"O Vale Abraão", de Manoel de Oliveira, e
"Infelizmente Para Mim", de Jean-Luc Godard, estréiam nas salas de
cinema parisienses quase ao mesmo tempo, em setembro de 1993. Nessa ocasião,
Godard pediu para realizar-se um encontro entre ele e Oliveira, para lançar uma
discussão "científica" sobre os dois filmes. (Alain Bergala)
Jean-Luc Godard – Nenhum problema, o som alto é a única concessão
que eu faço ao público. Você conhece a definição que Jules Renard faz da
crítica? "O crítico é um soldado de um exército que perde a batalha, que
deserta e passa para o lado inimigo. E quem é o inimigo? O público."
Manoel de Oliveira – E você, conhece o que Bergman disse dos
críticos? "Certos críticos me parecem pernetas que querem ensinar o
caminho."
Godard – Mas foi como crítico que eu pedi esse encontro. Mais do
que brincar de autor, eu preferi ir ver alguém e falar do filme dele, e
eventualmente, talvez, ouvir ele falar do meu. Se isso pode favorecer os dois
de uma maneira publicitária, vamos fazer. O cinema é crítico da realidade, eu
sou muito clássico desse ponto de vista, e como cineasta de língua francesa, eu
sempre me sinto crítico de cinema. Uma das grandezas da França foi sempre ter
tido um ponto de vista crítico, mesmo que ela nada saiba disso. Todos os
críticos de arte foram franceses, desde Diderot, passando por Baudelaire, Élie
Faure, Malraux, ou seja, pessoas, escritores ou não, que tinham um estilo. O
mau crítico é aquele que não tem estilo. Nos Estados Unidos, só houve dois
críticos: James Agee e (Manny, ndt)
Farber de San Diego, que é aliás muito ignorado. Já que os nossos dois filmes
estréiam ao mesmo tempo, então eis a primeira pergunta que eu queria fazer: O
que se chama "lançar" um filme? Por que é necessário que eles sejam
lançados? Nós temos uma dificuldade tremenda a fazer entrar nossos filmes em
tal ou tal lugar, e depois há pessoas que não fazer um grande esforço mas que,
em todo caso, fazem o que é necessário para lançar ("sortir", sair, ndt) os filmes.
Oliveira – Em português, não é a mesma palavra, nem o mesmo jogo
de palavras. Não se diz "sair um filme". Mesmo assim, é uma questão
que me importa. É importante porque para mim é preciso mostrar o filme. O filme
não está terminado até o momento em que a crítica foi feita. Um bom crítico,
inteligente, atento, sensível, é o representante dos espectadores, ele vai
completar o filme que, na minha opinião, não está terminado quando eu o
termino, ele vai completá-lo. Essa dinâmica entre o espectador e a tela é de
fato essencial, ela faz parte do filme. Eu digo: o espectador, e não o público.
O público é algo abstrato, o espectador é pessoal.
Godard – O público é o espectador existente. É o espectador
comercializado, o espectador que compra seu ingresso, que torna-se público.
Existe entretanto uma parte dele que permanece espectador como o leitor. Se
aquilo de que nós falamos fosse um filme, digamos que o espectador seria o
roteiro, e que o público seria a realização do espectador, sua encenação
(mise-en-scène). Mas às vezes eu me pergunto: se os filmes não fossem vistos,
muitos dos meus realmente não o são, ou o são mal-vistos, até mesmo por mim...
Acho que se faz filmes para uma ou duas pessoas.
Oliveira – Mas é suficiente.
Godard – Verdade. Mas eu gostaria de voltar a essa história de
lançar/sair um filme que não é somente uma questão de palavras, mas também é.
Deveria haver pequenos dicionários que nos dissessem em cada língua as palavras
técnicas do cinema. Por exemplo, a cópia de filme que vemos nas salas de
cinema, a cópia com a imagem e o som, em francês dizemos "copie
standard"
Oliveira – Em português (de Portugal) também, cópia standard ou
cópia síncrone.
Godard – Em inglês, é married
screen, em italiano copia
campione. Eu insisto com as palavras porque, por exemplo, os russos não têm
a mesma distinção que nós entre o documentário e a ficção. Os filmes com atores
se chamam "filmes interpretados", e o documentário, não
obrigatoriamente sem atores, se chama "filme não interpretado". A própria
palavra imagem: para os
americanos, não quer dizer grande coisa. Eles usam picture, ou seja, fotografia.
