sábado, 23 de maio de 2015

A CARTA DE VENTURA


Uma mudança de dimensões - assim poderíamos resumir a novidade deste Juventude em Marcha, o terceiro e mais belo filme da trilogia consagrada por Pedro Costa aos habitantes do bairro de lata, hoje demolido, das Fontainhas. No início, há altas muralhas de um cinzento metálico que brilham na penumbra. Duma janela, vemos passar objetos que se vão destruir no chão.
No plano seguinte, uma mulher está perante nós, imagem de fúria antiga, a segurar uma faca que parece também fazer a vez de uma tocha na obscuridade. Ela fala, como quem recita um monólogo, para contar como, ainda menina, em Cabo Verde, se atirava à água sem recear os tubarões e sem dar troco aos rapazes, que da praia lhe falavam prudentemente de amor. As duas sequências encontram de seguida as suas "explicações": a mulher, Clotilde, pôs na rua o marido, o antigo pedreiro Ventura, e atirou os seus móveis pela janela. Mas o essencial não está aí. Está no espaço construído por esta abertura, na tonalidade que ela dá à história. Estamos aparentemente muito longe do espaço e das personagens de No Quarto da Vanda.
A câmara arrastava-se então pelo labirinto das ruas, alojava-se nos cantos de quartos estreitos e colocava-se à altura das personagens semi-asfixiadas que lutavam pela vida entre dois chutos. Aqui o espaço abre-se, a câmara dirige-se para o alto de um imóvel que se assemelha às muralhas de fortalezas antigas ou medievais e de onde surge esta mulher de aparência selvagem, de palavra nobre e dicção teatral que evoca Climnestra ou Medeia.
Ossos e No Quarto da Vanda apresentavam-nos jovens marginais a fazer pela vida no dia a dia. Juventude em Marcha gira em torno de duas figuras mitológicas, vindas de longe e do fundo dos tempos: primeiro, Clotilde, que não reveremos mais, mas que continuará a habitar o discurso do esposo rejeitado que reclama um alojamento apropriado para a sua numerosa família e que mais tarde conta à sua "filha" Bete, como é que aprisionou a mulher indomável num dia de festa da Independência em que ela cantava (desafinada) um hino à liberdade; segue-se Ventura, figura de soberano deposto, exilado da sua realeza africana, inapto para o trabalho por um acidente e para a vida social por uma falha do espírito, espécie de errante sublime, entre Édipo e Lear, mas também entre os heróis fordianos Tom Joad e Ethan Edwards.
A tragédia invadiu assim o terreno da crónica. No Quarto da Vanda lutava, plano após plano, para libertar o potencial poético do cenário sórdido e da palavra abafada de vidas atrofiadas, para fazer coincidir, para lá de toda a estetização da miséria, as potencialidades artísticas de um espaço e as capacidades dos indivíduos mais desclassificados em tomar as rédeas dos próprios destinos.
A imagem emblemática era oferecida pelo episódio em que um dos três ocupas insistia, por preocupação estética, em raspar com a sua faca as manchas de uma mesa prometida aos dentes das máquinas de demolição. A figura de Ventura, essa, resolve imediatamente o problema. Não há miséria que a câmara tivesse como objetivo sublimar. Entre a câmara e Vanda, mãe de família em cura de desintoxicação ou Nhurro, tornado num empregado honrado, vem interpor-se Ventura, figura de destino trágico, que nada pode reconciliar com os muros brancos das habitações novas e as imagens de folhetins televisivos. Não acompanhamos um desempregado incapacitado na sua difícil reinserção, mas um príncipe no exílio que recusa justamente toda a reabilitação "social"; isso é ilustrado de forma impressionante por dois episódios do filme, duas incursões de Ventura num espaço onde está deslocado, dois confrontos com dois irmãos de pele que jogaram o jogo da integração. Antes de mais, a visita ao apartamento novo onde o empregado da câmara municipal, de frente para a janela, enumera as vantagens que os equipamentos desportivos e culturais do bairro vão trazer à "esposa" e às "crianças" de Ventura. Este, silhueta negra de costas em primeiro plano, levanta lentamente um braço majestoso na direção do teto: "Há muitas aranhas", diz ele simplesmente. Num só gesto, a relação entre o administrador da habitação social e o seu devedor inverteu-se. O antigo pedreiro reuniu na sua atitude duas ciências separadas pela tradição: a arte dos meios, a arte mecânica do construtor de edifícios, e a arte dos fins, a arte daquele que sabe como habitar os edifícios. Às paredes brancas inabitáveis, que a televisão de Vanda preenche com o seu rumor contínuo, opõem-se as paredes cinzentas da barraca em que Bete (que ainda não foi realojada) e Ventura, com a cabeça nos joelhos da "filha", interpretam os desenhos fantásticos traçados pelos acasos da vivência e pela humidade da própria habitação: a arte de habitar dos pobres revela-se irmã da leitura de figuras aleatórias celebrada pelo pintor por excelência, Leonardo Da Vinci.
