segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

CINECLUBE DA CINEMATECA 3 ANOS: Seis contos morais de Eric Rohmer

Os Seis Contos Morais, joias do intimismo que percorrem os labirintos das relações amorosas, nos quais a premissa é basicamente a mesma: uma crença é colocada em questão a partir de uma dúvida – mais diretamente, um homem ama uma mulher, apaixona-se por outra, mas acaba retornando à primeira. A apreensão do prosaico, o rigor formal e os diálogos precisos também são comuns a todos os filmes da série – características presentes em toda a obra de Rohmer, sutil comentarista dos relacionamentos homem/mulher.

Obs: Todos os filmes têm a classificação indicativa 14 anos.


04/03: "A Padeira do Bairro" e "A Carreira de Suzanne"

(La Boulangère de Monceau, 1963/FRA – 23 min. Com: Barbet Schroeder, Claudine Soubrier, Michèle Girardon, Bertrand Tavernier)
Um jovem estudante (Barbet Schroeder) sente-se atraído por uma garota que vê todos os dias na rua, apesar de jamais ter falado com ela. Quando ele enfim toma coragem de se aproximar, a garota desaparece. Durante várias manhãs ele faz plantão no local, na esperança de vê-la novamente. Enquanto espera ele passa a frequentar uma padaria, onde acaba conhecendo uma jovem atendente.
 
(La Carrière de Suzanne, 1963/FRA - 54 min. Com: Catherine Sée, Philippe Beuzen, Christian Charrière , Diane Wilkinson)
Bertrand e Guillaume são universitários em Paris. Guillaume se aproveita de Suzanne, uma jovem inocente, o que faz com que Bertrand despreze ambos: ele por se aproveitar, ela por se deixar enganar. Bertrand começa a desconfiar que Suzanne está interessada nele, mas ele sente-se atraído por Sophie, que não lhe dá a menor atenção.

18/03: A Colecionadora

(La Collectionneuse, 1967/FRA - 86 min. Com: Patrick Bauchau, Haydée Politoff, Daniel Pommereulle, Alain Jouffroy, Mijanou Bardot, Annik Morice, Dennis Berry)
Adrien viaja para uma cidade à beira do Mediterrâneo, onde aluga uma casa. Está de férias e não quer fazer absolutamente nada. Ele divide a casa com seu amigo Daniel e Haydée, uma garota desconhecida que tem muitos amantes. Inicialmente, tanto Adrien quanto Daniel não dão atenção a Haydée, mas aos poucos Adrien sente-se atraído por ela.

25/03: Minha Noite com Ela

(Ma Nuit Chez Maud, 1969/FRA – 105 min. Com: Jean-Louis Trintignant, Françoise Fabian, Marie-Christine Barrault, Antoine Vitez)
O engenheiro Jean-Louis volta à cidade de Clermont depois de ter morado anos fora. Católico introvertido, ele acaba por nutrir uma paixão platônica pela loura Françoise, que ele encontra nas missas de domingo. Apesar de não desenvolver nem uma reles amizade com ela, acredita que a moça é sua parceira ideal. Um dia, durante um passeio, reencontra Vidal, um velho amigo marxista. Ele o apresenta à sua namorada Maud, uma divorciada inteligente e charmosa. Os três passam a noite no apartamento dela falando sobre filosofia e religião, principalmente sobre diferentes visões sobre a filosofia de Pascal, que nasceu na cidade em que eles vivem.

15/04: O Joelho de Claire

(Le Genou de Claire, 1970/FRA – 105 min. Com: Jean-Claude Brialy, Aurora Cornu, Béatrice Romand, Laurence de Monaghan, Michèle Montel)
Jerome (Jean-Claude Brialy) é um diplomata que passa suas últimas férias de solteiro às margens do lago Annecy. Lá ele reencontra Aurora (Aurora Cornu), uma escritora italiana que é sua amiga e que alugou um quarto na casa de uma senhora e suas duas filhas, Laura (Béatrice Romand) e Claire (Laurence de Monaghan). Logo Aurora o avisa que Laura está interessada nele, incentivando-o a ter um último namoro antes do casamento. 

22/04: Amor à Tarde

(L'amour l'après-midi, 1972/FRA – 97 min. Com: Bernard Verley, Zouzou, Françoise Verley, Daniel Ceccaldi, Malvina Penne, Elisabeth Ferrier, Tina Michelino)
Ele leva uma tranqüila vida burguesa: sócio de um pequeno escritório parisiense, se considera feliz no casamento com Hélène, uma professora com quem ele acaba de ter o segundo filho. Todas as tardes, no entanto, sonha com outras mulheres, ainda que sem qualquer intenção de passar do pensamento à ação. Certo dia, Chloé, ex-amante de um grande amigo, aparece no seu escritório. Ela passa a fazer visitas regulares, sempre como amiga. Até o dia em que parte para a sedução, provocando um dilema moral em Frederic, que acredita em amor eterno, mas se apaixona pela moça.

Serviço:
Sessões aos sábados
16 horas
Na Cinemateca de Curitiba
(Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174 - São Francisco)
(41) 3321 – 3552
ENTRADA FRANCA

Realização: Cinemateca de Curitiba e Coletivo Atalante

sábado, 25 de fevereiro de 2017

Paul Verhoeven: entre a carne e o sangue

De Carlos Natálio

A dada altura no documentário Paul Verhoeven – from Holland to Hollywood (1996), Rutger Hauer conta que, após De vierde man (O Quarto Homem, 1983), filme cheio de mensagens subliminares para agradar aos “deuses da crítica” e ao seu aparelhinho semiótico e psicanalítico, o realizador lhe confessou que não podia continuar a fazer estes filmes demasiado esotéricos e que queria coisas maiores, de acção ou ficção. «I don’t like this thinking shit!», disse ao actor, referindo-se aos filmes intelectuais que o comité de avaliação das subvenções estatais na Holanda passou a valorizar sobretudo a partir dos anos 80.
Até aqui na sua carreira os temas profundos tinha estado arredados. Isto mesmo se consideramos como excepção Soldaat van Oranje (O Soldado da Rainha, 1977), pelo facto da acção conspirativa durante uma Holanda ocupada (uma das imagens matrizes da sua infância) se encontrar paredes meias com o carácter mais sério de uma certa homenagem aos heróis da resistência da 2.ª Guerra Mundial. Até aqui Verhoeven tinha estado bem mais interessado em infantilizar os fetiches da sexualidade masculina em Wat zien ik (Negócios são Negócios, 1971), perante um universo feminino escada abaixo escada acima (literal e social), usando o sexo como instrumento de poder, entre a aliança de casado nos dedos (objectivo do par de prostitutas do referido filme) e a necessidade de fazer a manicure a outrém [símbolo do trambolhão na escada, nesse outro filme, Showgirls (Showgirls, 1996) de duas protagonistas que tentam subir os degraus que dão acesso ao palco da “glória” de Vegas, afastando-as, provisoriamente, do fedor das putas, exalado dos neons mais recônditos de uma cidade do glamour e do prazer.]       