Eles nem têm palavra para televisão, eles são diretamente comerciais, eles
dizem network (rede, ou rede de trabalho, literalmente)
.Se prestarmos um pouquinho de atenção na língua, quando dizem que um de seus
filmes "sai" (é lançado), você tem a impressão de que você sai de
fato ou que você já o fez sair?
Oliveira – Eu diria "sair" como se diz "sair com
uma mulher", o que em português significa levá-la para a cama.
Godard – Agora, para os bons filmes, o lançamento (sempre
"sortie",ndt) tornou-se "por aqui a saída", é uma
maneira de livrar-se deles.
Oliveira – Nossos filmes acabam se tornando também filmes de
festivais. Os festivais servem para mostrar a diversidade dos filmes a uma
diversidade de públicos. É um contraste de diferentes realizadores, países,
hábitos. É isso, mas isso não é tão mal assim.
Godard – Acho que você está descrevendo uma época passada, de que
eu mesmo conheci o fim. Eu achava que era o começo e na verdade era o fim. Era
uma época em que os festivais efetivamente ajudavam as pessoas a se
encontrarem, a discutir sobre cinema, discutirem o que gostariam que ele se
tornasse. Tudo isso mudou, o cinema mudou também. Agora, os cineastas reclamam
de solidão, mas se eles não falam mais, se eles não discutem mais, é problema
deles. Hoje, há cada vez mais festivais de cinema. Cada um, individualmente,
tira o proveito que pode, tanto o mais potente como o mais fraco. Mas me
parece, em geral, que o festival de cinema é feito para perpetuar a idéia do
cinema tal como ela é importante para a mídia ou para a televisão, essa idéia
do mito do cinema do qual Manoel viveu todo o século e eu vivi somente os dois
últimos terços. Você, talvez, sinta uma diferença entre os anos 20, quando não
havia festivais, e hoje?
Oliveira – O fenômeno novo é o das cinematecas, não como
instituições – isso existe há muito tempo –, mas porque há cada vez mais
espectadores. É o que acontece em Lisboa, eles vão na cinemateca ver filmes que
não chegaram às salas de exibição. É interessante porque é preciso de fato
gostar de cinema para ir vê-lo num cineclube ou numa cinemateca...
Godard – Essa história de encontro e diálogo, era isso que eu
queria te dizer: como crítico, o que eu espero não é que me digam boas coisas,
mas só tem gente que diz ou escreve: "Seu filme é terrível, é fantástico,
é genial, é extraordinário!" Aí eu pergunto a elas: "É? O que é tão
extraordinário?" E elas me respondem: "Ah! Oh!", eles não têm
mais palavras, eles nem repetem "É extraordinário". Ao passo que se
me fizer uma observação de que é muito fraco, que há erros, então eu acredito
que existe aí uma chance para dialogar: será que você pode me dizer quais são
os erros? É assim que testamos o fato de que hoje os críticos não querem mais
falar e que os cineastas não gostam que os critiquem. Mas eu, que fui formado
como crítico, a única necessidade que eu tenho verdadeiramente é que me digam:
aquilo ali não está bom. Você tem necessidade que te digam "Aquilo não está
bom", isso te incomoda? Porque eu tenho coisas a dizer sobre o que eu não
gosto no seu filme mas eu não quero te indispor.
Oliveira – "Sou orgulhoso quando me comparo, sou humilde
quando me consideram." É uma bela frase do seu filme.
Godard – São os santos que dizem isso, ou as pessoas honestas.
Oliveira – Eu sou pessimista. Quando alguém me diz que alguma
coisa não funciona no meu filme, eu sinto. Com o tempo, entretanto, eu pensei
ter me tornado insensível. Mas depende do lugar em que me atingem. Se eu tenho
um machucado no punho e me atingem o bíceps, nada acontece. Mas se essa mesma
pessoa bota o dedo na ferida, aí eu grito.
