(Pedro Costa, 2001)
De Sorrisos
Ocultos
1: Eu sei que a
interrogação titular do filme de Pedro Costa não pergunta quem escondeu o
sorriso, nem pergunta quando é que esse sorriso se ocultou. Mas o quem e o
quando parece-me, crescentemente, da maior importância, à medida que revejo o
mais claustral e o mais clausural dos filmes de Pedro Costa. No sentido monacal
de clausura, pois - foi Camilo quem o escreveu - “isto de viver na
clausura não é para todas as compleições”.
Talvez, por isso, tanto tardei em escrever este texto e tanto tenha revisto o filme (em sala ou em casa) à busca do claustro dele. Ou seja, à busca de um espaço exterior e descoberto, onde, mesmo nos mais severos conventos, se demanda a paz e se pode achar a paz. Não estou nada certo de o ter encontrado, como não estou nada certo de saber melhor onde jaz o sorriso oculto, nem quem o ocultou, nem quando foi ocultado.
Mas vamos por partes.
2: Como se sabe, ou se é suposto saber, este filme situa-se numa sala de montagem do Fresnoy, perto de Tourcoing, no Pas-de-Calais, onde Jean-Marie Straub e Danièle Huillet montaram a terceira versão do seu filme Sicilia!.
50% das imagens dele são imagens de Sicilia!, do qual seguimos, por ordem cronológica, algumas das seqüências, ou alguns planos dessas seqüências. Para além de Sicilia!, são-nos mostradas também algumas imagens (comparativamente poucas) de Chronik der Anna Magdalena Bach, obra de 1968, realizada trinta e dois anos antes de Sicilia!. Dos 24 filmes Straub-Huillet, Chronik é o terceiro e Sicilia! o vigésimo segundo, como, aliás, o próprio Straub o sublinha a certa altura do filme.
No entanto, desviando-me da trindade - tomista ou marxista - idéia-matéria-forma, sobre a qual Straub insiste com particular veemência, parece-me legítimo dizer - até porque estou a falar de um filme de Pedro Costa e não de um filme dos Straub - que a obra straubiana com quem mais rima, não éSicilia! nem Chronik, mas Von heute auf morgen, o filme dos Straub imediatamente anterior a Sicilia!.
Como se sabe, ou se é suposto saber, Von heute auf morgen baseia-se na ópera homônima de Schönberg, terceira e última das óperas do compositor, estreada a 1 de Fevereiro de 1930. O libreto, da autoria da mulher de Schönberg, Gertrud, sob o pseudônimo de Max Blonda (pseudônimo masculino, pois) situa a ação num apartamento da alta burguesia, regressado a casa, noite alta, após uma festa. Tudo o que se passa, passa-se durante a noite, uma “noite branca” em vários sentidos, até ao romper do dia. Recorrendo a uma tradição, velha como as “comédias de enganos”, a intriga varia sobre o “on ne badine pas avec l’amour”, com a mulher a provocar os ciúmes do marido e a tentar salvar o casamento da rotina e da superficialidade. Resumindo ainda mais, a conjugalidade é o grande tema dessa noite entre o hoje e o amanhã, para me refugiar na tradução literal de Von heute auf morgen. A “velha fidelidade” ou a “moderna infidelidade”. Por alguma razão, Schönberg acabou a ópera com uma criança - o filho do casal - a perguntar à mãe o que é que quer dizer “pessoas modernas”.
Ao contrário do que
fizeram em 1974, quando adaptaram, também de Schönberg, Moses und Aaron,
os Straub não recorreram a décors ditos “naturais” para esta
segunda incursão no mundo do escritor vienense. Pela primeira e única vez na
sua obra, filmaram tudo em estúdio, “numa incerteza entre o teatro e a vida”. E
só fugiram ao texto da ópera, uma única vez. No final, após a pergunta da
criança, filmaram um muro com um grafito que, durante a rodagem, ocasionalmente
lhes chamara a atenção. Wo liegt euer Lacheln begraben? O que
se pode traduzir por onde jaz o teu sorriso oculto? ou, na mais explicativa
tradução francesa (escolhida por Pedro Costa para título original do seu
filme) Où gît votre sourire enfoui?, vertido mais
elipticamente, no titulo português, como Onde Jaz o Teu Sorriso?.