Interessado ainda em capitalizar a frontalidade típica holandesa para o período de emancipação e libertação cultural e sexual vinda dos anos 60 numa relação que não podia separar o amor, o romance e o drama, do sexo, do vómito e da merda. Subversivo, dirão os espectadores que vão ver Turks Fruit (Delícias Turcas, 1973) aos magotes; realista, dirá Verhoeven, para sempre preso a este falso epíteto. Nem vale a pena continuar a detalhar a propensão pelo “baixo” em Verhoeven. No seu período holandês isso é uma evidência que não pode esquecer-se da sordidez do século XIX, na ascensão rags to riches em Keetje Tippel (Katie Tippel, 1975); do pénis como primeira arma de guerra, do amor entre enforcados, no período de transição entre a Idade Média e a Renascença, em Flesh+Blood (Amor e Sangue, 1985); ou ainda em Spetters (Viver Sem Amanhã, 1980), as competições, entre jovens holandeses, no motocross, na dimensão do respectivo “croquete” e na conquista de uma sexualidade real, sem gemidos falsos.     

Serve este voo picado, mais ou menos anárquico, por metade da obra de Verhoeven para salientar que a referida “thinking shit” de que se falava no início não podia estar mais arredada das ambições de alguém que aprende a fazer cinema durante o serviço militar na Marinha. Esse ritmo “militarista” rapidamente ultrapassou o mero desejo de chocar próprio da juventude e percebeu que o choque fazia parte da vida ela própria, vida esta vista como uma máquina de gerir confrontos e de receber e infligir, de forma eficiente, os golpes. Ainda no referido documentário, Verhoeven conta outro movimento importante que explica essa sua concepção material da realidade. Aos vinte e poucos anos decidiu afastar-se da religião cristã enquanto praticante pois percebeu que essa visão do mundo estava prestes a tomar conta da sua mente. Essa fuga “para baixo”, de abandono do idealismo, explica porque Verhoeven é muito mais um autor na tradição holandesa da pintura realista (seguindo os mundos bizarros e detalhados de Hieronymus Bosch ou Pieter Bruegel) do que do simbolismo fantasioso e surreal de Luis Buñuel ou Salvador Dalí.
Contudo, nunca o holandês abandonou o cristianismo, nem sequer a sua iconografia. Desta, são exemplos famosos, as citações bíblicas digeridas De vierde man (um filme que alia à culpa religiosa a culpa homossexual, redundando em pesadelos de castração masculina); os halos luminosos que habitam os planos em Spetters na cena em que Rien pensa poder recuperar o uso das pernas por acção de um milagre numa comunidade local; o enquadramento do santo “terreno”, o mercenário Martin (Rutger Hauer) em Flesh+Blood; ou ainda, claro, o novo Deus ex-machina RoboCop caminhando sobre as águas. Em todos os casos, é no contexto do corpo e do seu dilema que resurge a dimensão espiritual.   

RoboCop 
(RoboCop, o Polícia do Futuro, 1987), o primeiro filme feito além Atlântico, é dessa relação o mais emblemático. Foi apontado que o último plano de Flesh+Blood – no qual Rutger Hauer escapa pelos escombros de um castelo em chamas – mais do que significar a passagem de testemunho dos métodos medievais à iluminação racional da Renascença, simbolizaria uma fuga do próprio Verhoeven para outro mundo, no caso, os Estados Unidos. E tal como o polícia Alex Murphy tem de entrar no interior da máquina para sobreviver, o mesmo aconteceria com o holandês a partir daqui a trabalhar no interior da máquina hollywoodiana. Mas pode prolongar-se o paralelismo. Se o que seduziu Verhoeven em RoboCop (depois de devidamente aconselhado pela sua mulher) foi o facto de o futurismo do argumento espelhar o dilema de um homem que perde o corpo e a alma e ressuscita, também esse seria o seu dilema a partir daqui. Como espelhar uma alma cinematográfica num outro corpo, cujas variáveis, não controlava?    

Chegados aqui pode dizer-se que Verhoeven soube naturalmente como manipular, contrabandear, esse corpo hollywodiano: o excesso, a violência gráfica e o humor eram as pontes com o grande público, aquilo que precisava para fazer dos seus filmes sucessos de bilheteira. Depois de RoboCopTotal Recall (Desafio Total, 1990) e Basic Instinct (Instinto Fatal, 1992) fariam explodir tudo à sua volta. O “instinto básico” de Verhoeven parecia ter encontrado o seu terreno natural. Mas o desafio naturalmente que era outro. Era, invisivelmente, inverter as premissas. Como quando, em Flesh+Blood, Rutger Hauer descobre que não é ele que está a violar Jennifer Jason Leigh, mas o contrário (o melhor exemplo do poder negociador e manipulador das personagens femininas no sistema-Verhoeven, mulheres que são uma espécie de alter ego colectivo do realizador).        

Essa inversão, de encontrar na carne o espiritual, o sagrado no ordinário, mas também, a mensagem corrosiva na diversão, corresponde ao propósito de todos os filmes de Verhoeven. Ou melhor, corresponde ao processo de ressuscitação de um cineasta no corpo imaterial de um AUTOR. É isso que, como no passado aconteceu com realizadores como John Ford ou Raoul Walsh, hoje sucede com a carreira do holandês. Um processo moroso de revisão dos seus filmes, de compreensão conjunta do cinema como uma articulação heterogénea entre o alto e o baixo, de processamento do “pensamento” dos filmes como algo mais complexo do que o moralismo, a bandeira ou os grandes temas. É precisamente neste processo que se enquadra a presente retrospectiva que nos dá este ano o Festival 
IndieLisboa

E não deixa mesmo de ser revelador que hoje, dois dos seus flops nos Estados Unidos, Showgirls Starship Troopers (Soldados do Universo, 1997), sejam elevados às obras-primas máximas de Verhoeven. Este movimento ascensional do lixo ao luxo, só vem comprovar a “destreza” do movimento de recuperação autoral que procura vasculhar o subtexto no texto. No primeiro caso, o diagnóstico interno da sociedade americana, a partir do microcosmos de Vegas, espécie de 
“sanita forrada o ouro”, onde toda a gente usa toda a gente e onde a corrupção, o sexo e a competição são pedras de toque de uma máquina eficiente. Sátira ou realismo, tudo depende de que lado se olha. No caso de Starship Troppers o movimento é inverso: é a política externa americana que se mostra (o filme foi feito durante a guerra do Iraque) em todo o seu esplendor bélico, recuperando a imagética de Leni Riefenstahl e dos soldados nazi das SS, para um mundo americanizado e higiénico de barbies e kens, onde o futuro do neo-liberalismo é levado ao extremo da galáxia.    

