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segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Monteiro, A.K.A. João César

 por Fernando Lopes



Quando o conheci, nos idos de 62, no "Montebranco" do Saldanha (já a mania dos gelados...), ele era só o César que, com o Seixas, o APV, o António Escudeiro e o Zé Vaz Pereira, discutia filmes a manhã inteira e pensava nos "engates" - à época muito difíceis.

O César, no seu corpo desengonçado - meio Buster Keaton, meio Tati "avant la lettre" - era o mais ousado nesse desporto radical nos púdicos e hipócritas anos 60.

Aí por volta de 63 - com os Verdes Anos em rodagem e eu a preparar o Belarmino -, o grupo mudou-se, com armas e bagagens, para o "Vává", próximo da Ulyssea Filmes (laboratório e salas de montagem), que veio a ser a "alma mater" do "Cinema Novo Português" - assim mesmo, com maiúsculas e tudo!

O César passou a ser o João César, candidato a cineasta. Tal como nós todos.

O desporto radical do "engate" apurou-se (vejam os exemplos em todos os meus filmes...), graças às "Valquírias do Vává", como ele chamava às meninas da Faculdade, que por lá passavam todos os dias e que ele cortejava com modos de "dandy", pobre mas honrado.

O João César foi o primeiro "sem abrigo" que conheci (lembrem-se das Recordações da Casa Amarela), dormindo ao Deus dará, ora em casa do APV, ora do Escudeiro (aqui sempre com um olho lúbrico na Lela...), ora, sobretudo, do Cristiano de Freitas (que era de nós todos o único que tinha meios financeiros, carro de sport descapotável e, claro, muitas conquistas femininas). O João César privilegiava principalmente a casa do Cristiano (em frente ao "Vává"), porque de vez em quando sobrava para ele uma "dama de muito bem fazer a quem lho pedisse". E o João César não pedia, atacava mesmo e de mil maneiras, "porque amor não há feito", como disse o poeta (também se vê, ora burlesco, ora trágico, em todos os filmes dele).

Às tantas apareceu no "Vává" o velho Ricardo Malheiros, um produtor da estirpe do Fernão Mendes Pinto, que eu conhecera no Brasil, em circunstâncias alegremente rocambolescas e que, de regresso a este jardim à beira-mar plantado, me veio anunciar a criação de sua nova Produtora, pomposamente designada "Cultura Filmes" (com o filme do Paulo, o meu e o do António Macedo era preciso um ar sério para sacar dinheiro à Gulbenkian...).

O Ricardo pediu-me então que lhe apresentava realizadores da nova geração.

Disse-lhe: "Oh Ricardo, veio ao sítio certo porque estão aqui quase todos à mão de semear!". O APV, o Seixas e eu, lá fizémos uma caterva de tarefas alimentares (sem grande consequência cinematográfica, diga-se em abono de Lumière e de Méliès...), até o dia histórico, a vários níveis - e não apenas cinematográficos... -, em que consegui convencer o Ricardo a dar ao João a oportunidade de realizar o seu primeiríssimo filme:

Sophia

(que eu considero uma obra-prima e que contém já muito do que ele viria a fazer depois, desde Quem Espera por Sapatos de Defuntos até a última e pungente despedida que é o Vai e Vem). E é neste percurso inicial que ele deixou de ser, primeiro - o quase pejorativo César; depois - o mais familiar e amigável (às vezes, às vezes...) João César; por fim - tal como acabou por ser reconhecido, aqui e lá fora, o
João César Monteiro.

Considerado pela crítica internacional, e já agora também pela portuguesa, o mais singular realizador do nosso cinema, raiando o gênio, através do risco e da mais elaborada, culta e vernacular provocação. Sonora e visual. Olha, João de Deus: assim seja! Mas não pares de fustigar com o teu chicote a insidiosa "dark Lady" que, em hora funesta, te "engatou" num banco de jardim de Lisboa.

Janeiro de 2005.


Interior da Pastelaria "Vává", em foto sem data, sem os verdes anos.

