sábado, 2 de maio de 2015

Do sangue à lava

                                                                       
 (Casa de Lava, Pedro Costa, 1994)

1. O filme de Pedro Costa, Casa de lava (1994), começa com imagens do vulcão da Ilha do Fogo filmadas por Orlando Ribeiro. Esse é um começo que nos diz o começo de tudo - inscrição de uma violência abstrata, que, pouco a pouco, por sacões1 introduzidos na imagem (é a música dissonante de Hindemith), deixa-nos ver a claridade do mundo e a nitidez do dia. Julgo que Pedro Costa aponta, nos títulos dos seus filmes, para uma intensa fascinação por formas primitivas e viscerais da matéria, energias grumosas e noturnas, que trazem do interior do caos e da morte a força da própria vida, mas uma força que excede e transborda da consciência extenuada dos seus atores. Assim se traça o percurso do sangue à lava. Nesse segundo filme, o título irá justificar-se, se tal fosse necessário, por uma frase suspensa de uma carta que Mariana encontrará na casa de Edith: “a pequena casa de lava que tu...”. As imagens seguintes
são corpos, rostos, nucas, mãos e olhares de habitantes de Cabo Verde. O silencioso enigma dessas presenças vem de uma espécie de visibilidade queimada que as recorta na dureza da paisagem. Esses são corpos de uma memória anterior ao próprio pensamento, como diz Daniel Sibony (no seu belo livro sobre a dança, Le corps et sa danse, Seuil, 1995): “o espantoso é que um corpo seja sempre portador do desejo de uma história”. Esses corpos estão mais perto da imobilidade das origens do que do movimento dos enredos, mas o desejo já se lê neles como uma opressão, um entendimento calcinado e tácito, uma
crepitação crescente.

Pedro Costa reconduz-nos sem aviso a uma cena que se passa com os operários da construção civil numa obra de Lisboa – mas a diferença salta à vista. Embora imigrantes, esses trabalhadores têm já a gestualidade de grupo urbano. E é no meio dela que o olhar do Leão, protagonista dessa história, prende-nos de súbito aos olhares do início – a mesma resignação, a mesma dor infinita – e, por isso e pela mudez do mais triste amor, cai: o Leão cai. Reencontramo-lo no hospital, deitado, em coma, ausente de si mesmo. Perto dele, Mariana (a espantosa Inês de Medeiros).

E preciso fazer notar que Pedro Costa tem a extraordinária inteligência de introduzir os restos de uma outra história no curso ainda indeciso dessa que se inicia. Quando Mariana se inclina para olhar não sabemos quem, uns braços se levantam para se agarrarem a ela – como quem se agarra à vida num gesto derradeiro. Essa cena irá de certo modo repetir-se quando Leão, o “morto” (como os outros lhes chamam), levanta-se de noite para puxar para si o braço do rapaz que dele se aproximava. Esses são momentos de convulsão em que a morte afirma os seus direitos sobre a vida – parece mais viva do que a própria vida, por uma obscura ligação primeira ao sangue e à lava. Antes de deixarmos o hospital, a história dessa mulher moribunda (Isabel de Castro) irá regressar por instantes: é o rosto de um cadáver e um lençol branco que o cobre – algo tão breve que qualquer espectador distraído poderá esquecer, mas que é um pouco a experiência que inicia Mariana no conhecimento da morte, e a invisível porta de entrada desse filme.

Ainda nessa fase devemos sublinhar outro ponto. Diante de nós, deitado, voltado para o lado da sua morte possível, o Leão. À direita, o médico, Luís Miguel Cintra, numa voz calafetada e espessa, traça o retrato clínico e humano da vítima (o Leão caiu, o Leão não quis viver, o Leão volta a casa, talvez a terra lhe restitua o desejo de vida, a medicina é aqui uma ciência demasiado humana e supérflua); à esquerda, Mariana. No centro da imagem, uma sombra, uma nuca, uma cabeça – como uma barra noturna a remeter para um mundo especial (vai haver ao longo de todo o filme uma “Morna das Sombras”). Essa imagem repercute uma das duas obsessões (deverá haver outras) do filme: filmar pessoas imóveis de costas, nucas curvadas, embebidas numa solidão muda, e mostrar pés anônimos que tocam a terra (por vezes, um prato com fruta ao lado).