Godard – É preciso saber dizer o que é bom e o que é ruim. Não se
trata de dizer o sentimento que se teve, mas fazer a crítica técnica ou
científica do filme. Só a Nouvelle Vague disse isso. Ela disse: esse travelling
é bom e eis aqui por que achamos ele bom em comparação com aquele diálogo que é
ruim. Hoje, isso se perdeu completamente. A noção de autor ganhou uma tal
importância que agora quando se faz um filme até o seu assistente não te diz
mais isso. O único que às vezes tem um pouco de coragem de dizer isso, o único
com quem eu tenho bizarramente uma relação artística, é o produtor. Porque o
produtor colocou dinheiro ou ao menos arriscou o dinheiro dos outros, e em nome
desse risco ele ousa me dizer: "Jean-Luc, isso não funciona." E eu
digo "Ulalá!", e penso. Ao menos, tenho uma possibilidade de
reflexão, me ancoro melhor. Se os cientistas são muito fortes hoje, é porque
eles são os únicos que ainda trocam críticas. Um astrônomo diz: "Eu vi um
eclipse da Lua, eu fotografei." O outro diz: "Então mostra a
foto." Ele observa e constata: "Mas aqui dá pra ver a Lua! E você
falava de eclipse?". E o outro diz: "Ah!, sim", ele fica
abobado, mas ele recomeça. Existe um momento na arte, na crítica de arte, por
exemplo entre Baudelaire e Delacroix, em que essa confrontação dos críticos
deve acontecer. Senão, não avançamos. É a única coisa de que eu tenho
necessidade, a crítica. E eu não tenho.
Oliveira – Eu tenho antes necessidade de meios para fazer filmes.
Não sei nunca o que vai ser um filme. Tenho uma decupagem, tenho atores,
cenário, mas não tenho filme. Durante a filmagem, a realização vai mudar a cada
instante a configuração dessa nebulosa. O concreto aparece apenbas no momento
em que eu vejo as tomadas do filme. Detesto ver as tomadas, porque sempre me
sinto desolado.
Godard – Acho que isso sentimos todos. Acho que só Hitchcock
ficava contente vendo suas tomadas. Então era isso que, como crítico, eu
gostaria de dizer sobre o seu filme: de primeira eu embarquei com o filme e
depois por um momento em me soltei, e logo depois comecei a pensar em alguma
coisa. Eu pensei, ah, não é tão bom, e logo depois, ao mesmo tempo eu sonhava,
pensava em Newton, na gravitação. Depois eu voltei a mim, e nesse exato
momento, no diálogo do filme, alguém pronuncia a palavra gravitação. E aí eu
falei para mim mesmo: finalmente, é um belo filme, é preciso que eu vá vê-lo de
novo.
Oliveira – É efetivamente o tema do filme: a gravitação e as leis
do peso.
Godard – De um ponto de vista mais científico, mais técnico, se eu
tivesse sido assistente do seu filme, eu teria dito: "Você tem certeza, me
explique melhor para que eu possa melhor assisti-lo, por que você pegou essa
atriz para encenar Emma jovem (Cecile Sanz de Alba) e por que para Emma mulher
você pega uma outra (Leonor Silveira) com uma diferença tão grande? Foi por
vontade própria, aceito?" Essa é minha crítica: a segunda atriz não está à
altura da primeira, ou ao menos, quando a segunda atriz aparece, o filme cai, é
a gravitação. Depois volta.
Oliveira – A resposta é muito simples: no começo, eu escrevi o
filme para a segunda atriz, Leonor Silveira. Essa mulher estava em estado de
crise, de depressão. Meu produtor, Paulo Branco, tentou me dissuadir de
escolhê-la. Existe, no livro O Vale do Abraão, de Agustina Bessa-Luís, o livro
que eu adaptei, uma frase muito bonita que diz que os cabelos de Emma
"caíam sobre o ombro como uma mancha de tinta negra". Para filmar
essa frase, eu fiz pintar os cabelos de Leonor, que são loiros. Ela estava
traumatizada com isso. A cena ficou ruim. Era preciso então encontrar uma outra
atriz para encarnar Emma adolescente. Essa é a resposta técnica à sua crítica
técnica. Eu queria acrescentar que um filme é sempre acompanhado de acaso e de
sorte. É isso que me leva adiante: todos esses pequenos acontecimentos que
aparecem no momento da realização. É um fenômeno que eu não entendo bem e que
pode engendrar tanto o pior como o melhor. Não existe filme sem acaso. É uma
criação, o filme é uma concepção de uma única pessoa, é muito difícil entrar
nisso.
Godard – A criação pode ser preparada?
