quinta-feira, 9 de abril de 2015

PERCUSSÃO E PRECISÃO EM SAMUEL FULLER


por Miguel Marías

Qualificou-se Samuel Fuller, um pouco precipitadamente e desde cedo com caráter de julgamento provisório, em algumas tentativas “pioneiras” de aproximação à sua pouco conhecida e nada respeitada figura, lá pelos anos 60, de “primitivo”. Advirto, para não lançar sobre ele desmerecidas suspeitas, que não me refiro ao artigo de Luc Moullet na Cahiers du Cinéma nº 93, março de 1959, primeira análise séria de Fuller que, apesar de uma boa coleção de erros táticos - respondia a ataques hoje esquecidos - não menos duradouros, segue estando entre os melhores, junto ao posterior (1964) de Jacques Lourcelles em Présence du Cinéma. O mal é que a etiqueta (como habitualmente sucede com tudo que “cola”, simples e sonoro) aderiu-se ao corpo para sempre, sem que pareça haver modo de desprendê-la, nem sequer quando o autor de Merrill’s Marauders (1962) está há uns doze anos enterrado e quase meio século após Andrew Sarris ter escrito em The American Cinema (1968) sua frase mais infeliz: “Fuller é um autêntico primitivo americano cujos filmes devem ser vistos para serem compreendidos”. E eu que havia pensado que qualquer filme tinha que ser visto para ser incompreendido!

Certo, o Fuller dos primeiros tempos - desde sua estréia fulgurante em I Shot Jesse James (1949), um westernanômalo (como todos os seus), e em The Steel Helmet e Fixed Bayonets! (ambas 1951), ainda que não tanto nas menos vistas The Baron of Arizona (1950) e Park Row (1952) - tem algo do estilo brutalmente direto - massomente em aparência tosco e elementar -, à época “manifestamente em desuso”, que freqüentemente se atribuía (de maneira simplista, sem suficiente conhecimento de causa) a alguns dos cineastas do mudo, quando não se estendia - assim mais abusivamente - a todos eles (como se tais adjetivos enquadrassem minimamente Porter, Griffith, Dwan, DeMille, Walsh, Francis e John Ford, Chaplin, Maurice Tourneur, George Melford, Borzage, Browning, Keaton, King Vidor, Henry King, Stroheim, Sternberg, Flaherty, Brenon, Clarence Brown, Karl Brown, William Wyler ou Monta Bell, não mais que aos mais europeus Lumière, Méliès, Stiller, Sjöström, Feuillade, Lubitsch, Murnau, Lang, Dreyer, Hitchcock, Epstein ou Pabst). Mas como, ao mesmo tempo, Fuller era decididamente um diretor já não manifestamente sonoro e pós-“wellesiano”, senão posterior à II Guerra Mundial e a essa brecha histórico/ética/cinematográfica que Godard situa ao redor do Holocausto (ou, melhor dizendo, seu descobrimento geral e horrorizado pelo mundo; a propósito, Fuller filmou a liberação do campo de Falkenau), o que - à medida em que se conhecia sua obra e esta seguia evoluindo - chamava a atenção era muito mais que pertencia, como precursor inclusive, à então incipiente categoria dos “modernos”, com tanta razão ao menos como Roberto Rossellini ou Michelangelo Antonioni, Orson Welles ou Nicholas Ray, Vittorio De Sica ou Elia Kazan, Stanley Donen ou Robert Aldrich, Frank Tashlin ou Luciano Emmer, Joseph Losey ou Federico Fellini, Jacques Tati ou Robert Bresson.

E não somente porque Fuller, nascido em 1912, era ainda relativamente jovem, e mais ainda como diretor de cinema que como pessoa (pois já carregava sobre seus ombros uma notável biografia com a qual contar e uma variada e arriscada experiência multiprofissional quando começou sua nova carreira), senão porque seu enfoque, ainda que partindo do exemplo dos clássicos (de Ford a Wellman, de Herbert Brenon a Griffith, de Murnau a Walsh, de Gance a Borzage, de Lang a Preminger), era - ainda que não se propusesse assim - original e inovador, além de eclético em sua eleição de recursos expressivos, pelo que já tendia a evoluir rumo a um outro estilo, mais brutal e impactante, mais elíptico e direto, mais febril e sensacional que o considerado “clássico” (e que, tal como habitualmente descrito, não foi praticado jamais senão pelo mais vulgar e menos inspirado dos artesãos). Fuller havia lutado a guerra, e não de um gabinete ou de uma ponte de comando; havia coberto como repórter de rua a crônica de sucessos, sem se livrar dos mais aterradores. Havia visto muito horror, muita carnificina, muito sangue e muita morte, e não precisava buscar inspiração em novelas estrangeiras nem aprender sobre a vida em outros filmes. Tinha coisas a contar.

