por João Bénard da Costa
A exceção e a regra. Uma reconciliação com o mundo e com os homens. “Voltei a acreditar que um e outros podem ser perfeitos.”
Quando fui ver A Perfect World estava num daqueles dias em que se
tende a exagerar a natural imperfeição do mundo e dos seus habitantes.
Um daqueles dias em que se toma a parte pelo todo ou uma dor de cabeça
por um câncer no cérebro. Um daqueles dias, por exemplo, em que, quando
presenciamos tristes figuras, de quem as esperávamos e de quem as não
esperávamos, generalizamos que só há figurações tristes nestes tristes
tempos deste triste espaço. Que “faz frio pensar na vida”. O que a vida
faz às pessoas. O que as pessoas fazem da vida. De associação em
associação, de recorrência em recorrência, tudo ou muito (mas um muito
que é demais) nos começa a parecer sinistro. “Há qualquer coisa de
sinistro no olhar daquele carneiro”, dizia Nuno Bragança quando não
gostava ou desconfiava de uma pessoa. Em dias, como o dia em que vi A Perfect World,
descobri “qualquer coisa de sinistro” no olhar de quase todos os
carneiros, mesmo daqueles que têm lã quentinha e a quem gostamos de
passar a mão pelo pêlo ou que nos passem a mão pelo pêlo. Os amigos não
são para essas ocasiões.
Antigamente, um bom filme de Capra, um bom filme de Ford, eram o
antidepressivo ideal para essas ocasiões, que provavelmente têm mais que
ver com coisas nossas de que com coisas vossas. Hoje - Capra morreu,
Ford morreu e não há ninguém com muita saúde - é mais raro achar filmes
com essas virtudes. Mas, no ser humano, a capacidade de bem é tão
espantosa como a capacidade de mal e, mesmo que a moral vigente não seja
mais a moral edificante, há sempre exceções à regra. A Perfect World
(título que não deve ser lido ironicamente) é uma dessas exceções. De
resto, num diálogo do filme (e dos mais importantes) é de regras e
exceções que se fala.
T. J. Lowther, o miúdo que Clint Eastwood descobriu (decalcado a papel
químico de 4.700 miúdos análogos do cinema americano) confessa a Kevin
Costner que roubou a fantasia do fantasminha e a máscara do “halloween”.
Pergunta-lhe se está zangado com ele, pergunta aliás recorrente na boca
de uma criança educada por Testemunhas de Jeová e por muitas
proibições. Costner responde-lhe que não se deve roubar, mas que quando
uma coisa apetece muito e não há dinheiro... E acrescenta, à laia de
moral, “todas as regras têm exceção”. É quase no fim do segundo grande travelling
de acompanhamento, no caso em questão de acompanhamento do carro em que
o adulto e a criança por duas vezes permutam estatutos: o adulto faz-se
criança (para o bem e para o mal, nunca tinha deixado de o ser) e a
criança torna-se adulto. Nesses dois travellings (muito longos e admiravelmente filmados) Kevin Costner e T. J. Lowther ligam-se um ao outro e ligam-se a nós.
No cinema americano, abundam exemplos de histórias de crianças que foram
parar às mãos de bandidos. Ou se divertiram muito, ou ficaram, para
sempre, vacinadas contra o maniqueísmo dos “bons” e dos “maus”. A Perfect World, a esse nível, é só mais um filme desses e não destrona o arquétipo de todos, Moonfleet,
de Fritz Lang. Como não destrona, em termos de imagem emblemática, a
oposição corpo grande - corpo pequeno, ou pai-filho, que explicou a
adesão das gerações do pós-guerra a uma parábola como Ladrões de Bicicletas (Ladri di biciclette, 1948). Por alguma razão, a imagem publicitária do filme (Costner, enorme, e T. J. Lowther, pequenino, de mãos dadas) reenvia imediatamente ao filme de De Sica.
Mas, em A Perfect World, dão-se passos muito consideráveis para
questões morais bastante mais complexas. Centro-me numa seqüência e num
adereço: a seqüência em casa da família negra e a utilização do fato e
da máscara do “halloween”.
