sexta-feira, 3 de abril de 2015

A Dama de Preto




(Park Row, Samuel Fuller, 1952)

          “Único filme que produzi com minha própria grana”, A Dama de Preto é Samuel Fuller em seu modo mais confessional, apaixonado, livre e idealista. Não era um filme que ele queria fazer, era o filme que ele tinhaque fazer, e assim o filme está inteiramente impregnado de todos os altos ideais de Fuller para mitigar através do cinema a carreira que ele queria ter e não teve (ao menos não diretamente), a de um editor-chefe.
            Aqui Fuller entrega-se ao máximo de seu lirismo enfático, à poesia feita à base de pontos de exclamação (nenhum outro grande diretor teve dois de seus filmes com títulos exclamativos), à mistura desbragada entre história do jornalismo, guerra de ímpetos, canto de louvor e história de amor frustrado. Mas tudo que o filme tem de mal resolvido– em especial a “dama de preto”, entre a literalidade de personagem e a simbologia de um patamar histórico – ele tem de magistral na linguagem visual e nos arroubos emotivos.
            Não tendo nenhum produtor para podar suas ideias mais extravagantes, Fuller faz aqui um dos planos-sequência mais geniais da história do cinema, ao acompanhar Phineas Mitchell do bar à rua – onde acontecem três brigas de socos e pontapés – ao escritório do jornal adversário, The Star, e em seguida, às instalações destruídas de seu próprio jornal, The Globe. Os movimentos bruscos de câmera, o dinamismo provocado pelas variações de ângulo e, sobretudo, ossolavancos de uma câmera colada ao corpo
do operador de câmera conseguem traduzir visualmente uma quase táctil sensação de ira, injustiça e pura energia cinética, tudo isso em velocidade atordoante.
            A Dama de Preto, pelo caráter factual do “estive lá”–Fuller foi menino de entregas, arquivista e repórter policial em Park Row, embora o filme seja ambientado algumas décadas antes do pequeno Sammy ter lá posto o pé – e pelo senso de obrigação inigualado nos outros filmes em “fazer passar a mensagem”, ilustra perfeitamente a fórmula de Serge Daney segundo a qual Fuller é sempre, e ao mesmo tempo, “um correspondente de guerra e um educador louco”. A relação desse filme com a história do jornalismo americano ajuda a compreender a loucura da pedagogia fulleriana: o que precisa ser ensinado é a bravura dos homens, é a obstinação, o ímpeto pela inovação, pelo desbravamento e pela verdade intensiva – coisas que, no plano visual, seus filmes mais que traduzem: suscitam. O que no plano estilístico significa: invenção à frente das normas, e em se tratando do cinema narrativo americano, o conflito é fascinante. A Dama de Preto termina como uma matéria de jornal, com “Thirty” ao invés de “The End”, e, mantendo a metáfora, é óbvio que o subgênero é o panfleto, com a implícita tomada de posição, as cores excessivas e nenhum distanciamento.

Ruy Gardnier
Texto extraído de GARDNIER, Ruy (org.) Samuel Fuller – Se você morrer eu te mato! São Paulo: CCBB, 2013. (p. 189)

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