Era evidente - desde seu primeiro filme, e nisso nunca mudou - que Fuller aspirava a transmitir ao espectador o que havia vivido e visto com a maior força, presença, energia e contundência possíveis. Não para convencê-lo de nada - Fuller não terá sido jamais porta-voz ideológico nem pregador ou vendedor a domicílio -, nem para ganhar dinheiro, mas por uma patente busca da eficácia na comunicação: Fuller trata de ser ameno, rápido, econômico e claro para ser bem entendido e evitar a redundância. Esta consciência autoral - que o impulsionou a procurar escrever, produzir e dirigir seus filmes sempre que lhe foi possível -, é lógico que ela despertasse o interesse e suscitasse a simpatia de certos jovens cinéfilos e críticos, mais ou menos iconoclastas e (alguns) aspirantes a cineastas, de Moullet a Michel Mourlet e Lourcelles, passando por Jean-Luc Godard e Bertrand Tavernier, para não citar mais que alguns de seus admiradores de primeira hora. E não é de se estranhar que Godard, desde seu primeiro longa, À bout de souffle (1959), adotasse Fuller como um de seus modelos emblemáticos, copiando-lhe um enquadramento de Forty Guns (1957), em modo de saudação e homenagem; deu-lhe a palavra, como Sam Fuller em pessoa, para que definisse o cinema - “um campo de batalha [...] em uma palavra, emoção” - emPierrot le fou (1965); em 1966 lhe dedicou, junto a Nicholas Ray, sua despedida de Anna Karina e do amor e emulação do cinema americano, Made in U.S.A. E há que se reconhecer que Fuller interpreta com histriônico entusiasmo seu próprio personagem, muito “de cinema” - baixinho, expressivo, gesticulador, quase sempre com um enorme charuto ou com um cachimbo entre os dentes -, dizendo “câmera, ação” (ao menos alguma vez em sua vida) com um disparo de revólver.

Não é estranho que se descobrissem essas afinidades, e outras mais tarde (desde Wenders a Kaurismäki; não tão explícitas, podem-se detectar mesmo em alguns americanos, como Michael Cimino e Abel Ferrara, quiçá também Martin Scorsese, Francis Ford Coppola, Brian De Palma, Michael Mann ou John Flynn), entre o já maduro ex-jornalista de Massachusetts e várias vagas de diretores (e cinéfilos) sobretudo europeus (e sempre estranhei muito que não tenha sido um ídolo no Japão) mais jovens, porque se algo define Fuller é o seu caráter espontaneamente inconformista e indomavelmente antiacademicista (não surpreende que a Academia de Hollywood nunca lhe fizesse o menor caso nem sequer para recordar-se dele a título póstumo: o desprezo era mútuo e recíproco), em evidente ruptura (para quem queira ver) com tudo o que faziam, o mesmo nos anos 50 que nos 60, todos os seus colegas (incluindo os genericamente ou geracionalmente mais vinculáveis: Robert Aldrich, Anthony Mann, Nicholas Ray, Richard Fleischer, Joseph L. Mankiewicz, Elia Kazan, Robert Rossen, Abraham Polonsky, Joseph Losey, Jules Dassin, Edward Dmytryk, Richard Brooks, Robert Wise, Mark Robson, Joseph H. Lewis, Phil Karlson, Robert Parrish, Budd Boetticher, André De Toth, Fred Zinnemann, John Berry, etc.).