Se, algum dia, o mundo pareceu perfeito ao miúdo chamado Phillip foi na
manhã que passou em casa dos velhos negros e do neto. A amizade com
Costner selara-se quando este interrompeu o que estava a fazer com a
dona do restaurante e seguiu viagem com o miúdo, sem - novamente - se
zangar com ele. Depois de terem sido acordados na floresta (pelo negro)
tudo pareceu a Phillip (e digo a Phillip, porque a seqüência é
subjetiva) a perfeita celebração dessa amizade: o velho disco, a velha
música, Costner a dançar com a velha, ele a dançar com o miúdo. Neste
momento, o bem pareceu estar do lado mau, definitiva e
pacificamente. Se a polícia tivesse entrado naquela casa, naquele
momento, o miúdo ficaria a odiar policiais e a adorar ladrões pela vida
fora.
Mas o que aprendeu, e o que aprendeu de repente, foi que não há simplicidades dessas. Determinado por um valor (“adultos não devem tratar mal as crianças”) Kevin Costner estraga a festa e, como todos os fundamentalistas,
assume por razões éticas um comportamento monstruoso (a tortura e a
ameaça de morte à família negra). E o que o miúdo descobre naquele
momento é que o amigo é também um monstro e que nenhuma amizade
justifica o pacto com a monstruosidade ou com a ignomínia. Por isso
dispara e mata o amigo. Esse tiro é, por isso mesmo, um dos tiros mais
belos da história do cinema.
Mas Clint Eastwood ainda foi mais longe. Costner diz ao miúdo, depois,
que se calhar não ia matar ninguém (é irrelevante, a tortura fora mais
grave) e, em campo aberto (na seqüência final), dá muito mais dados para
ser compreendido e amado. E quando manda Phillip embora, pede-lhe que
ponha a máscara e vista a fantasia do fantasma. É nessa altura que essa
máscara e essa fantasia adquirem a dimensão mais obscura e sacral.
Porque com elas, o miúdo não é miúdo mas uma aparência construída para
meter medo. Passa de criança a homúnculo e dissolve-se-lhe, sob a
máscara, a infantilidade. Como máscara, pode enfrentar as outras
máscaras (os policiais) num mundo por igual mascarado, num mundo em que
sem máscara ou se é criança ou se está perdido.
Num filme de 1932 - Blonde Venus -, Sternberg fez aproximável uso de uma caraça e de uma criança para dar a Marlene um terceiro homem mais forte do que o marido e do que o amante. Em A Perfect World,
desde a seqüência do armazém e sempre que o miúdo tira ou põe a
máscara, são dadas as pistas para a transformação daquela criança no
adulto que um dia será, e, eventualmente, no monstro que um dia pode vir
a ser. Quando foi ele que deu o tiro tinha a cara e os olhos
transparentemente nus. Quando o policial deu o segundo tiro - o tiro da
abjeção - o contracampo é a máscara.
No fim, já o miúdo vai ser levado para a sua “nave espacial”, Clint
Eastwood dá o soco no agente federal e Laura Dern atira-lhe um pontapé
aos tomates. Esses dois atos violentos são o equivalente (adulto e
“legal”) do tiro que a criança dera. A criança não a vemos nem a ouvimos
mais. Clint Eastwood ouvimo-lo dizer (e são as últimas palavras do
filme): “Já não sei nada de nada”. Alguma vez, alguém, pensou ouvir
semelhante confissão da boca de Clint Eastwood?
Mas foi por causa dessas palavras, do tiro do miúdo, do soco de Clint
Eastwood e do pontapé de Laura Dern que me reconciliei com o mundo e com
os homens e que voltei a acreditar que um e outros, às vezes, podem ser
perfeitos. As estrelas do céu por cima de nós e a lei moral dentro de
nós? Professor Immanuel, é mais ou menos isso.
(“As Imagens Recorrentes”, crônica no Suplemento “Vida” do semanário Independente, 23 de Dezembro de 1993)
Retirado de http://www.focorevistadecinema.com.br/jornalperfect.htm