quinta-feira, 16 de abril de 2015

MEMÓRIA DE UM CRÍTICO DE CINEMA


por Manoel de Oliveira


Caro Serge Daney,

Há muito que não deixo de pensar nisto, e não resisto em te dizer, porque agora que já cá não estás, não sei se aí ao etéreo te chegam vozes do que aqui se passa. Simplesmente isto, imagina: todas as técnicas têm avançado à velocidade da luz, mas efeitos nefastos. Se é certo que por um lado nos atraem por nos proporcionarem mais conforto, ou comodidade, certo é também que diariamente atulham a nossa vida social e invadem a privacidade, num crescendo de problemas que, ao mesmo tempo, desvirtuam o nosso viver pacato, filho da natureza a que estamos umbilicalmente ligados, alterando o viver, e alterando a própria natureza, que é a garantia da nossa sobrevivência, com artificialismos que vão de mais em mais desafiando, imprudente ou inconscientemente, riscos que são incapazes de controlar e de que já somos vítimas em grande parte. Como se pode viver nesta situação que o mundo atravessa, tão contraditória e descontrolada, sem soltar um grito de desespero? E se o soltarmos não de antemão que ele ficará perdido no espaço sem que tenha sido ouvido? Como pode o mundo descer a uma tal inconsciência, no justo momento em que ele próprio se diz mais do que nunca senhor da ciência?

E nesta confusão que me embaraça e onde me contradigo, pergunto a mim próprio como explicar que, paralelamente ao meu repúdio pela ciência aplicada, seja um apaixonado realizador de filmes, um amante do cinema, sendo ele um derivado desta mesma ciência que acabo de condenar?

A ciência pura, essa que descobre os fenómenos e as leis do universo, acho-a respeitável e, por isso, admiro todos os devotados cientistas que no-la trazem ao conhecimento do mundo. Mas para a outra, a aplicada, em que neste caso, o cinema se insere, tenho eu uma resposta plausível? Lá ter, tenho, e embora me pareça a mim válida, a verdade é que estou tão comprometido nela, que o facto de o estar põe-na em causa, a argumentação que a seguir exponho.

Com efeito, creio profundamente nesta coisa a que chamamos cinema que enquanto imagem projectada no ecrã éimaterial, é como que o fantasma de qualquer realidade, real ou imaginada, imagem que não pertence à realidade concreta da ciência aplicada. O que desta fica é o ecrã em si, as máquinas em si, enfim, as cousas materiais, mas não o substracto imaterial que destas cousas se abstrai e delas não faz parte.

É nesta base que te escrevo com aquela saudade dos bons tempos em que estavas connosco e nos confirmavas que cinema é cinema quando é tudo o mais que para aquém e além dela está. Ciência apagada por tudo aquilo que supera a matéria e nos dá razão e força para continuar a viver, prosseguindo a nossa marcha pela escuridão do túnel do futuro, animados pela longínqua luz que lá do fundo nos acena e a que damos o nome de esperança.

Animado por todas estas que nos iluminam a realidade, escrevo-te esta carta pela necessidade de te dizer que tu continuas, como dantes, entre nós, envolvido neste espírito que nos é comum por via do cinema. E que tu, como ele, prevalecerão tão presentes hoje como ontem. Como quando apareceu o cinema, este já existia desde sempre, não como máquina , mas como cinema. Por isso dizemos que o Cinema é sem tempo, pois que ele é fruto de todas as artes, e do espírito que as anima, como tu, Serge Daney, já eras espírito crítico, dissecador e analítico dos filmes, e com eles persistes em comum com a projecção do fantasmagórico, como é o cinema onde a realidade e a ficção são tão ficção e realidade uma como outra.

Assim como estiveste, estás connosco e estarás até lá algures, onde esperas o fim das cousas divididas como o são neste mundo, onde vivemos uma ilusão de tempo, que também é de cá, para finalmente entrar no metafísico do lado de lá, que não tem tempo, lugar ou espaço.

E cousa Cinema, vejo-a no seu aspecto transcendental, sob certos porquês. Porque o cinema não é máquina de filmar, nem película, nem as máquinas de revelar, ou estúdios ou auditórios nem, muito menos ainda, os vídeos e quejandos, nem sequer os actores, os realizadores, os autores dos argumentos, e dos diálogos, os maestros e os executantes das partituras, ou qualquer dos técnicos que tão generosamente se dão ao processo da criação, para que o processo complexo de criação se realize, pois este, tal como o nosso corpo, não funciona se lhe faltar o espírito, impulsionador de todas as cousas.

Espírito que anima a inteligência e rola desde o vazio dos tempos uma vez que o Cinema não tendo tempo tem todos os tempos fora e dentro do tempo e do espaço. O Cinema não é mais que fantasma virtual, resultado do espírito criados. Por igual a virtualidade do espírito analítico e dissecador do crítico se mantém fixado no papel, naquilo que ele, o crítico, deixou escrito, ou naquilo que em memória ficou retido do que apenas foi dito.

Caro Serge Daney, continuas a ser memória e presença no tempo e fora dele, continuas a ser parte complementar do cinema. E cinema é tanto o que se projectou, como o que dessas projecções se falou e fala, se escreveu e escreve; do que foi pensado, do que se pensa e do que se pense. Numa palavra, o cinema não foi, nem sequer começou. O cinema é. É, porque já era, e já era porque tem em si o espírito das cousas, e assim, como sempre foi, sempre será. E tu, Serge Daney, uma vez que foste, é porque já o eras e connosco sempre serás.

Porto, Junho de 2000.

(Trafic nº 37, “Serge Daney - après, avec”, primavera 2001) 
Texto extraído de  http://www.focorevistadecinema.com.br/jornaloliveiradaney.htm

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