Quer num caso quer no outro, creio que o movimento de recuperação autoral se deixa apenas deslumbrar pela mensagem. Uma boa imagem é esta: quando Verhoeven decide aumentar o tamanho dos insectos (como um Outro sem rosto nos quais nos espelharemos no futuro) ele acaba por reduzir a humanidade, por relação, à condição de insectos. Desta forma, assistir a  Starship Troopers é um pouco como ver um duelo entre lógicas diferentes de organização e combate de dois tipos de insectos. Aí, o realizador surge como “entomologista de uma espécie”, neste caso, a norte-americana. É esse o risco, creio, de pegar em filmes que têm sobretudo uma metáfora de qualquer coisa, secando tudo o resto à volta. Embora parta do mesmo impulso crítico da sociedade de consumo capitalista, do excesso de uso de armas, do poder destrutivo da publicidade e dos media, RoboCop joga muito melhor o jogo entre a mensagem e o drama, o soft inside do humano de Murphy (que ainda é alimentado a comida de bébé) e o hard da carapaça maquínica. Isto é, entre a história e a História, num espelho feito para distorcer as imagens para ambos os lados. (Isto pressupondo que um autor não é, de facto, apenas um cineasta que usa o ordinário para dar a ver o extraordinário, mas alguém que faz da própria natureza do comum uma matéria de trabalho complexa).       

Mas insistindo na imagem dos insectos talvez se possa remover uma certa injustiça em relação a Starship Troppers. É certo que as suas personagens são débeis de um ponto de vista interior e se juntam ao seu par amoroso menos por amor ou desejo e mais por uma inapelável feromona qualquer. Neste sentido é o paradoxo: como se o processo de descrição realista das máquinas sociais (e nela dos seus indivíduos, que para sobreviver na sociedade usam o seu corpo como uma carapaça e arma bélicas) atingisse um tal grau de depuração que fosse necessário remover o interior das pessoas, filmando só o contorno. O fascismo da guerra e a higiene política, na total eficiência, não teriam então como ser coerentes se habitassem um filme com personagens que “prendessem” o espectador, com cenas de acção que progredissem segundo uma lógica aristotélica. Afinal a descoberta da suposta inteligência no inimigo redunda meramente num instinto básico: o medo. Depois, ao corpo formatado como boneco, ou como «fresh meat for the grinder», só lhe resta desaparecer, invisibilizar-se.          

Hollow Man
 (O Homem Transparente, 2000) culmina o trio de flops nos Estados Unidos e fecha também um lento processo de evicção do corpo que havia começado com a destruição biológica do polícia Murphy. Mas se aqui o bug do biológico (pelas memórias de um passado, pela consciência moral de ter de prender o seu criador) esperneia ante este procedimento de maquinização, também Kevin Bacon sente que o seu problema não é tanto o de perda de um corpo, mas de um sentimento interior de vazio (neste sentido, a tradução portuguesa perdeu a oportunidade de traduzir o hollow do título por uma palavra que transmitisse mais essa dimensão oca). Também Total Recall e Basic Instinct são isto. Arnold Schwarzenegger instala-se com o seu pesado corpo num mundo que lhe retira a certeza da sua fisicalidade, tendo de caçar memórias, que, Verhoeven mantém até à última, como a possibilidade de provirem de um corpo real ou de serem meros produtos de uma máquina de sonhos. Método de Hollywood? Bien sûr. Ou o mesmo com Sharon Stone que, sendo «the fuck of the century» e usando o corpo como método de escrita, pode ter-se deixado abalar pela sua própria máquina. É o «mind fucking» do espectador, mas também do amor como possível bug no sistema eficiente e utilitarista do uso dos corpos em Verhoeven.    

E o que terá mudado nessa viagem da Holanda para Hollywood? Pode-se ilustrar essa mudança com uma peripécia. Um dos actores favoritos de Verhoeven, Jeroen Krabbé, conta como, em De vierde man, se negou a tirar as cuecas para fazer uma cena em que se masturbava, observando pela fechadura de uma porta, Renée Soutendijk a ter relações com outro homem. Apesar de Verhoeven ter tirado as próprias cuecas no set para mostrar como se faz ao actor, este levou a sua adiante. Nove anos depois, virada do avesso a história do escritor envolvido num triângulo amoroso, Verhoeven mantém a ideia. Sem cuecas, Sharon Stone, “viola” o olhar de Michael Douglas e demais voyeurs (como em Flesh+Blood na já referida cena de violação, ou como quando Christine, perfura, indirectamente, o olho da sua quarta vítima em De vierde man) na célebre cena do descruzar de pernas de Basic Instinct. Isto é, na Holanda o frenesim da aproximação à realidade só encontrava o obstáculo casual de cada actor e nunca do sistema; nos Estados Unidos, o realizador precisou de trabalhar a sugestão e o flash, pois sabemos que no quintal do vizinho as coisas parecem giras e audaciosas, mas no nosso convém ter mais calma.   

O dilema na Holanda nunca foi então carnal e as pilas era medidas, cortadas, entaladas, chupadas, fritas como croquetes, num sistema de mulheres guerreiras e negociadores que de puta a senhora jogavam o jogo da sociedade. Flesh+Blood, primeiro filme com dinheiros americanos e filmado em Espanha, é extremamente revelador dessa mudança de modus operandi. Filme de transição entre idades históricas, mas também de carreira para Verhoeven, ele ilustra bem o que mudou. Já vimos que nos Estados Unidos, se problematizou sobretudo o desaparecimento do corpo e da carne (um problema que arranca com o pudor da sensibilidade moderna e avança com a tecnologização da sociedade e sua dessensibilização) à custa da revelação, mais ou menos paródica e excessiva, do sangue do sistema neo-liberal, que põe tudo a circular. O sangue esguicha de todas as cores em Starship, os corpos vão já sendo perfurados e desfeitos pela força da bala ou da ideologia. Inclusive os corpos batem uns nos outros, em Vegas, em guerras estelares ou em quartos luxuosos de hotel, ao ponto do zénite em que desaparecem totalmente e se “manequizam”, finalmente já dispostos na perfeição dos corpos recauchetados, sem consciência ou dilema.