Texto em português de Portugal. Retirado do catálogo "João César Monteiro", Edição Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema, Lisboa, abril de 2005.

quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Notas sobre o Verdes Anos, de Paulo Rocha

por Vera Lúcia de Oliveira e Silva

Nada me preparou para o final trágico – nem mesmo rever o filme, tomando como farol as palavras de Paulo Rocha: se em vez de estarem atentos à história e às palavras, olhassem o tratamento dado a estas, não haveria dúvida possível, ao nível da mise-en-scène era uma progressão inexorável[1].

Segui supostos indícios – mas acabei concluindo que Paulo Rocha deixou pistas falsas e redobrou a falsificação com suas palavras sobre a progressão inexorável. Se há no filme algum indício concreto, ele foi apontado por Kátia Patrício – a homologia entre a cena na TV, onde modelos contracenam com um tigre enjaulado, e a cena em que Ilda “desfila” os trajes da patroa para um Julio acuado, sentado em um banquinho, mais apropriado para uma criança. Lembrou-me Nietzsche: O que sabe o homem, de fato, sobre si mesmo?... na indiferença do seu  não-saber, ele repousa sobre o impiedoso, o voraz, o insaciável... um assassino sobre as costas de um tigre.[2]

Então, tomada pelo impacto da pergunta – de onde vem a grandeza trágica com que se encerram os Verdes Anos? – decidi entrar em cheio na tragédia, deixando de lado possíveis anúncios premonitórios, abandonando de vez uma talvez crônica da morte anunciada[3]. Fui diretamente ao dia do desfecho e fiz a leitura mítica que passo a partilhar.

Na tarde daquele dia, Júlio parece bem: diferente dos dias precedentes, asseado e elegante, passeia com Ilda pelo campus da Universidade, cuja arquitetura altaneira aponta à Cultura, talvez como um aceno de um possível destino pulsional[4] alternativo à violência.

Naquele dia ele propõe casamento. Embora interessada por ele e sua companhia, Ilda recusa a proposta, alegando lúcidas razões de ordem prática. A seguir ela pede licença e vai confraternizar com amigos de sua aldeia natal. No giro seguinte do parafuso, Júlio “acabará” com ela. É na ambigüidade da palavra “acabar”, que ele convence a patroa a permitir que se encontrem pela última vez: está tudo acabado entre nós; só quero devolver uma foto; é só um minuto. A patroa que, anteriormente, em um diálogo de cores maternais, fizera à moça advertências quanto ao perigo representado pelos rapazes, da cidade ou do campo, cede ao argumento de Júlio, talvez levada por sua aparência descontraída e benevolente.  

De fato, pela primeira vez em toda a mise-en-scène “Júlio se comporta de um modo quase alegre e, dir-se-ia, aliviado[5]. A patroa vence as reticências e permite o encontro fatal.

Uma vez a sós, o homem penetra o corpo da mulher. Que emite, não um grito de dor ou um pedido de socorro, mas um arfar de gozo [6]. Consuma-se o casamento entre Eros e Tânatos, bodas de sangue entre o Amor e a Morte.

Considerando que a musa trágica por excelência é o castigo imerecido[7]; e que o homem está no mundo como ser-para-a-morte [8], sendo a morte um problema imposto pela própria existência; então o desfecho trágico sustenta-se por si só, sem necessidade de uma progressão inexorável explícita. Surpreende: como erupção assombrosa do Real.

Na cena seguinte, o filme alinha três figuras femininas míticas: a Mãe, a Mulher e a Morte – as três Moiras, as que fiam, tecem e cortam o destino dos homens e dos deuses (na psicanálise lacaniana, uma "interpretação" encontra a marca do seu acerto -ou não- naquilo que ela produz em associações, no depois. Se assim for, encontro em O Rio de Ouro, de 1998, uma espécie de "confirmação" da possibilidade de leitura de Paulo Rocha à luz da tragédia grega, pois, aqui, às margens do Douro, Isabel Ruth encarna, em plena majestade, a condensação das três Moiras).