Dir-se-ia que encontram-se feitas com outros materiais: são mais duras, ásperas, rudes, secas e rugosas, e dão a impressão (na realidade enganosa) de se basear ou se apoiar em maior medida na montagem, simplesmente porque o que em geral - por princípio ou por costume - Hollywood tende a dissimular e polir - e a MGM mais ainda -, Fuller, em contrapartida, ressalta, potencializa, faz sensível, enfatiza. Cada mudança de plano, e suas variações em escala (às vezes extremas), os movimentos de câmera, os cortes, os primeiros planos... notam-se - e muito - em Fuller, como se sentem a materialidade, a consistência, a textura, o tato, o volume, o peso, a corporeidade e o relevo dos objetos, dos seres humanos, dos animais, das paisagens. Seu cinema - cada imagem e seu choque e contraste e sucessão - tem uma dimensão muito mais materialista e física do que é habitual no cinema americano. Em Fuller importam de verdade o peso e a força da gravidade, não é precisamente um cinema leve e flutuante ou vaporoso, mas sim decididamente sólido e tangível.

Como mais tarde Godard, Fuller se especializou desde o início em fazer o que não faziam os demais e, se possível, o que - em teoria, segundo normas não escritas porém certamente vigentes, e por cujo respeito velavam zelosamente muitos produtores e seus mais servis capatazes -, “não se podia (ou devia) fazer”. Planos larguíssimos com múltiplas posições de câmera, travellings epicamente vertiginosos, mesclados com montagens ultra-rápidas (com ritmo de disparo de metralhadora) de enormes closes, como se estivéssemos no cinema mudo soviético de Eisenstein, Pudovkin e Vertov, conexões bruscas de closes com enormes planos gerais, emprego do formato CinemaScope esquecendo do manual de instruções, com saltos de eixo e falsos raccords convertidos em fator dinamizador, de desequilíbrio, de contraste e de surpresa, gruas que pareciam rodas-gigantes ou carrosséis enlouquecidos, embora nunca montanhas-russas enferrujadas como no Kalatozov de Soy Cuba. Mas para além dos aspectos formais e narrativos, não existia ainda a noção hoje opressiva e asfixiante do “politicamente correto”, porém já começaram a censurar Fuller, à direita e à esquerda, porque as utilizava sempre para fazer justo o que não convinha, o que não era habitual e aceito, o que não estava bem visto, o mais inoportuno, o menos “diplomático”, o que não se reconhecia publicamente nem no campo da ficção.

Pode-se encontrar, mais que um paralelismo, certa explicável afinidade, solidariedade e simpatia entre Fuller e os mais freqüentes habitantes de seus enfoques. Poucos de seus personagens são exemplares, só tendo alguma nobreza, casualmente, e por alto, os de mais baixo nível social e de reputação mais duvidosa, os menos respeitáveis e recomendáveis, os proscritos - como o trio protagonista de Pickup on South Street (1953): Jean Peters, Richard Widmark e Thelma Ritter -, nunca os grandes poderosos, os representantes da hierarquia econômica, social, política ou religiosa, quase sempre interesseiros, covardes, falsos e corruptos, desde Barbara Stanwyck em Forty Guns passando por Griff/Michael Dante em The Naked Kiss (1964) até qualquer um dos capatazes do crime organizado em Underworld U.S.A. (1961). A maioria dos protagonistas fullerianos (e também seus amigos e acólitos) são marginais sociais e perdedores, em menor medida mestiços e desertores, traidores da bandeira porém fiéis à sua verdadeira causa, que iniciam guerras pessoais por sua conta e à sua atmosfera, sem importar-lhes suas própria insignificância e suas nulas possibilidades de êxito frente a inimigos muito mais poderosos e com ainda menos escrúpulos. Os que a Fuller caem bem são os rebeldes e resistentes, quase nunca vitoriosos, sim, porém obstinados e decididos, que não dão seu braço a torcer, e que só mudam de opinião ou de grupo por convicção, aprendizagem ou amor. Contradizem-se e adotam atitudes ambíguas e incômodas porque são eles mesmos um campo de batalha portátil em cujo interior lutam idéias e sentimentos incompatíveis ou incoerentes, porém igualmente sinceros e quase fisicamente sentidos. Sim, talvez não saibam explicar com clareza - os já citados de Pickup on South Street, Constance Towers/Kelly em The Naked Kiss, os de Verboten!(1958), Rod Steiger em Run of the Arrow (1957), John Ireland em I Shot Jesse James - ou não podem fazê-lo pelo cargo de responsabilidade que ostentam - Jeff Chandler/Merrill -, ou por sua própria insegurança - Richard Basehart em Fixed Bayonets! - e se deixem levar pelos seus impulsos ou pelo descontentamento ou o mal-estar, pela raiva e a frustração, pela ânsia de liberdade ou pelo pânico.

