domingo, 5 de abril de 2015
O REI DE NOVA YORK
As investigações morais de Ferrara contrastam com um filme profundamente imoral como Instinto Selvagem (Basic Instinct, EUA, 1992), em que o masoquismo é celebrado com mais regozijo do que olhar para menininhas em Renoir. Um materialismo simplista se esconde no título de Instinto Selvagem, enquanto o niilismo nos filmes de Ferrara é o destino de almas que se tornaram coisas quando desviaram-se de Deus.
Na segunda parte de O Rei de Nova York (The King of New York, EUA, 1990), Ferrara reconhece Murnau com um trecho de Nosferatu (idem, Alemanha, 1921) e fazendo seu herói (um sujeito vício/virtude, Ms. 45/freira, vampiro/anjo chamado "White") andar com um longo sobretudo negro idêntico ao do vampiro de Murnau. Mas Murnau já está evidente no primeiro plano do filme: as grades da prisão: a forma sombria que se vira e emerge à meia-luz ensandecida, fadada, já morta e pilhando. Fora, um avião que pira acima da linha do céu como um falo alado. Uma Manhattan cubista se assoma como um desafio, uma missão, um destino; sua luz dá energia, sexualidade, que atrai o vampiro branco para a noite. White se materializa no dia uma vez só, para um funeral, numa limusine preta como o caixão de Nosferatu, com janelas opacas que abrem para sua metralhadora preta ejacular a morte. De forma sobrenatural, ele estala em violência orgásmica e tentação bissexual, seja para enfeitiçar sua fêmea no cio, "advogada de Park Avenue", com promessas de uma trepada necrófila ("Eu quero agarrar você no metrô"), ou caindo na dança para reivindicar a lealdade de seus servos negros, que, como os polinésios de Tabu, remexem com corpos dançando, musicalmente, coreograficamente, teatralmente. Ninguém pára de desejar e de posar, mesmo parado.
Ainda assim, ao lutarem com o pecado, com a blasfêmia, os heróis de Ferrara fazem valer com Lúcifer sua autonomia moral, sua soberania, sua identidade de herói, sua glória, piedosamente. "O mundo inteiro é um cemitério e nós somos aves de rapina", proclama o vampiro Christopher Walken. "A humanidade lutou para existir para além do bem e do mal desde o começo".
Tag Gallagher
(Excerto do texto “Geometria da Força”, traduzido por Ruy Gardnier e retirado de http://www.contracampo.com.br/86/artgeometriadaforca.htm)
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