Já na Idade Média era diferente e a carne mostrava-se, pois o que valia era o sangue. O mesmo pode dizer-se dos corpos despidos e usados nos filmes holandeses de Verhoeven. O segredo sempre foi atingir a invisibilidade do sangue, como seiva vital de compreensão de como funcionava a sociedade. Não é inocente que a travessia verídica de Keetje Tippel – da fome e pobreza a uma certa ascensão social – culmine com ela a chupar o sangue da burguesia, na última cena do filme. Ou mesmo que Spetters, o filme sobre a juventude holandesa, tenha provocado reacções extremas nas comunidades feministas, homossexuais ou de defesa dos direitos dos deficientes. E fê-lo, não porque Verhoeven tenha mostrado a carne desnuda e atrevida, mas porque a usou para atingir o “sangue” da comunidade, e revelar como este continha na sua genética, na fabricação dos seus consensos, uma atitude imoralmente competitiva e discriminatória.
Ainda em Flesh+Blood é o sangue do cão contaminado pela peste o que conspurca a água e o que vai eliminar os resquícios do corpo exposto dos mercenários da Idade Média (vestidos de vermelho, em comunidade, como uma última réstia de utopia comunista antes de avançar para a América). Essa eliminação pelo sangue não é fruto de um castigo moral. O filme mostra que não há heróis e vilões, princesas e monstros. Há apenas um girar constante dos elementos em jogo (movimento que Verhoeven sempre capitalizou em quase todos os seus filmes como dramático), em que cada pessoa, com as suas motivações egoístas, tentará sobreviver. Movimento sem fim à vista como no plano da nova guerra com que termina Zwartboek (Livro Negro, 2006). Esse movimento “adapt or die”, Verhoeven viveu-o: do protestantismo liberal europeu ao conservadorismo puritano americano foi mudando, tal como Jennifer Jason Leigh, de amor. Isto sem nunca descurar o ataque ao sangue do sistema em que trabalha.           

Terminemos agora como começámos, com a “thinking shit” que perturba Verhoeven. Ela é de facto uma excrescência face a uma pureza do detalhe, da frontalidade no cinema do holandês. É a diferença entre o sangue revelador e o sangue como símbolo. Como os Bloody Marys, as rosas ou as carcaças de vaca penduradas a pingar em De vierde man. Este vermelho sangue, longe de mostrar o âmago do que filma, é uma porta de entrada simbólica nessa teia de aranha surreal que Verhoeven armou aos críticos da altura. Por exemplo, a literalização do soutien como arma de asfixia tem um alcance muito mais limitado (no sentido dessa revelação) do que as mesmas armas de Nomi Malone ou do par de prostitutas em Wat zien ik. Ou a chave pistola na visão do escritor, no mesmo filme, uma menor eficácia face ao picador de gelo da escritora em Basic Instinct.       

Em suma, a “merda do pensamento” num autor como Verhoeven revela-se antes no movimento militarista da vida a acontecer ou na eminência da explosão. Por isso, a frase da cabeça da matrona explosiva em Total Recall – 
«get ready for a surprise» – talvez seja o moto que hoje melhor define a filosofia do realizador. Preparemo-nos então, a partir de hoje, para celebrar essa surpresa no IndieLisboa, através da redescoberta da “profundidade da superfície” no cinema do herói independente deste ano, Paul Verhoeven.

O texto foi publicado originalmente em http://www.apaladewalsh.com/

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Cineclube da Cinemateca: "Tropas Estelares" de Paul Verhoeven

Neste sábado, dia 25, às 16h, o Cineclube da Cinemateca apresenta "Tropas Estelares", filme que encerra o ciclo Paul Verhoeven. Em março, comemoraremos 3 anos de Cineclube da Cinemateca com a exibição dos Seis contos morais de Eric Rohmer. Sempre com entrada franca!

Cineclube da Cinemateca apresenta:
"Tropas Estelares" de Paul Verhoeven
Em uma época futura um jovem (Casper Van Dien), após graduar-se, quer se alistar nas forças armadas para tornar-se um "cidadão" e deixar de ser um mero civil. Também faz isto por causa da namorada (Denise Richards), por quem é apaixonado. Um amigo (Jake Busey) em comum do casal se alista e é designado para servir na parte de planejamento estratégico. Ela é encaminhada para pilotar naves de combate, mas ele vai servir na infantaria, que é um posto menos prestigiado. Porém, ele demostra tal afinco nos treinamentos que se torna líder de um pelotão, mas por causa de um erro seu um colega morre em uma simulação de batalha. Quando ele pede dispensa, pois sua namorada está envolvida com seu instrutor, descobre que sua cidade natal, Buenos Aires, não existe mais em virtude de um ataque de insetos alienígenas do planeta Klendathu. Assim, ele volta atrás na sua decisão e vai fazer parte da grande ofensiva terrestre contra estes insetos (que são gigantescos e às vezes medem 30 metros) no planeta deles. Mas o alto comando terrestre subestima demais a capacidade de reação dos inimigos e em poucas horas morrem mais de 300 mil terrestres na ofensiva. Fica claro então que esta guerra vai decretar o fim de uma espécie e está claro que um inseto inteligente comanda as ações, que pretendem exterminar com a raça humana.

