirando o brinco da orelha; é um anelo e uma promessa que se canta aqui. EmNosferatu, há também uma corrente sub-reptícia de Sturm und drang que liga, trágica e estertóricamente, o verdadeiro casal do filme, Ellen (noiva de Hutter) e Nosferatu. Quando Nosferatu segue para Hamburgo, é Ellen quem espera por ele, debruçada sobre uma laguna estéril. Na economia do romantismo que o filme mobiliza, o Feminino expressa uma aspiração à Reconciliação – com o mundo, o cosmo, o Totalmente Outro, em suma: a Morte – que se engendra ao final, com a celebração dos esponsais entre a Noiva fúnebre de Lamermoor e o Werther cadáver, embalsamados pelo beijo do Nada: Requiscet Im Pace.
Há ainda um detalhe intrigante que intensifica o subtexto metafísico de Guarda do Subsolo. Ao matar uma de suas últimas vítimas, Fujimari contempla demorada, lancinantemente, uma gravura de Saturno devorando os filhos, de Goya. Saturno é Cronos, o Tempo – e sabemos na carne e no espelho para onde este “devorando seus filhos” vai nos conduzir. Em seu último tête-a-tête com Akiko, Fujimaru, entre desconsolado e grogue de tanto leucócito (me inclinaria sobretudo à segunda opção), murmura: “Pertenço a um outro tempo que você”. Akiko retruca: “Não. Você pertence a este mundo”. Nesta declaração de uma origem mítica e uma vindicação escatológica, Fujimaro, em um mesmo movimento, se perde e se eterniza: ao declarar no cartório de ser da linguagem a essência do que é, desvanece-se sua força, mirra sua Hybris, caduca-se sua divindade; a palavra mata a coisa, e não só em Hölderlin e Celan, mas também nesta pérola “contrabandista” que contém virtualmente todos os elementos da cosmologia niilista que Kurosawa vai desenvolver obra afora.
(Texto original: http://revistacinetica.com.br/home/guarda-do-subsolo-jigoku-no-keibin-de-kiyoshi-kurosawa-japao-1992/)
Nenhum comentário:
Postar um comentário