Esta relação entre a grande arte e a arte de viver dos pobres, é o tema do filme. Uma ilustração espetacular é o episódio da visita ao museu, se é que se pode chamar de visita: de facto, o filme transporta-nos sem transição narrativa para uma sala da Fundação Gulbenkian onde Ventura já se encontra, apoiado na parede, entre o Portrait d'Hélène Fourment de Rubens e o Portrait d'homme de Van Dyck. Silenciosamente, um empregado do museu, negro, como o funcionário da câmara municipal, vem dizer a Ventura que saia, tirando um lenço para limpar as marcas do intruso no chão, tal como o funcionário público já tinha feito, limpando as manchas da sua cabeça da parede branca do apartamento novo. Mais tarde vem buscar Ventura, sentado meditativo num sofá Régence, e fá-lo sair, sempre em silêncio, pela porta de serviço. O segurança está satisfeito com o seu trabalho: não tem nada a ver com a fauna cosmopolita e trafulha dos hipermercados. Aqui, diz ele sobriamente a Ventura, temos paz, a não ser quando vêm pessoas como nós, o que é raro. Ventura não revela ao que vem. Sentado abaixo dele e sem o olhar, com as árvores do jardim em fundo, Ventura fala do país de onde veio, do pântano que era este terreno cheio de sapos que se multiplicavam, terreno que ele cavou e limpou, e onde colocou pedras e relva, apontando então com um gesto imperial, o lugar de onde um dia caiu do andaime. Não se trata de opôr o suor e as dores dos construtores de museus ao prazer estético dos ricos. Trata-se de confrontar história com história, espaço com espaço e palavra com palavra. O tratamento da palavra provoca de facto uma ruptura com os dois filmes precedentes. A ficção de "Ossos" acontecia sob o signo de um certo mutismo, o de Tina, a jovem mãe ultrapassada pela vida que gerou. No Quarto de Vanda adoptava, com a aparência do documentário, o tom de conversa entre quarto paredes. Juventude em Marcha instala espaços de silêncio entre os dois regimes bem distintos da palavra. De um lado, há a conversa que continua no novo quarto da Vanda, o quarto da mãe de uma família aumentada e "aburguesada", preenchido pela cama matrimonial de design de supermercado e ocupado continuamente pelo som da televisão cujo ecrã não vemos. Vanda fala do seu difícil regresso à norma no mesmo tom familiar de anteriormente. Ventura não conversa. Muitas vezes cala-se, impondo quer apenas a massa sombria da sua silhueta, quer a força de um olhar que talvez julgue aquilo que vê, ou talvez se perca noutro lugar mas que, em todo o caso, resiste a toda a interpretação. A palavra que emerge deste silêncio, que dele se parece alimentar, varia entre a fórmula lapidar, como um epitáfio ou um hemistíquio de uma tragédia, e a dicção lírica. É deste modo que ele evoca, nas costas de um interlocutor que não o vê, a partida de Cabo Verde num grande avião a 19 de Agosto de 1972 que nos relembra outra partida, aquela de um poeta e dos seus dois amigos num pequeno automóvel, a 31 de Agosto de 1914.
Ao escutar esta palavra bem assimilada que parece emanar diretamente do fundo de um ser e da sua história, mais do que dos lábios de quem fala, é difícil não pensar na arte desses cineastas a quem Pedro Costa consagrou um filme, Danièle Huillet e Jean-Marie Straub. Estes transformavam em partitura de oratório as histórias de Vittorini para as pôr na boca de homens do povo orgulhosos, que escandindo o texto sem olhar para nenhum interlocutor, testemunhavam a capacidade idêntica dos pobres de mãos hábeis para a linguagem nobre e para a construção de um novo mundo comum. Sentimos aqui, mais do que em qualquer outro filme de Pedro Costa, o eco da lição de cinema dos Straub. O filme, no