Serviço:
25 de fevereiro (sábado)
Às 16h
Na Cinemateca de Curitiba
(Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174 - São Francisco)
(41) 3321 – 3552
ENTRADA FRANCA
Realização: Cinemateca de Curitiba e Coletivo Atalante

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

NeRO: Romance contemporâneo norte-americano e brasileiro



Convidamos você para participar do NeRO, evento promovido pela UFPR e aberto ao público acadêmico e não-acadêmico. O NeRO consiste em encontros onde conversamos sobre a leitura de obras literárias previamente selecionadas. Tendo à sua frente mediadores que são professores de literatura da UFPR, estes encontros acabam sendo uma boa oportunidade para trocarmos e movimentarmos ideias em torno da literatura. Os mediadores do encontro são: Caetano Galindo, Luís Bueno e Pedro Dolabela Chagas. Para participar, basta comparecer aos encontros. Você pode ter lido a obra que indicamos ou não, a leitura não é obrigatória. Para esse primeiro semestre de 2017, selecionamos quatro romances contemporâneos, da literatura norte-americana e brasileira. Nosso intuito é propiciar um ambiente de diálogo onde, em meio a um bate-papo, refletiremos sobre as características dessa literatura e sobre as nossas impressões de leitura. Para maiores informações, veja nosso cartaz abaixo e visite nossa página no facebook.

sábado, 18 de fevereiro de 2017

Excerto de “Vertigo, a teoria artística de Alfred Hitchcock e seus desdobramentos no cinema moderno” (Segunda parte)


Por Luiz Carlos Oliveira Jr.       

5. O orgasmo feminino    


Um aspecto crucial do filme é a maneira como ele transforma o suspense psicológico e de acento metafísico de Hitchcock num thriller composto basicamente de sensações corporais, que solicitam os sentidos de forma mais “primitiva”. Enquanto as perseguições de Scottie a Madeleine criavam uma sideração, uma lenta experiência da duração e do olhar, a cena de perseguição de Instinto selvagem é pura adrenalina: Catherine sai ultrapassando todo mundo em seu veloz carro esporte e Nick tenta manter-se na sua cola, até que, numa das ultrapassagens perigosas, ele quase bate de frente com um caminhão.   

Se, em Vertigo, a conexão entre Scottie e Madeleine se exprimia por uma relação transcendente que evocava o conhecimento platônico da Ideia, em Instinto selvagem, ao contrário, a ligação entre Nick e Catherine se pauta numa relação imediata, num magnetismo de corpos e mentes conectados por ferormônios e forças químicas de atração. Por conseguinte, a identificação do espectador com as personagens não se dá mais por nuanças psicológicas, mas por emoções fortes ligadas à carne e aos sentidos primários, às pulsões de sexo e de violência, aos baixos instintos.
Não por acaso, as cenas de sexo, que inexistiam em Vertigo (pois Hitchcock mantinha nas elipses os momentos em que, como se pode presumir, Scottie e Madeleine fazem sexo), têm uma importância capital em Instinto selvagem (e não me refiro somente à bilheteria alcançada pelo filme). Ao mesmo tempo em que representa o ato sexual em toda sua transpiração e corporeidade, Verhoeven desloca o polo do prazer para o lado feminino, fazendo da representação do orgasmo da mulher o momento culminante e privilegiado das cenas (com exceção da transa afobada de Nick com Beth, em que ele descarrega com brutalidade – beirando o estupro – as tensões libidinais acumuladas ao longo do dia). Embora as cenas de sexo do filme correspondam a uma técnica de prazer essencialmente masculina, seguindo o “modelo hidráulico do orgasmo como tensão crescente que desemboca num alívio explosivo”124, há de se reconhecer que o clímax da grande transa do filme (ou seja, a primeira transa entre Nick e Catherine) é a ação da mulher – posicionada por cima do homem – numa escalada de prazer que termina de forma apoteótica, fazendo jus ao restante da performance espetacular do casal.          

Em seu filme seguinte, Showgirls (1995), a obra-prima mais maldita dos anos 1990 (e talvez o mais belo suicídio artístico da história recente de Hollywood125), Verhoeven filmaria uma outra cena de orgasmo feminino em chave ainda mais hiperbólica. Trata-se da cena em que Nomi (Elizabeth Berkley), que foi para Las Vegas tentar carreira como dançarina, transa com o dono de uma rica casa de shows na piscina da mansão em que ele mora. A piscina é rodeada de palmeiras de néon e possui uma queda d’água artificial: estamos no paraíso do simulacro e da cafonice. Quando Nomi chega ao orgasmo, ela pende o tronco e a cabeça para trás e balança o corpo freneticamente, com a água da cachoeira artificial caindo sobre ela. É um espetáculo no limite do exagero e do atletismo sexual. Já não se trata de sexo, mas de “hipersexo”.126 Nomi repete com o parceiro os mesmos movimentos que já havia executado numa cena anterior, quando fizera uma lap dance para ele. O sexo verdadeiro e o sexo simulado, portanto, se equivalem. Ela fingiu prazer nas duas ocasiões?127 Ou gozou de verdade tanto durante a performance na boate de strip-tease quanto na cena íntima na piscina? Ou não faz sentido diferenciar uma situação da outra, já que, no coração da sociedade do espetáculo, a vida é uma performance permanente e não há fronteira entre o real e sua simulação?        
O fato é que, tanto na cena do orgasmo de Catherine em Instinto selvagem como nesta do orgasmo de Nomi em Showgirls, Verhoeven enfatiza, reforça, sublinha essa cena recalcada pela sociedade patriarcal e, por extensão, pelo cinema hollywoodiano clássico: o gozo feminino, o grande outro de um modelo sexual androcêntrico. O diretor conscientemente promove uma perda da aura, uma quebra do encanto da antiga star feminina, para que possa emergir toda uma potência corporal que, anestesiada pelo código performativo da Hollywood clássica, retorna agora nas explosões somáticas de Catherine e, principalmente, de Nomi. Não que as mulheres da Antiga Hollywood estivessem desprovidas de erotismo, muito pelo contrário: isso era uma das exigências do espetáculo, e foram muitas as estrelas que – não raro contrastando com outra atriz que representasse a imagem da mulher comportada, sem sal ou até mesmo frígida – praticamente impuseram aos filmes uma carga erótica inescapável, como foi o caso de Marlene Dietrich, Rita Hayworth, Cyd Charisse, Kim Novak, Gloria Grahame e, naturalmente, Marylin Monroe. Além disso, não podemos negligenciar que a era clássica já continha também uma crítica interna do patriarcalismo puritano que ditava suas normas. Os melodramas de Douglas Sirk, alguns filmes de Fritz Lang (Os corruptos [The Big Heat, 1953], Só a mulher peca [Clash by Night, 1952]) e de Vincente Minnelli (Paixões sem freios [The Cobweb, 1955], Deus sabe quanto amei [Some came running, 1958]), para não falar dos próprios filmes de Hitchcock, são só alguns dos exemplos de obras que exprimiam uma clara consciência crítica a respeito da submissão da mulher, no modelo patriarcal, a uma idealização, a uma imagem preconcebida pelo homem, e que a sufocava.           
Mas, no fim das contas, essa imagem sobrevivia aos filmes, e a estrela feminina permanecia envolta numa redoma de cristal. A diferença, em Verhoeven, está justamente aí: suas heroínas destroem os moldes de maneira irreversível. Elas impõem no centro da imagem não apenas seus magníficos corpos, mas, sobretudo, os fluidos e desejos carnais que eles implicam, e que não podem ser sublimados numa relação amorosa idealizada. É sexo o que elas querem, e não o ideal romântico nutrido pelo passado de Hollywood, aquele ideal que enterrava o prazer sexual feminino sob a imagem de uma vida matrimonial tão honrada quanto insossa.     