Oliveira – Pode ser preparada, mas não reparada. Como a vida. As
coisas estão lá, esperando que nós as filmemos. O que você vai querer reparar?
A fome, as crianças que morrem na África, sim, isso é importante, precisa ser
reparado, merece o público mais vasto possível. Mas um filme não, é uma
confusão tão grande que eu me sinto pequeno diante de mim mesmo. Dito isso,
aceito a sua crítica a respeito do seu abandono do meu filme e sobre o retorno:
é preciso ser muito sensível para poder entrar e sair do filme sem se perder.
Efetivamente, é a lei da gravitação.
Godard – Eu acredito com muita modéstia que os cineastas da
Nouvelle Vague fizeram cinema partindo do museu. Descobrimos o cinema na
cinemateca. Nascemos lá. Claro, tínhamos visto Chaplin quando éramos menores,
mas ninguém entre nós disse aos quatro anos de idade, "Eu vou fazer
cinema" depois de ter visto Carlitos
Bombeiro. Logo, eu sempre tive uma referência na cabeça. E eu penso assim
que a obra tem mais importância que o homem. Não é algo evidente para todo
mundo. A mulher faz obras abrigando homens. Tudo que o homem pode fazer para se
encontrar em pé de igualdade relativa é fabricar obras: pintura, literatura ou
política, guerras, desemprego, comércio. No fundo, o homem me interessa pouco.
O homem Manoel de Oliveira me interessa pouco, Se nós habitássemos na mesma
cidade, lado a lado, eu acredito que não encontraria com você mais do que
estamos acostumados a nos encontrar. Claro, quando nos víssemos, falaríamos
melhor dos filmes, mas não muito mais. O que me incomoda mais hoje é que os
meios de comunicação desenvolveram a noção de personalidade antes da noção de
pessoa. Na obra há a pessoa, ha pessoa há a obra. Há pessoas que não fazem
obra, mas cuja vida, particularmente as mulheres, é uma obra. Os homens são
forçados a fazer obras porque muitas vezes eles não fazem nada. Digo em coro
com Buñuel, os filmes são o que existe de mais importante para mim. Mas se eu
devesse pôr em jogo a vida de uma criança e o futuro de um filme, eu não
hesitaria um segundo: a criança vem antes do filme.
Oliveira – Naturalmente. Sob esse ponto de vista, eu digo também
que a arte não é tão importante.
Godard – Mas então se isso não é muito importante, não vale a pena
fazer. As mulheres são mais lógicas, eles fazem na vida. Não estou certo que
podemos dizer tão facilmente que a arte não é importante. Principalmente hoje
quando não existe quase arte e muitas crianças que morrem. Isso quer dizer que
deixamos viver muita arte e sacrificamos as crianças?
Oliveira – A arte não é o artista. O artista, a posição de
artista, é a vaidade do homem. Essa maneira de expor a visão do mundo, de
dizer: "Isso vai, isso não vai", uma efusão de vaidade. É o rés do
chão. A arte é mais elevada, mais interessante que o artista. Um filme é sempre
mais inteligente do que seu realizador, como diz Straub. Essa maneira que o
realizador ou o artista tem de sair para se expor, diz respeito somente à
vaidade.
Godard – É também uma atitude de criança: "Olha, mãe, fiz um
desenho."
Oliveira – Sim, também, mas muitas vezes esse desenho é bonito
também. Essa diferença entre a arte e o artista é também a diferença entre a
História e a arte. A História mostra a evolução dos povos, das civilizações,
dos sentimentos, do gosto. A arte exibe a substância dessas evoluções. Nós
somos todos responsáveis, mesmo se, como realizador, eu nada possa fazer. Como
realizador, eu só posso fazer uma coisa, realizar filmes. É tudo. Entretanto, o
artista, no momento em que cria, ele tem sempre razão. É sua ficção, a
interiorização.
Godard – Ah, eu não acredito, tudo está fora.
Oliveira – Sim, mas antes. Mas, depois, tudo entra na cabeça para
sair de novo. Por exemplo, frente a Infelizmente
Para Mim, eu estou diante do filme como uma esponja que vai aspirar tudo.
