quinta-feira, 30 de abril de 2015

RADICALIDADE DO PRESENTE


por Francis Vogner dos Reis


Retomar Samuel Fuller hoje é uma questão de resistência. Há nele um ímpeto (que é mais do que uma “pulsão”) em ser um homem do seu tempo, de responder às demandas de sua época, de colocar em crise e em evidência o seu lugar em um mundo que propõe a inércia e a conciliação. Fuller sempre destruiu visões pré-fabricadas sobre o mundo. Em um século em que a imagem serviu às mais diversas propagandas (principalmente de Estado), ele teve a petulância de realizar contrapropaganda, apesar dos mais incautos e simplórios o terem acusado de ser propagandista militar. Filmes como Verboten!Capacete de AçoBaionetas Caladas e Agonia e Glória são os filmes de guerra mais duros e colaterais já filmados, principalmente por conceberem seus personagens como homens, não soldados. Não só por isso, Samuel Fuller, junto a Buñuel e Godard, foi o cineasta mais perigoso da História.

Sua postura passa por um engajamento insuspeito e vê-lo hoje em dia é saudável e vital, já que não é mais questão para muitos cineastas um engajamento em um universo concreto de seres e olhares: tudo é muito imediato, escalpelado e vaporoso, o que implica essa nova maneira de se “passar pelo mundo” (e não mais de “estar no mundo”). Não há presente, no sentido de que este prescinde de uma ação e a afirmação de uma moral - só estagnação e espera. Não há acontecimento, mas quase-acontecimentos; os fatos são estilhaços de eventos que sugerem inércia ou paralisia estetizadas. Cinemas de falseamento dos sentimentos, de bloqueio emocional. Há dois exemplos, hoje, em cartaz: A Teta Assustada, de Claudia Llosa e Confissões de uma Garota de Programa, de Steven Soderbergh. Cinemas de idéias sem corpo, de corpos sem idéia, burilados em uma plasticidade que só responde a conceitos; filmes covardes, acomodados e isentos. O texto de Luiz Carlos Oliveira Jr., “A Paralisia da Afecção” sobre A Mulher Sem Cabeça, de Lucrecia Martel, na Contracampo, discorre precisamente sobre o automatismo desse tipo de olhar. O “agora” é lugar dos sonâmbulos e da rebordosa.

Por isso, retomar Samuel Fuller não é só uma demanda meramente cinéfila e anacrônica, não é só uma homenagem e por outro lado, também não é questão de brandi-lo contra o cinema contemporâneo. Se o fato de voltar ao cineasta soa como provocação, isso acontece menos em razão de um programa crítico pré-estabelecido e mais porque essa é mesmo uma característica dos filmes de Samuel Fuller. A intenção, portanto, é avançar, porque procurar no patrimônio do cinema alguns elementos específicos que possam iluminar um panorama como o nosso (bastante confuso e obscuro) e olhar para os filmes em sua integridade, sem ter como objetivo final instrumentalizar Fuller contra o cinema contemporâneo, é simplesmente compreender a vocação do cinema, sua clareza, sua fúria, sua violência natural.

Há nos filmes de Fuller um componente que se encontra nas obras de cineastas contemporâneos como Pedro Costa, Claire Denis, Michael Mann e Apichatpong Weerasethakul, que é o de uma acentuada obsessão pelo presente. Cineastas esses de estilos e orientações diferentes (nenhum especificamente parecido com Fuller), mas com filmes marcados pelo “fato cinematográfico”, na imersão da experiência de um mundo concreto, onde só se age sobre o que se vê, e isso pode ser violento, pode ser insuportável, mas é irremediavelmente verdadeiro. Isso é o extraordinário desses cineastas do presente radical.

O presente que se trata nesses casos (no de Fuller especificamente) não diz respeito aos acontecimentos mundiais, às tendências ou configuração de um novo estado das coisas (hoje isso tem um endereço certo, para o bem e para o mal: Olivier Assayas), nem simplesmente uma resposta ao clichê retórico - interpretado de maneira simplória - de que “o cinema é a arte do presente”.