Voltemos ao Verdes Anos: Júlio sai da cena do crime. A mise-en-scène continua a entregar elementos para apoiar a tese das bodas consumadas. Despido do paletó e da gravata, ele saltita pelas escadas. Vai a um bar, chama a atenção de todos, quebrando uma vidraça, e expõe a mão ensangüentada, estampando-a no linho branco do casaco do garçom – como um lençol exposto na manhã seguinte às núpcias, para honra dos noivos e suas famílias [9].

Cena final: o homem sozinho – ele e seu ato – face a face com aquilo que o ultrapassa e esmaga, o Destino, em três planos de potência avassaladora.

28 de agosto de 2020


[1] Manuel S. Fonseca. Os verdes anos, crítica. 1963

[2] Nietzsche, F. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral. 1873

[3] García Márquez, G. Crônica de uma Morte Anunciada. 1981

[4] Freud, S. A pulsão e seus destinos. 1915

[5] Manuel S. Fonseca. Os verdes anos, crítica. 1963 “... a subida rápida de Júlio a casa dos patrões de Ilda, dando-se o caso, mas não o acaso, de ser essa a primeira vez que Júlio se comporta de um modo quase alegre e, dir-se-ia, aliviado”.

[6] La petit mort = orgasmo em francês.

[7] Nietzsche, F. Introdução à Tragédia de Sófocles. 1870 - Texto de uma das preleções proferidas pelo autor na Universidade da Basiléia, sob o título “Contribuições à história da tragédia grega”.

[8] Heidegger. O ser e o tempo. 1927

[9] Tradição no Cáucaso, região entre a Armênia, a Geórgia, o Azerbaijão e a Rússia.

terça-feira, 18 de agosto de 2020

Clube do Filme: Os Verdes Anos

O Clube do Filme continua em atividade, mesmo durante a epidemia, em formato virtual. Sempre na quarta quarta-feira do mês nos reunimos para a discussão de um filme e textos relacionados.

O filme de agosto é "Os Verdes Anos" (1963), de Paulo Rocha.



Os Verdes Anos foi o olhar inaugural que mostrou que a lente, afinal, não serve para mentir e fazer uma ficção que distraia o nosso olhar. Serve para entrar pela verdade adentro e abrir a sua ferida, abrir os nossos olhos. E fazer ver que viver em Portugal, afinal, significa qualquer coisa. E que é por buscar os nossos sonhos como Rocha fez que vamos ao fundo do que interessa. Seja pelo inesquecível rodopio das suas personagens, entregues à frustração dos seus desejos (como quem se perde na inesquecível música de Carlos Paredes e nunca de lá sai), mas que sabe, por outro lado, que vive para amar por entre cada uma das suas notas. E que se isso não é possível, que se esqueça a vida, então.
- Francisco Valente
 
O filme está disponível para download neste link (caso expire, ou em qualquer dúvida, envie um email para nós: coletivoatalante@gmail.com)
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Textos recomendados para leitura:
1) Folha da sessão do filme, por Manuel S. Fonseca: https://coletivoatalante.blogspot.com/2020/08/os-verdes-anos-1963.html
2) Biografia de Paulo Rocha, por Maria João Madeira: disponível neste link.


Como de costume, nosso propósito no Clube do Filme é discutir obras e textos com um pouco mais de tempo que nos debates após as sessões do cineclube, logo, o filme não será exibido na data. Recomendamos que o filme já tenha sido visto e também a leitura dos textos, porém isso não é exigido para participação. Optamos pelo encontro via plataforma Jitsi, uma vez que não exige senha, links confusos nem download de nenhum aplicativo para o desktop (porém caso queira acessar pelo celular, é necessário o aplicativo Jitsi para celular, de download gratuito). Devido ao formato virtual, não poderemos exibir com qualidade trechos do filme e de outros trabalhos, mas acreditamos ser importante retomarmos as atividades possíveis durante a pandemia. O ingresso, como sempre, é gratuito.

Serviço:

Clube do Filme: Os Verdes Anos, de Paulo Rocha
Dia 26/08 (quarta-feira)
Das 19h15 às 21h30
Via Jitsi: https://meet.jit.si/ClubedoFilmeAtalante
ENTRADA FRANCA

Realização: Coletivo Atalante