Godard – Não tenho certeza se essa é uma boa imagem. Claro, existe
um lado espetacular e poético que é a missão profunda do cinema. Mas essa
missão só se aplica se houver primeiro experimentação, verificação, trabalho,
aquilo que podemos chamar de aspecto documentário de um filme. Existe isso nos
grandes artistas, em você, em Pialat, em Anne-Marie Miéville, Straub,
Cassavetes, Visconti, Rouch, pessoas muito diferentes, eu às vezes. Eisenstein,
por exemplo, não há ninguém mais abstrato e estilista, ou até estiloso, do que
Eisenstein. Entretanto, se hoje devemos mostrar planos da Revolução de Outubro,
não é nos cinejornais da época que encontramos, ou mais exatamente os
cinejornais se servem das imagens de Eisenstein sobre a Revolução de Outubro,
imagens que foram completamente encenadas. Quando lemos o diário de filmagem de Nanook de Flaherty, que acreditamos ser
um documentário, aprendemos que Flaherty pagou a seus esquimós, brigou com
eles, os forçou a pescar peixes todos os dias mesmo que eles não tivessem
vontade; ou seja, ele fez uma equipe de cinema com ele e foi um etnólogo
formidável. Existe então todo esse lado documentário, essa forma, se não de
conhecer perfeitamente a história do cinema, ao menos de ter o sentimento de
que, para muitos, se perdeu hoje. É preciso ter esse sentimento da história do
cinema, um pouco como Joyce, que tinha um sentimento profundo da história da literatura,
e que sabia que, quando escrevia uma frase, certas de suas palavras tinham sido
inventadas no tempo dos latinos, outras na Idade Média, e que ele, Joyce, no
momento em que escrevia essa palavra, normalmente com toda essa bagagem e esse
passado que ele sentia, ele estava na idade moderna da literatura, na sua idade
adulta, se assim podemos dizer. No cinema, muito rápido, sob a influência
americana que o mundo aceitou, uma parte desse trabalho documentário foi
abandonada. Fomos para o espetacular de primeira, que era entretanto a missão
final, digamos, a missa do filme. Nos filmes, hgoje, faz-se a missa, e depois a
oração. Os grandes artistas, os artistas honestos, , fazem primeiro sua prece,
e logo depois existe a missa, com o público, mais ou menos fiel. Os americanos
regulamentaram a missa. O que importa para eles, na missa, é a coleta
("quête", que também quer dizer "busca", ndt): uma boa missa é uma missa
em que a igreja está cheia, em que a coleta é grande.
Oliveira – A busca ("quête") é o tema de meu próximo
filme.
Godard – Eu não faço busca ("quête"), mas pesquisas
("enquêtes"), me contento em ser um delegado. Eu registro as queixas.
A crítica deve se exprimir sobre a oração, não sobre a missa. Sobre a missa,
não se pode dizer nada. Ou então se diz: "Belo espetáculo,
magnífico". A oração é um exercício também, é como o treinamento do
esportista, os tons do pianista. Quando se é crítico, deve-se criticar os tons
e o que podem dar esses tons.
Oliveira – O espetáculo e a missa não me interessam. O importante
é a vontade de fazê-la. Você tem vontade de fazer cinema, eu tenho vontade de
fazer cinema, como nesse momento eu tenho vontade de fazer xixi. Bergman dizia:
"Eu faço filmes como alguns ingleses vão sozinhos caçar na floresta.
Vestem-se, montam guarda com seu fuzil. Mas todas as manhãs, eles fazem a barba
pelo seu próprio prazer." Eu acho isso muito bom. É preciso refletir sobre
isso, sobre a vontade. Está em você, como um pintor que faz pinturas que
ninguém vê, mas que não consegue impedir-se de fazer. A vontade é como uma flor
magnífica que conduz sozinha ao coração da floresta virgem e que leva o desejo
do fruto nela mesma, por ela mesma. Se ela encontra um olhar que a considera e
que a julga bela, ela se realiza, ela se torna uma beleza notável e notada. mas
muitas vezes esse olhar chega muito tarde, às vezes a floresta já foi queimada
ou desmatada para ganhar terreno. Entre mim e você, há muitas diferenças,
felizmente. Diferenças de língua, de país, de cultura. Você escolheu um cinema
um pouco provocador e que destrói a ordem tradicional do relato. Você pesquisa
a partir do caos, para imprimir desordem na ordem. Eu procuro colocar a
desordem em ordem – inutilmente, reconheço –, mas eu pesquiso. Acredito que
essa é a diferença entre nossos filmes: eu estou muito próximo do cinema em
geral e você é um cinema particular.