123 Ibid.
124 L. Williams, Screening Sex: Une histoire de la sexualité sur les écrans américains, Paris: Capricci, 2014, p.
119.
125 Depois do extraordinário sucesso de Instinto selvagem, Verhoeven tinha carta branca de todos os estúdios
para fazer o que quisesse. Optou por fazer um virulento retrato da América contemporânea e uma demolição
impiedosa dos mitos que o cinema hollywoodiano ajudara a construir. O resultado, em termos de bilheteria e de
repercussão na imprensa especializada, foi um fracasso retumbante.
126 J.-F. Rauger, “La mise en scène de l’acte sexuel: focalisation/fuckalization”, art. cit., p. 277.
127 Afinal, como Meg Ryan demonstrou muito bem numa cena clássica de Harry & Sally – Feitos um para o
outro (When Harry met Sally, Rob Reiner, 1989), “as mulheres podem simular os orgasmos mais espetaculares”
sem que os homens percebam que se trata de fingimento (cf. L. Williams, Screening Sexop. cit., p. 91).      

Disponível em http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27161/tde-29062015-123125/pt-br.php  

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Cineclube da Cinemateca: "Showgirls" de Paul Verhoeven

Neste sábado, dia 18, às 16h, o Cineclube da Cinemateca apresenta "Showgirls", dando continuidade ao ciclo Paul Verhoeven. O ciclo contará ainda com "Tropas Estelares" (25/02). Sempre com entrada franca!

Cineclube da Cinemateca apresenta:
"Showgirls" de Paul Verhoeven

Uma jovem mulher, decidida a fugir de seu tumultuado passado, vai para Las Vegas com o objetivo de tornar-se dançarina, mas logo tem toda a sua bagagem roubada. No entanto, faz amizade com uma costureira, que trabalha no showbiz, e as duas passam a dividir um modesto local. Para sobreviver, começa a trabalhar como stripper em uma casa noturna de reputação duvidosa e, em virtude do seu belo rosto e de um corpo escultural, também atrai clientes, que desejam fazer com ela a "dança do colo", na qual ela pode fazer tudo com um homem mas ele não pode tocá-la. Com o tempo, ela passa a ser corista no show de um grande cassino, mas surge uma rivalidade indisfarçável entre ela e a estrela do show. Até que, quando ela começa a se envolver com o responsável pelos espetáculos, fica claro que o cassino é pequeno demais para ela e sua rival.

Serviço:
18 de fevereiro (sábado)
Às 16h
Na Cinemateca de Curitiba
(Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174 - São Francisco)
(41) 3321 – 3552
ENTRADA FRANCA
Realização: Cinemateca de Curitiba e Coletivo Atalante

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Excerto de “Vertigo, a teoria artística de Alfred Hitchcock e seus desdobramentos no cinema moderno”


Por Luiz Carlos Oliveira Jr.

5. O orgasmo feminino      
   

            Nos anos 1980, como acabamos de ver, o debate em torno da representação da violência contra a mulher no cinema hollywoodiano esteve em alta, movimentado pela emergência de uma grande quantidade de pesquisadoras e críticas feministas oriundas dos círculos universitários norte-americanos. Em razão dos controversos thrillers hitchcockianos que então rodou (Vestida para matar Dublê de corpo), Brian De Palma esteve em muitos momentos no centro da polêmica, que seria reaquecida no início da década seguinte por conta de uma proliferação de filmes que adaptavam para o contexto da América pós-feminista dos anos 1990 a figura da femme fatale egressa do cinema noir clássico. “Catalisado pelo sucesso de Atração fatal [Fatal Attraction, Adrian Lyne, 1989], notório manifesto antifeminista”, nas palavras de Julianne Pidduck, esse ciclo de filmes floresceu e encadeou uma série de narrativas que “transformam em estereótipos negativos mulheres que têm uma personalidade muito forte e uma sexualidade sem complexo”.111De Mulher solteira procura (Single White Female, Barbet Schroeder) a Relação indecente (Poison Ivy, Katt Shea Ruben), passando por A mão que balança o berço (The Hand that Rocks the Craddle, Curtis Hanson) e Desejos (Final Analysis, Phil Joanou112), o ano de 1992 foi particularmente marcado por filmes em que a mulher de comportamento liberal e independente era retratada como neurótica, psicopata, deprimida, perigosa ou tudo somado. Segundo Pidduck, esses filmes “têm uma função ideológica claramente definida”: proteger o núcleo familiar tradicional do perigo representado pela ascensão da mulher liberal e independente, desligada do casamento e da maternidade, e por isso punida em narrativas cujos desfechos a encaminham para a quarentena ou a morte.113 Essa guinada reacionária estaria inserida num quadro histórico marcado pelo forte incômodo de uma parcela mais conservadora dos homens – a qual retornara em grande número na paisagem política dos anos 1980 – diante das conquistas feministas que vieram com as revoluções sexuais e comportamentais iniciadas no final da década de 1960. “No film noir tradicional, a femme fatale é frequentemente associada a um mal-estar profundo suscitado pela confusão de papeis entre o homem e a mulher numa sociedade em época de guerra ou de pós-guerra”.114No neo-noir dos anos 1990, a “ameaça” que pesa sobre os homens já é outra, e diz respeito à emancipação da mulher na sociedade
contemporânea.
            Dentre os filmes que compuseram esse ciclo de neo-noir do começo dos anos 1990, o mais ambíguo, complexo e interessante, sem sombra de dúvida, é Instinto selvagem (Basic instinct, 1992), de Paul Verhoeven, cuja matriz indisfarçada é Vertigo, como comprova a intriga ambientada em São Francisco e centrada nas perseguições de um detetive a uma loira pela qual está obcecado (este é, todavia, apenas o traço geral de um diálogo estético que vai bem além do mero remake de roteiro). O filme começa com uma cena de sexo. A princípio, trata-se de uma cena de sexo como outra qualquer, talvez um pouco mais ousada que de costume, mas ainda assim uma encenação do ato sexual enquadrada dentro dos parâmetros “realistas” que o cinema mainstream já aprendera a assimilar desde os anos 1970. O bônus só virá depois, com o clímax da relação sexual e a irrupção da violência. No momento em que isso ocorre, a mulher está posicionada sobre o homem, e este se acha com as mãos atadas à cabeceira da cama. O controle da situação, portanto, é dela. A cena segue um crescendo de tensão erótica, tendo como ápice o orgasmo da mulher. É então que, em meio às convulsões de prazer, ela pega um picador de gelo debaixo das cobertas e começa a atacar o amante. Os movimentos das estocadas se somam aos espasmos orgásticos, ao passo que os gemidos de prazer se trocam por gritos de dor e urros raivosos. Ao lado da mesa de cabeceira, a estatueta de um dragão estilizado faz eco à violência flamejante da loira assassina.


