sábado, 11 de abril de 2015

VÍCIO FRENÉTICO


(Bad Lieutenant, Abel Ferrara, EUA, 1992)

Vício Frenético tem um eixo cronológico muito preciso, o tempo de quatro jogos de uma miraculosa virada na final do campeonato de beisebol. Ainda assim, não há filme que trabalhe de modo tão desorientador nas perspectivas de tempo, espaço, alucinação, realidade, êxtase e normalidade. A montagem abusa de elipses e falsos raccords para nos retirar de uma percepção objetiva dos fatos e adentrar no universo de culpas & excessos do personagem principal, sem nome, referido apenas como "LT" nos créditos. Sem maiores amparos de psicologismo na construção do personagem, apenas vemos o "mau chefe de polícia" levando seus filhos à escola, chegando em cenas de crime, apostando com os colegas em jogos de beisebol, fumando crack, cheirando cocaína, etc. Vício Frenético é o último romance maldito, herdeiro de William Blake, de Rimbaud, dos Cantos de Maldoror, um mergulho de cabeça nos domínios do destempero e do mal, na intolerável sensação de descontentamento e na busca de transgredir para compensar uma enorme necessidade (a fala de Zoe Lund, atriz-junkie e roteirista do filme, é uma espécie de declaração de princípios do cinema de Ferrara).

O resultado é uma autêntica obra-prima e um dos grandes filmes da década de 90, um filme que ultrapassa mesmo o choque de imaginário dos filmes "extremos" e ainda assim vislumbra um escopo muito mais amplo que a seara juvenil do exploitation. A temporada de Harvey Keitel no inferno não é de glorificação ostentatória, mas um aterrorizante conflito entre falta e perdão, entre uma inocência inalcançável e um mundo de corrupção que mostra suas portas escancaradas. A câmera acompanha, distanciada sempre que possível, o processo de seu personagem ent
re perdição e purificação, cabendo aos momentos conotativos (o angélico ambiente familiar, a música "Pledging My Love", a plataforma rodoviária vazia e mal iluminada, a aparição do Cristo amparada por luzes laterais estouradas) criar uma atmosfera de sonho, agora impossível, da reversibilidade de todas as coisas. O choro agudo, interiorizado e quase mudo de Harvey Keitel resume o desespero incontido do personagem e é um dos momentos mais forte de toda história do cinema.


Ruy Gardnier
(Excerto do artigo “Abel Ferrara: Filmografia”, retirado de http://www.contracampo.com.br)

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