Godard – Eu diria que fazemos a mesma coisa, mas que você consegue
chegar lá e eu não consigo muito bem. Todo mundo, naturalmente, na imagem da
ciência, parte do caos para colocar uma certa ordem. É essa "certa
ordem" que é mais ou menos incerta, a qual se chega mais ou menos. Em
momentos, não podemos, não conseguimos. Em Infelizmente
Para Mim, é um pedaço de tempo que é extraído. Num outro filme, será outro
pedaço. A partir de um pedaço, de uma foto, eu me faço um mundo. Vendo certos
pedaços de seu filme, pensei em momentos do Van
Gogh de Pialat, de que eu
gosto muito. Para usar palavras simples como interior e exterior, mesmo se não
faz muito sentido distingui-las, eu diria que Pialat, em seu Van Gogh, ficava no exterior, e
entretanto ele só falava do interior. Ele estava mais para a tradição de
Visconti, nesse aspecto. Você seria mais o contrário. Você permanece no
interior. Ora, o interior, no cinema, não podemos mostrá-lo, só podemos
senti-lo, mas ele não é visível, senão não é mais o interior.
Oliveira – Podemos filmar até a alma.
Godard – Isso. Quando eu era criança, diziam: a galinha é composta
de interior e exterior. Quando tiramos o exterior, vemos o interior, e se
tiramos o interior, vemos a alma. Eu ousaria dizer que você filma o interior de
costas, mesmo que filmando as pessoas sempre de frente. O que num dado momento
me incomodou no seu filme sendo dada essa aposta rigorosa e potente, é
felizmente uma imperfeição ainda humana que faz com que você tenha ainda
necessidade de fazer outros filmes. O que me incomodou foi que não houvesse
visões de lado, que a câmera estivesse muito perto do projetor. A câmera não é
feita para sempre coincidir com o projetor. O projetor transmitirá. É como o
operador de raios-x. Ele não se contenta com uma chapa de frente, ele
radiografa também de lado, de costas, na diagonal. Entretanto, no final, no
momento da projeção, serão todas imagens planas. Sem dúvida, o que eu te digo
aqui é uma imagem, mas nós somos pessoas de imagem. Isso não quer dizer que a
c6amera deva se deslocar o tempo todo. É isso que faz com que, por momentos, no
seu filme, haja buracos, o que os espectadores, os maus espectadores ou, dito
de outra forma, o público de hoje, chama de "longo". Isso não quer
dizer que eu reclame que um filme seja longo, eu fico até feliz que um filme
seja longo se, no começo, eu percebo que há boas coisas. Eu posso cochilar
tranqüilo, certo de reencontrá-lo. É isso que eu falo sobre ter uma discussão
científica sobre um filme.
Oliveira – Eu coloco a câmera como você mesmo coloca, no lugar
preciso em que eu acredito que ela deve estar. Por que ali e não aqui? Não sei
por quê.
Godard – Seria interessante se se dissesse um pouco por quê.
Oliveira – A força vem da fixidez. Foi Bresson que me ensinou isso
com O Processo de Joana d’Arc.
Podemos também chamar isso de objetividade.
Godard – Eu tenho a impressão de que os cineastas, bons ou ruins,
eles têm uma idéia, uma vontade, bom, e eles procuram pessoas com dinheiro
suficiente para realizar essa vontade. Eles trabalham como uma pessoa que diz:
essa noite, eu tenho vontade de comer espaguete à bolonhesa. Então o sujeito
observa quanto dinheiro ele tem no bolso ou ele pede à sua mulher ou a um amigo
para fazer espaguete à bolonhesa. Honestamente, eu sempre fiz o contrário. O
produtor me diz: "Tem Depardieu, talvez seja o momento de fazer um filme
com ele". Como não somos ricos, dizemos sim, sim, talvez ganhemos dinheiro
logo depois. Depois, assinamos o contrato. Depois ainda é preciso fazer o
filme, infelizmente para mim!
(...)
(originalmente publicado no
jornal Libération, dias 4-5 de setembro de 1993, e depois republicado em Godard
par Godard, organizado por Alain Bergala, v.2, Éd. de l’Étoile, 1998. Encontro
organizado por Gérard Léfort. Tradução de Ruy Gardnier)
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