entanto, apresenta um dispositivo de conjunto heteróclito no que respeita à poética e à política straubianas. A nobreza das vidas vulgares diz-se de dois modos diferentes: o modo de conversação de No Quarto da Vanda e o modo "literário", concordante com esse espaço mítico traçado pelas deambulações de Ventura por entre as casas pobres e os alojamentos novos, entre o passado e o presente, África e Portugal. Mas a grande palavra de que Ventura tem o monopólio, com o prejuízo de por vezes esmagar um pouco Vanda e o que ela diz, é em si mesma construída como um patchwork. Assim o demonstra o soberbo episódio das variações da carta que dá ao filme o seu refrão: uma carta do emigrante para aquela que ficou na terra e que tanto fala do quotidiano do trabalho ou do sofrimento como do amor, prometendo à amada cem mil cigarros, um automóvel, uma dezena de vestidos e um ramo de quatro tostões. Ventura recita a carta, com modulações diferentes, para a ensinar a Lento, o iletrado. Tanto a pronuncia como se estivesse perdido em sonhos, como pelo contrário, o faz com a autoridade do professor que martela as palavras para as fazer entrar numa cabeça teimosa. Num certo sentido é a grande posse de Ventura, a grandeza literária do autodidata que "cada dia aprende novas palavras, belas palavras, apenas para nós dois, à nossa medida, como um pijama de seda fina". Ora, Pedro Costa compô-la a partir de duas fontes diferentes: verdadeiras cartas de emigrantes – parecidas com aquelas de que outrora foi mensageiro e que o levaram às Fontainhas – e uma carta de poeta, uma das últimas cartas enviadas do Campo de Flöha por Robert Desnos a Youki. A palavra do poeta francês morto em Terezin funde-se com as dos letrados da imigração para compôr uma partitura do mesmo género que aquela talhada por Danièle Huillet e Jean-Marie Straub para os textos de Vittorini. Lento jamais aprenderá a carta, a qual de resto não necessita mais, mas, num apartamento devastado pelo incêndio, Ventura o louco, o Senhor, estende-lhe a mão, sem o olhar, e concede-lhe a dignidade trágica e o direito a chorar pelos infortúnios do seu amigo, tal como este chora pelos seus.
A diferença de poética é também uma diferença de política. Para afirmar uma dignidade política dos homens do povo idêntica à sua dignidade estética, os Straub rejeitaram a miséria quotidiana das inquietações e das intenções. Os seus operários e camponeses oferecem em direto, perante as únicas potências da natureza e do mito, algumas horas de comunismo, algumas horas de igualdade sensível. Mas Ventura, apesar da carta que conduz o filme, não propõe nenhum comunismo, passado, presente ou por vir. Permanece até ao fim o Estrangeiro, aquele que vem de longe para atestar a possibilidade de cada ser ter um destino e ser igual ao seu destino. Nos filmes Vittorini de Straub, a querela dialética e a capacidade lírica fundiam-se finalmente na epopeia coletiva de um comunismo eterno. Em Pedro Costa não existe unidade épica: a preocupação política não pode, para cantar a glória comum, demitir-se da gestação laboriosa de vidas vulgares. A capacidade dos pobres permanece acantonada entre a conversa familiar de Vanda e o solilóquio trágico de Ventura. Nem horizonte aberto de aventura comum nem punho cerrado de rebelde irreconciliado para concluir Juventude em Marcha. O filme termina, como numa pirueta, no quarto da Vanda, onde Ventura, o homem que inventa filhos, se dedica ao trabalho de baby-sitter, sem que saibamos bem se é ele que guarda a pequena filha de Vanda, se é a criança que vela pelo repouso do homem cansado. A fé na arte que testemunha a grandeza do pobre – a grandeza de um homem comum – brilha aqui mais que nunca. Mas não uma fé que se assemelhe ao afirmar da salvação. É por aí talvez, que passa a não-reconciliação de que Pedro Costa é hoje o primeiro poeta.

Jacques Rancière

(Publicação original: “La lettre de Ventura”. Trafic, Paris, n.61. Esta tradução brasileira foi publicada pela primeira vez num dossiê especial sobre Pedro Costa da Revista Devires – cinema e humanidades. Retirado do catálogo “O Cinema de Pedro Costa” e no link: 
http://www.porta33.com/eventos/content_eventos/Pedro_costa/pedro_costa_juventude_em_marcha.html)

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