E isso é sem dúvida o que terá dado pé para tratar Fuller como anti-intelectual ou repreender-lhe a falta de coerência de seus personagens, numa confusão entre criador e criaturas que revela ao mesmo tempo a incompetência geral da crítica e a condição de autor de Fuller. Esquecendo, para chegar a tal avaliação, que Fuller, além de ser um dos grandes cineastas não ágrafos - sem que tal limitação impeça que sejam autores e magníficos cineastas, pois souberam apanhá-las, autoritária ou vampiricamente, para que outros escrevessem por e para eles as histórias que desejavam contar, e tal como queriam -, um dos ainda menos numerosos que escreveram novelas, várias (não menos que onze) e em geral bastante notáveis, em particular The Dark Page(1944). Claro que tal omissão se vê favorecida pelo fato de que boa parte das mais recentes não foi publicada senão muito tardiamente em inglês (e antes somente em traduções francesas ou espanholas), e que pouquíssimos dos que comentaram sua obra haviam se incomodado em lê-las, mesmo que algumas (como, por exemplo, Dead Pigeon on Beethovenstrasse e The Big Red One, que finalmente foram editadas em inglês) sejam superiores à versão cinematográfica do próprio Fuller, já que freqüentemente as circunstâncias e as condições de produção não lhe permitiram realizar plenamente o que tão gráfica e dramaticamente havia imaginado.

Aspecto este, o da imaginação, que apenas se mencionou ao se escrever sobre o cinema de Fuller, quando é um dos elementos essenciais de sua personalidade, do mesmo modo que sua condição inequívoca de narrador. Ambos os traços permanecem evidenciados se confrontamos as descrições, gráficas e cheias de inventiva dramática, que Fuller faz de algumas cenas em inúmeras entrevistas, sobretudo ímpetos de filmes, tanto dos realizados fazia muito tempo como os que estava planejando fazer, e que costumam ser mais sensacionais ainda que o que podemos contemplar nas telas. Naturalmente, esta consideração de Fuller como antes de tudo escritor - antes de I Shot Jesse James havia publicado quatro novelas e haviam sido adaptados para o cinema dez argumentos ou roteiros seus - que também faz filmes e os “escreve” com a câmera, a luz, a cor, os corpos dos atores, o ritmo e o espaço nos levaria a um terreno extremamente interessante e intrigante, que apenas esboçarei, com a esperança de que algum dia alguém o explore a fundo, e é o da surpreendente relação de paralelismo ou parentesco existente entre Fuller e uma série de escritores os mais variados, que provavelmente nem sequer havia lido. Por vezes declarou sua paixão ou admiração por Balzac, Goethe, Dostoievski, Tolstoi, Stendhal, Shakespeare, Proust ou Maupassant, de quem não é fácil notar traço algum em seu cinema, porém eu o vejo mais próximo de alguns franceses como Raymond Roussel e Léon Bloy (em particular em The Big Red One), Paul Morand e Francis Carco, Louis-Ferdinand Céline e Pierre Drieu La Rochelle, Pierre Mac-Orlan e Pierre Benoît, Jean Curtelin e Boris Vian, ou Henry de Monfreid, hispano-americanos como Rafael Bernal ou Horacio Quiroga, alemães como Ernst Jünger, ou compatriotas como David Goodis (que adaptou em Street of No Return, 1989), Richard Stark=Donald E. Westlake (que outros adaptaram ou realizaram um pouco “a la Fuller”), James M. Cain, William Irish=Cornell Woolrich, Herman Melville, Edgar Allan Poe, Nathaniel Hawthorne, Jack London, Frank Norris, Sinclair Lewis, Dashiell Hammett, William Faulkner, Jim Thompson (estes onze é mais provável que os tenha lido), ou Dom De Lillo (que seguramente assistiu muitos filmes de Fuller). E, sobretudo, encontro curiosas coincidências (podem muito bem ser simplesmente isso) com Jorge Luis Borges - vários de seus filmes poderiam ser incluídos na História Universal da Infâmia do argentino - e com Blaise Cendrars, cuja novela L’Or estive a ponto de presentear-lhe em Santander num verão, pois percebo que é a perfeita história fulleriana (a tal ponto que talvez já a rodou em 1950, como The Baron of Arizona).

