(Raoul Ruiz, 1979)
Por Daniel
Dalpizzolo
Em A
Hipótese do Quadro Roubado, semelhante ao que fez Orson Welles em Verdades
e Mentiras, Raoul Ruíz parte de uma análise aparentemente técnica
sobre a manifestação artística para, através dela, desafiar seu filme – e
consequentemente a nós, espectadores – por uma aventura que ultrapassa os
limites da narrativa e da encenação cinematográficas – num elegante jogo
metalinguístico barroco e fantasioso. Se Welles, em seu filme de 1973,
questionava a verdade na imagem através de um suposto documentário que a cada
passo dado se mostrava mais e mais falso (talvez seja o filme definitivo sobre
a encenação), aqui Ruiz vai além dessa problemática para adentrar
possibilidades complementares, especialmente a relação que os signos utilizados
para a composição destes quadros (seja um quadro de cinema ou um quadro de
pintura, como os que dão sustentação às observações do personagem), e
posteriormente seu resultado final enquanto imagem, mantêm com o receptor de
arte após seu contato primário com o olhar – aquilo que se converte em
assimilação – e, finalmente, chegando à forma como nós, receptores, reagimos a
eles, numa busca inevitável por sua compreensão.
O personagem
central de A Hipótese do Quadro Roubado,
que conhecemos apenas como O Colecionador, se propõe, na companhia de um
narrador oculto, a compreender a relação entre seis polêmicos quadros de um
pintor impressionista do final do século XVIII – seriam sete caso um deles não
tivesse sumido misteriosamente. O cenário deste jogo é a mansão em que reside o
Colecionador, que se torna palco de uma viagem viva pela arte do artista que o
obceca – o que de imediato também faz lembrar de Arca
Russa, de Alexandr Sokurov, que utiliza-se de um dispositivo
semelhante. A câmera de Ruíz transita pelo pátio coberto por névoa, pelas salas
imensas e por demais cômodos da casa, que parecem ganhar vida apenas quando
preenchidos pelos fragmentos imagéticos dos quadros (ou por eles em sua
integridade), que por sua vez passam a fazer parte dos cenários pelos quais
transita nosso personagem para que, a partir de algumas características
particulares de cada um, ele construa sua teoria de correlação entre as
pinturas, que justificaria a reação agressiva tida a elas à sua época – através
de pequenos elementos que ligariam-nas a um escândalo.
As intenções
de Ruíz, porém, se distanciam gradativamente dos quadros e de seus
significados, objetivo específico de seu personagem e por nós recebido
meramente por suposições. O que há de mais brilhante em A
Hipótese do Quadro Roubado é
como o cineasta vai se utilizando desta obsessão para compôr um filme no qual
todas as informações recebidas parecem filtradas unicamente pelo olhar de seu
personagem, um homem praticamente isolado de todos os fatores externos à obra
do pintor, e que, sugado pelo mistério que elas propõem, vive uma busca
indelével e desgastante por sua compreensão – uma diluição feita através de sua
precisa perícia técnica e que é bem sucedida desde suas escolhas mais
primárias, como a opção pela fotografia em preto e branco, que com sua textura
inexpressiva acaba acachapando tanto as pinturas quanto suas reproduções
tridimensionais em uma mesma realidade, uma realidade possível somente no
cinema ou na mente, jamais na vida.
Ao mesmo tempo
também parece haver algo de muito irônico e bastante verdadeiro na forma com
que Ruíz encerra este breve período que passamos com seu personagem fictício:
suas teorias sobre a obra do pintor vão de ideias pertinentes a outras relações
aparentemente absurdas, mas acabam fazendo com que ele, por fim, deposite suas
esperanças de compreensão plena das intenções do artista no famigerado quadro
roubado, como se fosse ele a chave para o enigma de sua arte. O que possibilita
algumas reflexões interessantes sobre o consumo e também sobre a própria
existência da arte, que é intrinsecamente dependente do mistério, dos segredos
da expressão de seu artista, que muitas vezes podem permanecer ocultos por
detrás de outros elementos de sua misé en scène. Diante do isolamento do mundo
construído por esta necessidade de compreensão plena, o Colecionador acaba
enfim soando como uma representação da resposta para uma questão bem mais
abrangente: de que a arte, para existir, necessitará eternamente do mistério –
e, em contraponto, a obsessão excessiva pela compreensão íntegra de todos os
seus signos, não obstante, pode tornar-se o equivalente intelectual a uma
prisão.
Texto
original: http://multiplotcinema.com.br/2013/10/a-hipotese-do-quadro-roubado/
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