            
            Esta cena de abertura de Instinto selvagem dispõe de uma combinação de erotismo e violência gráfica ainda mais exclamativa que a dos filmes de Brian De Palma. A diferença é que, desta vez, a vítima é um homem, e a assassina é uma mulher cujo rosto não aparece, pois permanece ora tapado pelo cabelo, ora fora de quadro, gerando uma indeterminação quanto à sua identidade, algo que será essencial para a manutenção do clima de suspense e ficará sem esclarecimento mesmo após o final.
            A principal suspeita do crime será a namorada do homem assassinado, Catherine Trammel (Sharon Stone), uma mulher de charme, beleza e frieza notáveis. Formada em psicologia, escritora de romances policiais, bissexual, viúva de um lutador de boxe, Catherine é uma loira rica, intrigante e – novidade em relação às femmes fatales que vieram antes dela – intelectual. Nick Curran (Michael Douglas), o detetive encarregado de investigar o assassinato, se envolverá com ela, dando início a um relacionamento perigoso e imprevisível.
No decorrer da investigação, Nick descobre que o modus operandi do crime havia sido descrito, anos antes, num dos best-sellers de Trammel, o que serve tanto para incriminá-la como para absolvê-la, já que ela pode usar – e, de fato, acaba usando – o livro como álibi (“Vocês acham que eu seria estúpida o suficiente para matar um homem exatamente da forma como havia descrito no meu livro?”, ela pergunta aos policiais durante um interrogatório). O filme possui uma trama assaz complicada e sinuosa, que não cabe aqui esmiuçar. Concentremo-nos apenas nos aspectos que participam de maneira mais direta da forma como Verhoeven responde às eternas questões colocadas por Vertigo. Começando pela cena em que ele desmembra o plano-espelho de Vertigo num campo-contracampo entre o olhar de Nick e o espetáculo a ele oferecido por Catherine, que troca de roupa no closet de sua casa de praia:

