sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Clube do Filme: Silvestre

O Clube do Filme continua em atividade, mesmo durante a epidemia, em formato virtual. Sempre na quarta quarta-feira do mês nos reunimos para a discussão de um filme e textos relacionados.

O filme de setembro é "Silvestre" (1981), de João César Monteiro.


Silvestre, um filme, um coração de fogo; arde apaixonadamente - substância e matriz - da sua própria energia; sem defesa, transtorna-se, reaparece, renasce consciente da sua relatividade, humaniza-se em suma, como as matérias - teatro e vida - de que é tecido. Dos desertos do amor à solidão das estrelas, a travessia árdua, dolorosa e desordenada de todos os sonhos rebeldes: porque é pelo frio que subimos, ou, muito simplesmente, we can't go home again, como diziam nossos amigos que agora descansam.
- João César Monteiro.

O filme está disponível no YouTube (em caso de problemas com o link ou se desejar uma cópia um pouco melhor
, envie um email para nós: coletivoatalante@gmail.com).

Textos recomendados para leituras, todos breves:

A) "Monteiro, A.K.A. João César" por Fernando Lopes. Disponível aqui.
B) "Silvestre", pelo próprio diretor. Disponível aqui.
C) "O Silvestre é um filme sobre a aprendizagem...", entrevista com o diretor. Disponível aqui.

Como de costume, nosso propósito no Clube do Filme é discutir obras e textos com um pouco mais de tempo que nos debates após as sessões do cineclube, logo, o filme não será exibido na data. Recomendamos que o filme já tenha sido visto e também a leitura dos textos, porém isso não é exigido para participação. Optamos pelo encontro via plataforma Jitsi, uma vez que não exige senha, links confusos nem download de nenhum aplicativo para o desktop (porém caso queira acessar pelo celular, é necessário o aplicativo Jitsi para celular, de download gratuito). Devido ao formato virtual, não poderemos exibir com qualidade trechos do filme e de outros trabalhos, mas acreditamos ser importante retomarmos as atividades possíveis durante a pandemia. O ingresso, como sempre, é gratuito.

Serviço:

Clube do Filme: Silvestre, de João César Monteiro
Dia 28/10 (quarta-feira)
Das 19h15 às 21h30
Via Jitsi: https://meet.jit.si/ClubedoFilmeAtalante
ENTRADA FRANCA

Realização: Coletivo Atalante

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Belarmino, verdade e mentira

 por Vera Lúcia de Oliveira e Silva



O filme Belarmino [1] coloca na mesa a pergunta: Belarmino mente?
Respondo: Belarmino mente. Não mais do que você – ou eu.

O filme de Fernando Lopes mostra um contraponto entre o boxeur e seu manager, do qual emerge a pergunta: quem está mentindo?
Respondo de novo: provavelmente os dois.

Estou pensando nos conceitos de verdade e mentira explorados por Nietzsche[2] em seu sentido não-moral (ou extra moral): a mentira como inevitável e a verdade como ilusão.

Nietzsche faz a arqueologia do aparecimento da palavra, desde a coisa – das Ding – cujos atributos perceptíveis chegam a sensibilizar a consciência humana. Ele se dá conta de que, nesse primeiro momento, já há uma primeira quebra da verdade, pois só aquilo que estamos aptos a perceber chegará a produzir uma dada representação no sistema percepção-consciência. A coisa em si – das Ding an sich – como já dissera Kant antes dele, permanecerá incognoscível.

A partir dessa primeira captura fragmentária, o homem vai produzir uma sonoridade – um significante – que dirá, em ondas audíveis, aquilo que ele percebeu daquilo que da coisa é apreensível.

É sobre essa base frágil, através de convenções que os seres falantes estabelecem entre si, que se constrói um discurso cuja validade se deseja sustentável.

Freud vai tornar superlativa essa fragilidade quando nos aponta que, a própria percepção, mesmo daquilo que é plenamente perceptível, estará sempre enviesada pelo narcisismo e pelo gozo. Ele nos diz que, quando a verdade e a vaidade discordam, a verdade sai sempre perdendo; e que somos muito aptos a inclinar nossa percepção de modo a fazer com que a realidade seja lida de acordo com nosso modo próprio de satisfação. Ele vai mais longe, ao dizer que toda recordação é encobridora: se você se lembra, é porque não é bem assim – a lembrança já está corrigida segundo o gosto[3] daquele que se lembra.

Então... – com tanto perigo ameaçando a verdade; com tanta probabilidade de que a mentira seja tomada como verdadeira, não por uma decisão moral, mas por um incontornável nascimento precário; com a máxima possibilidade de engano, mesmo que não haja uma intenção consciente de enganar – ... fica a pergunta: de onde tiramos nossas certezas?

E mais: de onde tiramos nós a paixão pelas nossas certezas, a ponto de delas retirarmos critérios “seguros” para decidir entre o amor e o ódio?

Esta é a pergunta que me resta de Belarmino. A cada um, a resposta que lhe convém.

20 de Outubro de 2020.



[1] Fernando Lopes, cineasta, Belarmino, um dos filmes emblemáticos do Cinema Novo português, 1964.

[2] Nietzsche. F. Sobre verdade e mentira no sentido extramoral. 1873. In Moraes Barros, F. Sobre verdade e mentira. Editora Hedra, São Paulo, 2012

[3] Zbigniew Herbert - O   poder do gosto (poema) “... no fundo era uma questão de gosto. Sim, de gosto, no qual habitam as fibras da alma e as cartilagens da consciência...”

terça-feira, 20 de outubro de 2020

Silvestre

por João César Monteiro

Silvestre, um filme, um coração de fogo; arde apaixonadamente - substância e matriz - da sua própria energia; sem defesa, transtorna-se, reaparece, renasce consciente da sua relatividade, humaniza-se em suma, como as matérias - teatro e vida - de que é tecido.