Esse presente em alguns casos se dá como diafania (Rossellini, Apichatpong, Denis), pois suspende expectativas futuras e condicionamentos passados na erupção e vidência do mistério que, ao contrário da epifania, é “de dentro para fora”. Em Fuller esse presente é diferente, pois é um impasse existencial que implica em uma moral: não se vê nada à frente, talvez a morte ou a queda, mas não é possível voltar ou parar. O presente é o impasse, e nele é preciso reinventar todas as coisas, mesmo as que parecem impossíveis: reeducar um cão criado para atacar pessoas negras em Cão Branco, reinventar a vida “apesar da civilização” como em Renegando o Meu Sangue eDragões da Violência, resistir como infantaria destinada a ser bucha de canhão em Baionetas Caladas. Se o termo “filme de ação” pode ser empregado literalmente e em mais de um sentido, é nos filmes de Fuller que encontra sua definição perfeita.

Casa de BambuRenegando o Meu SangueCão BrancoBaionetas Caladas e A Lei dos Marginais são de uma violência crua que não nos faz voyeurs sádicos e isentos. Temos ali signos reconhecíveis do cinema de gênero, enunciados culturais e certa classe de encadeamento das imagens (ou seja: tudo o que faz a festa do chantagismo teórico na década de 70), onde surge algo que desafia nossa percepção (geralmente pré-formatada) dessas coisas. Algo acontece, algo se dá e esses filmes souberam provocar e catalizar essas energias.

E isso faz todo grande cinema, inclusive aqueles em que nos aproximamos como voyeur (Hitchcock) ou aluno (Godard), mas que no fim das contas nos faz testemunhas. A câmera presencia esses fatos como se fosse a primeira vez. Não foi esse “gosto pela atualidade” que Serge Daney apontou em Fuller a respeito da abertura deRenegando o Meu Sangue que mostra a rendição do sul na Guerra da Secessão? É isso que diferencia os filmes de Samuel Fuller da maior parte dos filmes históricos de ontem e de hoje: não há nunca um olhar decadentista, idealista ou saudoso, porque Fuller filma o assassinato de Jesse James, o fim da Guerra Civil Americana como se fossem um “furo”. Fuller não faz relato, dá testemunhos.

Questão de testemunho

É importante dizer que o presente não se dá só em um aspecto, digamos, documental, mas também no trabalho com o fato bruto, acontecido e não acabado, coisa que era obsessão do cineasta-repórter Fuller. Por isso, é importante notar como o diretor abre um filme. São falsas introduções, são falsos começos. Não que sejam farsas, mas são o centro nervoso do filme e são liberados logo de saída. Coisas que outros cineastas procuram desenvolver com a narrativa, Fuller já nos dá de antemão nos colocando na posição de testemunhas. Interessa a ele mostrar a verdade não por intermédio dos eventos centrais, mas sim nas implicações desses eventos. É uma questão, como no jornalismo, de objetividade. Interessa o que está atrás do acontecimento: um fato banal como um roubo de carteira durante um flerte no trem como em Anjo do Mal; um fato de importância derradeira como a já citada abertura de Renegando o Meu Sangue ou a explosão em cinemascope e technicolor em Tormenta Sob os Mares; uma explosão de violência capaz de desvelar, na sua própria fúria, a sua razão em O Beijo Amargo. São todos gestos cinematográficos urgentes nos quais Fuller deve muito a Fritz Lang, pois não se constituem como um exercício de estilo, são pura violência, o que significa que não são nem o tema nem uma violência puramente plástica, mas sim da brutalidade de todas as coisas. Se o mundo é bruto, o cinema deve responder a ele com a mesma intensidade, mas colocando-se na contramão da instrumentalização que este mundo faz da brutalidade (guerras, racismo, fascismo), sabendo ao mesmo tempo que só é possível ver esses fatos por dentro, mesmo correndo o risco de alguma contaminação, como em Paixões Que Alucinam.