Nem o marido nem a mulher da ópera formulam, alguma vez, nesses termos, a pergunta sobre o que aconteceu ao amor deles, mas há múltiplas referências ao muito que mudaram e o marido, a dado passo, exprime mesmo saudade pelo brilho do olhar dela, o brilho de quando casaram, o brilho que ele já não vê. Aliás, é o tempo e a passagem do tempo o que domina a ópera de Schönberg (e o filme dos Straub), como a questão da modernidade, da verdadeira modernidade (a de Schönberg, utilizando, pela primeira vez, o dodecafonismo serial numa obra cênica), à falsa modernidade, personificada no “casal livre” da ópera. Como escreveu Andreas Maul: “Schönberg, compositor ‘moderno’ por excelência, troça, na sua ópera, de uma ‘modernidade’ mal entendida. Os diálogos ligeiros conferem à obra a aparência de uma ‘ópera-bufa’, com repetido recurso ao coloquial para a assemelhar ao nível e à desenvoltura de um sketch musical”.
3: A conversa vai estranha.
Se vim para falar de
um filme de Pedro Costa, sobre e com os Straub, filme que tem como matéria o
filme Sicilia! e não o filme Von heute auf morgen,por
quê e para quê perder tanto tempo e espaço com Schönberg e com o filme dos
Straub sobre a ópera de Schönberg?
Porque, na minha opinião (às vezes convém ser pedagógico) penso, genericamente, que tudo quanto disse se aplica tanto à ópera de Schönberg como ao filme de Pedro Costa; porque Pedro Costa, ao escolher para título do seu filme, uma frase daquele filme, me reenviou (não julgo das suas intenções, penso em fatos) às três questões maiores que atravessam o cinema dos Straub e o cinema dele, e que, elíptica ou explicitamente, são as três questões maiores que atravessam a ópera de Schönberg.
a) Concebeu o seu
filme como uma “arte poética”, ou seja, como uma reflexão sobre o que o cinema
é para os Straub e para ele. Situando-o num estúdio (não num estúdio de cinema,
mas numa sala de montagem de um moderno estúdio de artes) deixou-nos na mesma
incerteza entre o teatro e a vida (incerteza entre o cinema e a vida) em que os
Straub nos quiseram deixar em Von heute auf morgen, ou, mais
aventurosamente, em toda a sua obra. Do estúdio, nunca se sai do filme. Da sala
de montagem sai incessantemente Jean-Marie Straub (para um corredor que nunca
saberemos nem donde vem nem para onde vai) e sai Pedro Costa, com os Straub,
por três vezes: duas para um auditório onde Straub, no lugar de professor,
expõe aos seus alunos que participaram no mesmo atelier, as suas confissões
maiores sobre o cinema e a vida; uma, ao final, quando o par abandona (fim de
um dia de trabalho) a sala de montagem e se prepara para sair para o exterior.
Eventualmente,
Danièle Huillet saiu, mas Jean-Marie Straub detém-se num patamar a espreitar
para o interior de um auditório (não vemos o que ele vê, nem sabemos o que ele
espreita) e, depois de algum tempo como voyeur, senta-se no degrau
de uma escada, e fica de cabeça entre as mãos, em cansaço ou reflexão, até o
plano fundir em negro para o genérico final.
E, enquanto entra e sai, em permanente agitação, em permanente solilóquio, permanentemente a fumar, na sala de montagem (quase todo o filme) não cessa de expor a sua “arte poética” (a sua teoria de cinema) quer recorrendo à teoria, quer contando histórias, quer socorrendo-se da história do cinema (Chaplin, Eisenstein, Dreyer, Bresson, Buñuel, Nicholas Ray, Godard, Cassavetes, etc., são dos muitos autores citados).