            A decupagem da cena obedece à estrutura convencional do plano-ponto-de-vista: há um plano do olhar de Nick e o plano seguinte mostra o que ele está olhando (no caso, Catherine nua). Com isso, o enquadramento do plano-espelho exclui a figura do detetive, que foi deslocada para outro plano. O que se tem agora é uma imagem duplicada da femme fatale, com a devida inversão que é própria da imagem especular, anunciando que “Instinto selvagem será um filme sobre a reversibilidade dos signos, a confusão e a reflexividade”.115 Essa duplicação/inversão da imagem da femme fatalecondena à especulação infinita a investigação de Nick, a qual entra em curto-circuito com o romance que Catherine está escrevendo, e do qual ele participa como fonte de inspiração para uma personagem. Usando Nick como objeto de pesquisa para seu próximo livro, e fazendo da realidade um mero reflexo do que já consta em seus romances, é como se Catherine se apoderasse da própria intriga do filme.
            O campo-contracampo da cena do closet separa, por um lado, mas unifica, por outro, os espaços visuais ocupados por Nick e Catherine. Verhoeven aí formula não só o espelhamento que se criará entre as duas personagens como também a oposição que o filme promoverá entre o mundo previamente organizado e hierarquizado da enquete policial, personificado pelo cartesianismo tatibitate do detetive, e o universo sem amarras da criação literária, encarnado pela inteligência provocativa da escritora.
            A primeira imagem de Instinto selvagem já havia figurado a quebra da unidade do ponto de vista masculino sobre a mulher: na superfície fragmentada de um prisma (espécie de espelho cubista), refletira-se a imagem difusa de um corpo feminino decomposto em diferentes ângulos. Verhoeven apresentara seu filme, assim, como “um Vertigo que teria trocado o motivo da espiral pelo do cubismo”.116 De fato, um retrato feminino pintado por Pablo Picasso apareceria mais tarde exposto numa das paredes da casa de Catherine, como a indicar de onde saiu o conceito visual do filme.
            A lógica de desnudamento do plano-espelho de Vertigo, já mencionada na análise de Dublê de corpo, atinge aqui a literalidade. Se o plano de Hitchcock era um dispositivo erótico disfarçado, o de Verhoeven o é de forma assumida. EmVertigo, a nudez de Madeleine era objeto de elipse: depois de ser salva do afagamento, ela já aparece na casa de Scottie vestida com um robe emprestado por ele; um plano da área de serviço mostra as peças da roupa que ela antes usava secando no varal, verdadeira imagem de substituição para o corpo nu de Kim Novak. Já em Instinto selvagem, o corpo nu de Sharon Stone é entregue de forma direta, sem recurso alusivo – é um a priori do filme.
            Truffaut, assim como Godard, havia observado que Madeleine não usava sutiã. Ora, Catherine, como a cena do closet demonstra, não usa sutiã nem calcinha. Para ir à delegacia prestar depoimento, ela simplesmente veste um tubinho branco, sem nenhuma roupa de baixo, dando ensejo ao plano mais famoso do filme, aquela inesquecível descruzada de pernas de Catherine durante a cena antológica do seu interrogatório. Por um breve momento, o sexo da escritora fica à mostra, deixando os policiais boquiabertos e desconcertados. A nudez de Madeleine em Vertigo permanecia na esfera da fantasia, do desejo irrealizado, do fantasma; a de Catherine em Instinto selvagem faz parte da realidade frontal e corpórea filmada por Verhoeven. A personagem de Sharon Stone não tem nada a esconder, e aí reside sua grande opacidade. Submetida ao detector de mentiras, ela se safa. Mas, num diálogo com Nick, ela diz que a máquina pode ser enganada. Tudo nela está exposto, tudo dela está à mostra – e, no entanto, tudo permanece indecifrável; a hipervisibilidade funciona como um novo tipo de máscara. A melhor forma de se esconder, para Catherine, é se mostrar. O véu, a aura fantasmática que cobria a femme fatale clássica desapareceu, mas deixou em seu lugar um corpo tão em evidência que já não se sabe mais o que ele é. “Classicamente, a femme fatale se define como uma personagem de duas faces. Um polo angelical se opõe ao polo demoníaco e manipulador, um se apagando ao longo da ficção para deixar que o outro apareça. Figura da duplicidade, a femme fatale só revela seu ser profundo por um processo gradual”.117 Em Instinto selvagem, porém, os dois lados permanecem indiscerníveis: “Catherine multiplica os elementos que desfazem a unidade”.118 Esfinge moderna, ela desafia o entendimento dos homens, faz deles meros peões tontos no seu tabuleiro de xadrez. Impossível encurralá-la e forçá-la a confessar sua verdade, como se fazia com a femme fatale no film noir clássico. Aqui, Catherine se mantém inabalável como enigma.
            A impossibilidade de determinar a identidade da assassina coloca Nick em estado de paranoia. E isso perdura até os instantes finais. No último plano do filme, a câmera realiza um tilt para baixo da cama em que Nick e Catherine estão juntos, focalizando um picador de gelo em plano-detalhe, signo do possível destino que aguarda o herói. “Até as suas últimas imagens, Instinto selvagem sublinha a vulnerabilidade física e sexual e a autoridade moral declinante do protagonista masculino”.119 Ciente do seu poder sexual e ligada a outras mulheres por laços afetivos enigmáticos, Catherine tem todos os ingredientes para provocar paranoia e ansiedade nos homens. Suas melhores amigas são mulheres que já assassinaram maridos, amantes, irmãos etc. É nesse universo povoado por loiras atraentes, sexualmente ambíguas e predadoras de homens que o filme se instala.
         Uma vez que as personagens femininas de Instinto selvagem, todas elas lésbicas, bissexuais ou pelo menos já tendo experimentado relações com outras mulheres (como é o caso de Beth, a psicóloga e amante ocasional de Nick), são retratadas como homicidas em potencial, o filme não passou em branco para a comunidade gay, que protestou contra ele na época de sua estreia nos cinemas. As feministas também ergueram a voz, mas nem sempre para condená-lo. A fascinação de J. Pidduck com Instinto selvagem, apesar de todas as suas reservas, é um exemplo perfeito do tipo de reação ambivalente que o filme provocou. A crítica reconhece que, embora se trate de “uma obra infinitamente misógina”, há momentos em que “as questões de gênero e de poder são colocadas de modo bastante produtivo [...], oferecendo uma crítica bastante irônica e até mesmo involuntária dos valores familiares, das relações entre sexos e da autoridade masculina”.120 Pidduck segue aí uma vertente importante dos estudos feministas de cinema que, em vez de buscar num gênero como o film noir apenas a cristalização das estruturas opressivas do patriarcado, procura destacar também o potencial liberador de heroínas que não estão encerradas no quadro familiar, chamando a atenção para “o fato de que os excessos narrativos e estilísticos do gênero podem ser vistos como a expressão de contradições no coração da ideologia patriarcal que os filmes são incapazes de resolver, apresentando assim uma autocrítica involuntária de seu próprio projeto ideológico”.121 A reciclagem da figura da femme fatale na cultura popular dos anos 1990, como Pidduck percebe, não deixa de expressar um profundo abalo no inconsciente coletivo provocado pela revolução feminista. “Ainda que ela não revele nada de real no que concerne a experiência de base da mulher norte-americana, a impossível figura da mulher violenta veicula uma carga afetiva e fantástica, um excesso discursivo que pode ser, no fim das contas, bastante estimulante para o discurso feminista”.122 Um filme como Instinto selvagem proporcionaria, segundo a pesquisadora, uma inversão dos papeis, uma transformação radical da “persistente convenção cultural” segundo a qual a mulher é sempre retratada como vítima da violência. Pidduck termina o texto admitindo que Catherine Trammel/Sharon Stone, com sua verve, sua sexualidade desenfreada, sua capacidade de enfrentar e desconcertar uma sala repleta de policiais durões, sem falar na habilidade com que maneja o já lendário picador de gelo (signo da castração), provoca na espectadora feminista momentos do mais intenso e supremo guilty pleasure.123
  

110 Ver Carol J. Clover, “Her Body, Himself: Gender in the Slasher Films”, in GRANT, Barry Keith (org.), The Dread of Difference: Gender and the Horror Film, Austin: University of Texas Press, 1996.                                               
111 J. Pidduck, “La femme fatale hollywoodienne des années 90: Basic instinct, un cas de figure”, in Vertigo, nº 14 (dossiê “Féminin/masculin”), janeiro de 1996, p. 127.     
112 Desejos é uma readaptação de Vertigo não totalmente desprovida de interesse. O filme começa afirmando o poder da psicanálise através da personagem de Richard Gere, psicanalista que, durante uma sessão de julgamento num tribunal, é tratado como autoridade incontestável. Mas, daí em diante, tudo o que se vê é uma queda contínua e irreversível do protagonista masculino, que carrega consigo a credibilidade da psicanálise. O enredo de Vertigo é retorcido por Phil Joanou de modo a colocar a mulher no controle absoluto da situação e, principalmente, a contestar essa autoridade psicanalítica que havia sido a moldura de tantas ficções hollywoodianas desde os anos 1940, sobretudo aquelas com que o filme dialoga (noir, woman’s picture). 
113 Pidduck, art. cit., pp. 127-128.        
114 Ibid., p. 127.
115 Olivier Marie, “L’indistinct manifeste”, in Éclipses, nº 42, 2008, p. 71.                  

116 Ibid., p. 70.                                                                                                          
117 Ibid., p. 74.                                                                                                          
118 Ibid.                                                                                                                   
119 Pidduck, art. cit., p. 128.                                                                                      
120 Ibid., p. 129.                                                                                                         
121 G. Vincendeau, “Lectures féministes”, art. cit., p. 124.                                            
122 J. Pidduck, art. cit, p. 129.                                                                                    
123 Ibid.                                                                                                                     
124 L. Williams, Screening Sex: Une histoire de la sexualité sur les écrans américains, Paris: Capricci, 2014, p. 119.  

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