2. Algumas vozes dizem: “aqui, nesta terra de Cabo Verde, até os mortos dançam”. E a cabeça do “morto” ri, é mesmo a que ri melhor. Isso porque o filme de Pedro Costa é acima de tudo uma aproximação magnífica dessa zona intermediária e crepuscular em que a morte salta como uma fera para o lado da vida e a vida se deixa modelar pelos mais inesperados figurinos da morte. Estamos numa obra de fronteira e contrabando com guardas fictícios, cães de olhos infernais, silêncios queimados e cintilações fulgurantes. Por vezes o excesso das incursões arrasa as personagens. Quando o médico tenta abrir um olho do Leão, para tentar surpreender alguns sinais de vida, Mariana, afirmando que a partir de agora se vai ocupar inteiramente dele, imita-o com um olho fechado e outro aberto, e parece que o seu corpo se desequilibra, ela cai, a cabeça encostada ao chão, absorta, prestada pela imensa fadiga
daquilo que viu (e não viu).

 No final o filho de Edith (Pedro Hestnes), personagem sem nome, hesitante e incerto dos seus lugares no mundo, leva Mariana ao cemitério onde está o corpo do prisioneiro que Edith acompanhou no Tarrafal. Ele tem, antes de partir, um gesto insólito: pega na fotografia que está sobre a cruz da sepultura e muda-a para a cruz que se ergue onde talvez esteja o cão morto.
Nessa atitude ele parece querer dizer-nos que o grande princípio do reino das sombras é o do anonimato generalizado, em que tudo é reversível e permutável, em que nada hierarquiza o vegetal, o animal e o humano – é a zona fervilhante da lava e do sangue. O que o filme pouco a pouco nos transmite é que o amor só é possível como travessia dessa matéria inominável. Se Mariana deseja Leão porque ele emerge da face da morte, isso vai levar o filho de Edith a perguntar-lhe: “Será preciso que eu morra para que gostes de mim?”.

A força da terra cabo-verdiana resulta da convergência de três realidades. Em primeiro lugar, a circularidade obsessiva de uma música que move os corpos na repetição algo espectral de uma alegria resignada e que é apenas a sabedoria antiquíssima do entre dois da morte e da vida. Nesse ponto, o contraste com Hindemith é particularmente elucidativo. Em segundo lugar, a forma de se instituir o silêncio no interior de qualquer fala: Mariana vem de um mundo em que as palavras saem das palavras e continuam noutras igualmente tagarelas, enquanto em Cabo Verde ela tem de confrontar-se (mesmo no caso de Edith, ou sobretudo nele) com uma fala que se arranca à matéria do silêncio e se inscreve nos intervalos da morte propagada – todas as respostas são oblíquas, crípticas, reticentes. Em terceiro lugar, o olhar desses rostos é o de uma passividade interminável, o que os situa na mais dolorida distância de si próprios, mas na medida em que todo o desejo é a distância tomada sensível, essa passividade é o próprio corpo da passionalidade. Aquela que dança, como Mariana aprendeu a dançar, caminha sobre a terra de uma paixão infinita: há o vestido vermelho de uma rapariga deitada que retoma a imagem primeira do vulcão aceso.


Eduardo Prado Coelho
(Publicado originalmente no jornal português Público, em 4 de fevereiro de 1995. Retirado do catálogo “O cinema de Pedro Costa”, também publicado em 
http://pedrocosta-heroi.blogspot.com.br/2008/03/do-sangue-lava.html)

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