Mas a arte leva
consigo uma espécie de rudeza, como dizia o velho Mathias Ayres. Straub não é
um teórico, ou não é sobretudo um teórico. E a sua “arte poética” exprime-se
sobretudo ligada à prática, ou seja à montagem (ou remontagem) do seu
filme Sicilia!, tão cerne deste filme como o corpo e as vestes
da mulher o eram na ópera de Schönberg. Essa é a matéria (para
voltar ao vocabulário straubiano) com que Pedro Costa deu forma à
sua idéia de um filme sobre os Straub. E através da qual nos
comunicou a sua própria arte poética, ou seja a sua absorção da arte poética
dos Straub na arte poética dele. Herdeira da deles mas não inteiramente coincidente
com a deles.
b) Subjacente ao
filme (subjacente?) está também a reflexão sobre a modernidade no cinema, sobre
o “was ist das die Modernitat”, modificando muito pouco a pergunta final da
criança de Von heute auf morgen.
Longe vão os anos 60
e 70 em que o cinema dos Straub era o nec plus ultra dessa
modernidade. As “pessoas modernas” hoje, ultrapassados até os chavões sem
sentido do que chegou a ser chamado “pós-modernismo” (a expressão mais
contraditória nos termos que inventar se pôde) rejeitam esse cinema como
relíquia pré-histórica, último suspiro de uma raça em vias de extinção, que
acreditava em arte, em cinema como este e em cinema como forma de expressão
individual e coletiva. O cinema dos Straub - hoje - como o cinema de Pedro
Costa, é um cinema de resistência, à margem de qualquer discurso dominante.
Onde está a modernidade? No fundo daquela sala de montagem, onde Jean-Marie Straub e Danièle Huillet lutam, fotograma a fotograma, para chegar à forma que exprima com fidelidade a idéia deles, dedicando horas de tempo a segundos de filme?
Ou no que se passa lá fora, nos outros estúdios de cinema, nas produções que são vistas por milhões e que dão milhões a ganhar?
A resposta de Pedro Costa - como a dos Straub - é inequívoca. Mesmo que sejam os últimos, serão fiéis até ao fim. Mas é sobre isso - sendo o isso o cinema - que Onde Jaz o Teu Sorriso? é. Como o era, há setenta e alguns anos, a ópera de Schönberg.
O oculto - o sorriso oculto - é o sorriso deste cinema jacente e ressurreto. Neste filme e enquanto se fizerem filmes como este.
c) Mas há também a questão da conjugalidade. Os Straub não são um, são dois e dois que são marido e mulher. Jean-Marie e Danièle. E todo o filme é um filme sobre a relação daquele casal, sobre a paz e a guerra conjugal.
Contrastando com a permanente mobilidade de Jean-Marie, com as suas idas e vindas, com o seu in e com o seu off, temos a imobilidade quase permanente de Danièle Huillet, que nunca se levanta da mesa de montagem (a não ser quando o dia de trabalho acabou), que quase não fala e que nunca desvia os olhos da mesa de montagem. Ele fala, fala, fala. Ela responde-lhe cortantemente, tratando-o sempre por “vous”, ora por “Jean-Marie”, ora por “Straub”. Certamente conhece de cor e salteado todas as histórias que ele conta, certamente antecipa e adivinha as soluções que ele pensou encobrir e ela lhe dá, de fotograma beijado. Mas, como em todas as discussões de velhos casais, repetem-se incessantemente discussões velhas como eles, mas que os apaixonam, irritam ou enfurecem como sempre os apaixonaram, irritaram ou enfureceram.