É o mundo visto a partir dos campos de batalha, dos showzinhos de stripper, da imprensa marrom, do hospício e seus anti-heróis que são gente socialmente pouco respeitada como delinqüentes das grandes metrópoles, gonzo-jornalistas, soldados em campo e sem perspectiva, prostitutas e mercenários de toda sorte, todos em uma encruzilhada. Fuller nunca fez um filme em que a solução dos conflitos fosse a escolha entre um certo e um errado pré-estabelecidos: em cada filme há uma demanda do presente, uma “escuta” desse presente que orientará as escolhas dos personagens, uma suspensão - temporária - entre o certo e o errado. Existe a escolha possível, visando a integridade, a liberdade do personagem que é chamado à responsabilidade, seja ele um batedor de carteira, um mercenário na guerra, um policial ou um repórter. É por isso que Fuller desconfia das ideologias que se colocam em campos opostos, pois elas tendem a reduzir as questões entre o certo e o errado, e é por isso também que desconfia das generalizações de qualquer ordem.

O filme, contingência do instante

Quando Jean-Paul Belmondo pergunta a Samuel Fuller em Pierrot le fou “O que é o cinema?”, ele se arrisca em uma definição possível, mas que ao mesmo tempo não responde genericamente o que seria o cinema:

A film is like a battleground. 
It’s love, hate, action, violence, and death. In one word - emotion.

Ele não diz que o cinema é uma técnica que faz isso, uma arte que visa aquilo outro, que é um meio de mostrar a realidade etc. Ele discorre não sobre o cinema, mas sobre o que é o filme, e para isso fala dos sentimentos de amor e ódio, somando-os à ação de violência e morte (porque a morte aqui é um ato, é morrer), e resume em uma palavra: emoção. A conclusão de Fuller a partir de um desvio da lógica inicial da pergunta (não responde o que é o cinema, mas dá definições sobre o que é “um filme”) é uma expressão dos seus princípios como cineasta. Ele não se interessa por generalizações, mas pelo que é particular e intransferível, pela experiência única. Por isso “emoção” é a única definição possível para o seu trabalho formal, porque ela mesma é a orientação desse trabalho. A frontalidade de seus primeiros planos compreende um estado que não se pode expressar em palavras (seus filmes de guerra possuem uma porção de close-ups silenciosos); sua câmera que desliza, às vezes aceleradamente e com sobressaltos como na última seqüência de A Lei dos Marginais, em que Cliff Robertsoncorre para morrer no beco; em outros momentos ainda, Fuller não procura o equilíbrio do procedimento calculado (como em Welles, Hitchcock, De Palma), mas parece mais subjugado à contingência dos personagens (nos filmes de crime e em Cão Branco) ou a uma animosidade geral como na seqüência de separação das tropasem Baionetas Caladas ou numa porção de travellings em Agonia e Glória.

Todas essas características são gerais, mas com implicações específicas, que revelam a compreensão que o diretor tem dos princípios morais de um filme. Esses filmes são de uma espontaneidade que raramente se viu (e se vê) no cinema americano e essa espontaneidade não é desleixo ou traço de um estilo “despojado”, mas a subordinação de sua forma e sua moral ao estado e contingência dos universos que aborda. Nos últimos tempos viu-se isso muito pouco no cinema, talvez em Jackie Brown de Tarantino. Eles fazem dos procedimentos corriqueiramente clássicos algo radicalmente novo, porque os vêem como a melhor expressão (movida pela emoção) das implicações e do estado do mundo que erigem. É a contemplação que controla a dispersão. É também o instante que perscruta o horror e o insuportável, e olha, perplexo, para o incontornável. É possível escolher o seu lugar no mundo, não controlar o mundo.