O cinema de Fuller não pode ser visto com calma e distanciamento, com a perspectiva de um espectador imparcial e sereno, comodamente assentado em sua poltrona. Não é um cinema para indiferentes, nem para quem adota ante esta arte um ar condescendente, de infundada superioridade ou desprezo. Fuller quer sempre - e costuma alcançá-lo com vantagens - meter-nos na pele de seus personagens, fazer-nos compartilhar seus castigos, seus conflitos, suas dúvidas e dilemas; para isso nos situa no centro do furacão, submetidos a um intenso fogo de morteiro, de onde quase sentimos o calor e a fumaça das balas, os lança-chamas, as bombas, o barro ou a neve suja sobre a qual rastejam ou se arrastam. Ainda que não sejam “de guerra”, todos os seus filmes pertencem ao gênero bélico ou às suas variantes (conforme o enfoque): em tal vez os que lutam rumo à vida ou à morte são grupos rivais de gângsters ou policiais e delinqüentes, ao invés dos exércitos habituais, porém sua organização é paralela, seu modo de pensar e de atuar muito similar: ver a planificação e execução de cada um dos assaltos armados de House of Bamboo (1955), ou o sigiloso recrutamento da tripulação do submarino em Hell and High Water (1954). Por isso, seja no preto e branco abstrato e essencialista de uma rodagem em estúdio ou na cor dos exteriores de selvas naturais, Fuller nos faz sentir a roçadura áspera do couro ou do metal, da rocha ou da arena, do pêlo de um cavalo sem sela, o suor, o calor ou o frio, compondo algumas imagens de uma força telúrica e sensorial e de um volume táctil como poucas vezes o cinema foi capaz de alcançar. Que nos entrem os dados imediatos das circunstâncias dos personagens pelos poros e os sentidos não exclui que também funcione o pensamento, nem entre eles nem em nós espectadores, que assistimos de perto ao drama, quiçá incomodados, demasiado próximos, porém sem perigo: em compensação, haveremos de ter mais lucidez que os que estão envoltos no tiroteio, tratando de sobreviver, cegados pela fumaça e pela confusão. Foi uma habilidade especial de Fuller transmitir-nos com ordem a impressão global do caos - exemplos supremos disto seriam Run of the Arrow,The Crimson Kimono (1959), Forty Guns e House of Bamboo -, incluindo recompor plano a plano a realidade dinamitada em mil pedaços: China Gate (1957), Shock Corridor (1963), a manipulada Shark! (1969), The Big Red One (1980), White Dog (1982), ou os seus subestimados longas finais, Les Voleurs de la nuit (1983, magnífico filme que tem surpreendentes pontos em comum com Le diable probablement e antecipa L’argent) eStreet of No Return. Que Fuller é brutal e violento, que os personagens se golpeiam e ferem e maltratam incluindo quando se amam (Pickup on South Street), que até matem aqueles sem os quais não podem viver (House of BambooForty Guns), isto é certo, uma obviedade que não é preciso sublinhar. À condição de não se esquecer que também pode ser o mais suave, acariciador, elegante e sutil dos cineastas, quase mizoguchiano em suas modulações e deslizamentos, sobretudo em The Crimson Kimono e em alguns momentos de The Naked Kiss,House of BambooPickup on South StreetPark Row ou Run of the Arrow. Mas tudo isso que antes se enumerava entre os traços característicos de Fuller, mais que “primitivo”, é na realidade o próprio da tragédia clássica, desde os gregos a Marlowe e Shakespeare, e como disse T. S. Eliot e recordou sinteticamente Godard em Bande à Part(1964), “clássico=moderno”.

(Traduzido por Bruno Andrade)
Texto extraído de http://www.focorevistadecinema.com.br/FOCO1/marias-percussao.htm 

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