Li numa critica ao
filme uma comparação que não me parece nada parva: a guerra Jean-Marie -
Danièle parece repetir as guerras conjugais de Spencer Tracy e Katherine
Hepburn nas comédias clássicas de Cukor. Até fisicamente, qualquer deles faz
lembrar os atores citados. Adam’s Rib. Pat and Mike.
Tracy e Hepburn discutiam sobre outras coisas? É bem verdade. Como é bem
verdade que era sobre outra coisa que discutiam o marido e a mulher na ópera de
Schönberg. Mas a violência e a ternura (para
usar termos utilizados por Straub no filme) são idênticos, como idêntica é a
comunhão e a separação. Nenhum deles assume a divisão de trabalho (gênero eu
trato da montagem, você trata da rodagem). Como não vimos a rodagem, não
sabemos do lugar que qualquer deles teve nela. Mas a obra é na montagem comum,
por mais que Straub se afaste da mesa e Danièle se agarre a ela. A rivalidade
está implícita e não precisa de ser explicitada, como a comunhão. A discussão faz
parte do jogo, é regra do jogo, aceito pelos dois, por muito que ou um ou o
outro pareçam impacientar-se com a obstrução. Uma tal conflitualidade
cúmplice ou uma tal cúmplice conflitualidade só pode
ser conjugal. Mesmo que nunca se toquem, mesmo que nunca nenhuma intimidade
intervenha (até há o vous, até há o Straub e nunca
há o Danièle) sentimos a cada momento a história comum, o passado
comum, medido a vinte e dois filmes e trinta e oito anos de vida.
O tom de voz de qualquer deles é sempre crispado, agressivo, quase violento. Nunca os vemos brincar, nunca os vemos rir (à exceção de uma breve gargalhada, que não sabemos a quem atribuir). Mas sabemos que ambos se lembram (e não estou a fazer poesia) do sorriso que nos fica oculto e que a pergunta tutelar a ambos interpela também. Como todos os grandes filmes, Onde Jaz o Teu Sorriso? é também um filme de amor e foi sobretudo para um filme de amor que Pedro Costa nos convocou.
4: Mas há outra questão e é a minha questão final.
Durante todo o filme - já o disse - quase não saímos de uma sala de montagem nas profundezas de um estúdio. Von heute auf morgen (neste caso de manhã à noite) aquele casal esteve enterrado numa sala subterrânea, sem luz que não luz artificial, sem qualquer contato com o exterior e com a luz “natural”.
Será por acaso que nunca os vemos chegar cá fora? Sabemos que vão sair, sabemos que vão voltar para casa. Mas perdemo-nos deles nas subidas das escadas e ficamos com ele, a meio da subida, prostrado num degrau.
Pouco antes, Jean-Marie notou à mulher que a vida deles, comparada com a vida de 90% das pessoas, é uma vida feliz. O trabalho deles é um trabalho feito por prazer, enquanto o comum dos mortais trabalha para viver.
Mas o princípio do prazer está ausente do filme, ou o sinal dele fica-nos tão oculto como o sorriso ou os sorrisos.
Ou como esse sorriso, que Danièle Huillet vê esboçar-se no rosto do cético protagonista de Sicilia!, quando, na carruagem do comboio para Catania, o companheiro de viagem se apresenta como chefe do cadastro. “É preciso que o espectador o perceba” diz-lhe Straub, “perceba que ele não se deixa levar pelas lérias do outro”. Mas até esse sorriso ficou oculto. Como todos os outros, jaz algures. Onde? É a pergunta capital do filme de Pedro Costa.
“Por nós, por ti, por mim, falou a dor/E a dor é evidente/libertada”.
Este filme lembrou-me esse final do soneto final de Jorge de Sena em As Evidências. Esse soneto que fala da “cendrada luz”. Tudo se aplica, menos a libertação. Seja por ela a minha última pergunta a Pedro Costa.
João Bénard da Costa
Texto original: http://www.focorevistadecinema.com.br/FOCO1/benard-sorriso.htm
Nenhum comentário:
Postar um comentário