(Abel
Ferrara, Go Go Tales, Itália, 2007)
O clube
Paradise que serve de cenário único para Go Go Tales é um organismo vivo que
existe com a função singular de transformar o corpo em peça de expressão
artística. Go Go Tales se diferencia de outros filmes de Ferrara por ser todo
rodado em estúdio, um filme de Nova York, filmado na lendária Cinecittá. Um
espaço mais abstrato, portanto, fazendo com que o cineasta abdique de sua
habilidade para captar a ambiência das suas locações. Nunca podemos compreender
de todo o Paradise, mas no meio dos seus longos travellings (num trabalho
exemplar do fotógrafo Fabio Ciancetti), Go Go Tales nos apresenta o que ele tem
de fascinante, a aura que justifica que seu dono/apresentador Ray Ruby (William
Dafoe) seja de tal forma devotado a mantê-lo funcionando, a maneira como neste
lugar todos, do cozinheiro ao contador, alcançam uma função maior do que sua
ocupação a principio sugira.
Ao espaço
abstrato, Ferrara adiciona também uma noção de tempo igualmente artificial. Go
Go Tales é um desses filmes de tempo condensado em que o mundo todo cai sobre a
cabeça do protagonista em questão de horas: seu dinheiro acaba, suas strippers
(sem pagamento há dois dias) ameaçam entrar em greve, a dona do prédio resolve
exigir os 4 meses de aluguel atrasado e anunciar que tem uma ótima proposta de
uma loja de conveniências, seu irmão/financiador anuncia que vai cortar a
grana, e, para contrabalancear tudo isso, Ray monta um esquema para fraudar a
loteria, com sucesso, se ele ao menos conseguisse encontrar onde escondeu o
bilhete premiado. É uma concentração de trama tão ampla num espaço tão focado
que a William Dafoe só é permitido duas posturas ao longo do filme: a de
showman à frente do microfone e a da esquiva retraída no resto do tempo. Isto
tudo, somado a tendência do filme de misturar múltiplas sub-tramas não-ligadas
a Ray ao mesmo tempo, não só reforça a impressão de que estamos diante de um
organismo vivo se movendo em diversas direções, mas dá a ele uma temporalidade
própria, cria a impressão de que um filme de 4 horas foi editado para menos de
cem minutos sem que no processo uma única informação se perdesse.
O que, então,
torna Go Go Tales um filme que nunca soe abstrato, muito pelo contrário? A
crença de Abel Ferrara no corpo como matéria autêntica de expressão. Isto fica
registrado na maneira que ele capta cada movimento e gesto de seus atores (boa
parte da primeira metade do filme é entrega à dança das strippers), na entrega
do filme à improvisação, na maneira como o cozinheiro age com segurança
enquanto prepara seus cachorros-quentes ou que Asia Argento beija um rotweiller
no palco. Abel Ferrara escalou um grande número de veteranos no filme (Bob
Hoskins, Silvia Myles, Burt Young) e os coloca todos para improvisar livremente.
Quase tudo em Go Go Tales parece surgir na corrente do momento, com um olhar –
e ouvido – perfeito para captar genuinidade de expressão. Desde Olhos de
Serpente – seu último sobre criação artística – Ferrara não se dispunha de tal
maneira a trabalhar neste registro de caos, em que a linha entre autêntico e
artifício parece tão dissolvida. Go Go Tales é um filme-laboratório, que pode
nem ser sempre bem sucedido (o episódio com o marido da stripper é óbvio, por
exemplo), mas é na maior parte do tempo extremamente eficaz (qualquer plano com
Myles, ou Stefania Rocca vendendo seu roteiro no meio de uma performance), e
nunca menos que fascinante. Ao ponto que em nada surpreende quando o Paradise
se transforma no fim de noite em espaço privilegiado para que seus empregados
exibam seus outros dotes artísticos num show de talentos que prima pela tom
afetuoso e culmina com um inspiradíssimo Matthew Modine fazendo um número
criado pelo próprio cineasta.
Mas é mesmo
na figura de Dafoe que Go Go Tales encontra seu sentido. Ray Ruby é um artista,
um apostador e um quase prostituto no seu desejo de garantir que seu veiculo de
expressão siga funcionando, Cosmo Vittelli de A Morte do Bookmaker Chinês para
o nosso tempo. É também Abel Ferrara; e a simbiose/possessão que acomete Dafoe
é nunca menos que assustadora. Go Go Tales é um grande tratado sobre os
sacrifícios necessários para manter um organismo vivo funcionando, obra de um
cineasta expatriado (não é acidente que o temor do despejo mova boa parte da
trama), que durante mais de 80 minutos lança mão de cada recurso à sua
disposição pra louvar e apresentar o custo necessário para manter a sua
carruagem de ouro funcionando. Mas ao final Ferrara se cansa e, como Chaplin em
O Grande Ditador, resolve permitir ao seu alter-ego que fale diretamente para a
platéia e o que cineasta e o ator – a esta altura tornados um só – extraem
deste momento é nunca menos que emocionante e inventivo. Se Go Go Tales já não
se revelasse uma obra-prima até então, se tornaria uma naquele instante, naquele
instantâneo do artista como figura não-reconciliada reclamando seu espaço de
autenticidade, dedo em riste na vitória ou na derrota. Momento mais Abel
Ferrara jamais foi filmado.
(Texto original http://www.contracampo.com.br/89/festgogotales.htm)
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