É na busca dessa compreensão de mundo que mais uma vez Fuller cruza com Rossellini, mas acaba optando por outro caminho. Se em Alemanha, Ano Zero Rossellini acompanha o garoto que se suicida em razão do presente insuportável (para uma criança a destruição não é o no future, mas o no present, o que é pior), para Fuller o presente não é exatamente questão de desespero, mas de incontornabilidade. Seguir vivendo pode significar uma vitória provisória, mas também se deparar com o que não é possível controlar. Em Agonia e Glória o sargento interpretado por Lee Marvin encontra uma criança judia esquálida no qual trava o diálogo sem palavras (mais uma vez o inaudito) mais triste e aterrador do cinema. Ele a alimenta, a coloca nos ombros e caminha. A criança morre ali mesmo de olhos bem abertos. Nós vemos esse instante, vemos Lee Marvin, vemos a criança desfalecer. Não é só a imagem da morte, mas do fracasso e da dor (incontornáveis), que, como a vitória, também são provisórias. Samuel Fuller foi o cineasta que manteve a morte diante dos olhos, e por isso, talvez o mais corajoso de todos. 

Originalmente publicado em 
http://www.focorevistadecinema.com.br/FOCO1/vogner-radicalidade.htm

Um comentário:

  1. O Coletivo Atalante, através de seus cineclubes, fez profecia. Digo isso porque, ao programar “Tudo vai bem” (Godard) e “Cão Branco” (Fuller), nada podia ainda saber do que esta cidade viria a testemunhar na última semana de abril-2015.

    Os filmes são de outros tempos, mas sua atualidade nos atinge como bofetada na cara, provando que o Real retorna sempre ao mesmo lugar.

    A sanha da polícia estadual contra seus colegas do funcionalismo público – tomados de uma santa ira contra um ataque vergonhoso a seus direitos – é estarrecedora em si. Mas ainda está dentro dos limites previsíveis, dado o espírito da massa, tão próprio das corporações militares.

    De modo algum admitir a previsibilidade significa aderir à tese banal do nosso ilustre governador quando declara, se é que o declarou (a imprensa também não é santa), que considerou “natural” a ação da polícia – contra os “agitadores”. Em absoluto!

    Decerto que a violência é natural, o que não nos autoriza a concordar com ela, pois do que se trata é justamente de transcender essa natureza dilacerante para nos inscrevermos no patamar da cultura, onde a violência deve (deve! – é um imperativo para nossa admissão à humanidade) transformar-se em bens para todos. Aí está o destino pulsional que pode nos salvar de nós mesmos.

    O que, entretanto, embora também previsível, me deixa ainda mais chocada, é a atitude cômoda que todos nós adotamos: espectadores passivos!

    Como é que não saímos todos de nossas casas, ao escutar o vozerio e os tiros, para marcar, com nossa presença física, nossa objeção ao ato abjeto posto em curso? Como não manifestamos nossa oposição a um ato abjeto, qualquer que seja a razão ou desrazão do protesto? O pior: em tempos de redes sociais, onde mobilizar muitos tornou-se tão fácil.

    Não é verdade que sujamos nossas mãos quando votamos – os que votamos – nesse governo. Ali, ainda nos escorava a esperança, um dos nomes do desejo. Sujamos nossas mãos foi na última semana de abril-2015, com o nosso silêncio.

    Só posso concluir que já morremos e só aguardamos que o coveiro venha nos enterrar.

    Obstinados em ignorar que...

    “Na primeira noite eles se aproximam - e roubam uma flor do nosso jardim. E não dizemos nada. Na segunda noite, já não se escondem: pisam as flores, matam nosso cão - e não dizemos nada. Até que um dia, o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E já não podemos dizer nada.”

    ... seguimos.

    Até quando?
    Até onde?
    Há um limite para nossa complacência?
    Ou nós também já estamos definitivamente anestesiados pela banalidade do mal?


    Vera Lúcia de Oliveira e Silva, 10. de maio de 2015

    ResponderExcluir