Dos desertos do amor à solidão das estrelas, a travessia árdua, dolorosa e desordenada de todos os sonhos rebeldes: porque é pelo frio que subimos, ou, muito simplesmente, we can't go home again, como diziam nossos amigos que agora descansam.

Pelo fascismo fomos arrancados do cordão umbilical da nossa própria história, pulverizados: qual será o nosso destino? Atirados em mil pedaços, fazemos filmes que invocam em vão o gai savoir dos elfos para tentarmos ficar parecidos com eles. Atroz, a praia aberta por essa exploração - geografia irrisória de uma região fabulosa e conjecturada. Poderemos ainda ler os fragmentos do nosso corpo disperso? Voltar a ligá-los a um desejo cívico? O nosso destino é um palimpsesto insondável, um equívoco. Quem somos nós, tão idênticos a nós próprios e a coisa nenhuma? A que é que se aprece a nossa tão vaga e tão obscura natureza?

in Cahiers du Cinéma nº 460, outubro 1992. Traduzido para português de Portugal por João Pedro Bénard.
Retirado do catálogo "João César Monteiro", Edição Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema, Lisboa, abril de 2005. 

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Monteiro, A.K.A. João César

 por Fernando Lopes



Quando o conheci, nos idos de 62, no "Montebranco" do Saldanha (já a mania dos gelados...), ele era só o César que, com o Seixas, o APV, o António Escudeiro e o Zé Vaz Pereira, discutia filmes a manhã inteira e pensava nos "engates" - à época muito difíceis.

O César, no seu corpo desengonçado - meio Buster Keaton, meio Tati "avant la lettre" - era o mais ousado nesse desporto radical nos púdicos e hipócritas anos 60.

Aí por volta de 63 - com os Verdes Anos em rodagem e eu a preparar o Belarmino -, o grupo mudou-se, com armas e bagagens, para o "Vává", próximo da Ulyssea Filmes (laboratório e salas de montagem), que veio a ser a "alma mater" do "Cinema Novo Português" - assim mesmo, com maiúsculas e tudo!

O César passou a ser o João César, candidato a cineasta. Tal como nós todos.

O desporto radical do "engate" apurou-se (vejam os exemplos em todos os meus filmes...), graças às "Valquírias do Vává", como ele chamava às meninas da Faculdade, que por lá passavam todos os dias e que ele cortejava com modos de "dandy", pobre mas honrado.

O João César foi o primeiro "sem abrigo" que conheci (lembrem-se das Recordações da Casa Amarela), dormindo ao Deus dará, ora em casa do APV, ora do Escudeiro (aqui sempre com um olho lúbrico na Lela...), ora, sobretudo, do Cristiano de Freitas (que era de nós todos o único que tinha meios financeiros, carro de sport descapotável e, claro, muitas conquistas femininas). O João César privilegiava principalmente a casa do Cristiano (em frente ao "Vává"), porque de vez em quando sobrava para ele uma "dama de muito bem fazer a quem lho pedisse". E o João César não pedia, atacava mesmo e de mil maneiras, "porque amor não há feito", como disse o poeta (também se vê, ora burlesco, ora trágico, em todos os filmes dele).

Às tantas apareceu no "Vává" o velho Ricardo Malheiros, um produtor da estirpe do Fernão Mendes Pinto, que eu conhecera no Brasil, em circunstâncias alegremente rocambolescas e que, de regresso a este jardim à beira-mar plantado, me veio anunciar a criação de sua nova Produtora, pomposamente designada "Cultura Filmes" (com o filme do Paulo, o meu e o do António Macedo era preciso um ar sério para sacar dinheiro à Gulbenkian...).

O Ricardo pediu-me então que lhe apresentava realizadores da nova geração.

Disse-lhe: "Oh Ricardo, veio ao sítio certo porque estão aqui quase todos à mão de semear!". O APV, o Seixas e eu, lá fizémos uma caterva de tarefas alimentares (sem grande consequência cinematográfica, diga-se em abono de Lumière e de Méliès...), até o dia histórico, a vários níveis - e não apenas cinematográficos... -, em que consegui convencer o Ricardo a dar ao João a oportunidade de realizar o seu primeiríssimo filme:

Sophia

(que eu considero uma obra-prima e que contém já muito do que ele viria a fazer depois, desde Quem Espera por Sapatos de Defuntos até a última e pungente despedida que é o Vai e Vem). E é neste percurso inicial que ele deixou de ser, primeiro - o quase pejorativo César; depois - o mais familiar e amigável (às vezes, às vezes...) João César; por fim - tal como acabou por ser reconhecido, aqui e lá fora, o
João César Monteiro.

Considerado pela crítica internacional, e já agora também pela portuguesa, o mais singular realizador do nosso cinema, raiando o gênio, através do risco e da mais elaborada, culta e vernacular provocação. Sonora e visual. Olha, João de Deus: assim seja! Mas não pares de fustigar com o teu chicote a insidiosa "dark Lady" que, em hora funesta, te "engatou" num banco de jardim de Lisboa.

Janeiro de 2005.


Interior da Pastelaria "Vává", em foto sem data, sem os verdes anos.

Texto em português de Portugal. Retirado do catálogo "João César Monteiro", Edição Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema, Lisboa, abril de 2005.