quinta-feira, 27 de julho de 2017

Cineclube do Atalante - Programação de agosto

A partir de agosto o Cineclube da Cinemateca muda o seu nome para Cineclube do Atalante. Nome novo, mas a luta de sempre.
05/08: Fim de verão, de Yasujiro Ozu
(Kohayagawa-ke no aki, JAP, 1961 – 104 min. Com: Ganjiro Nakamura, Setsuko Hara, Yôko Tsukasa, Michiyo Aratama, Keiju Kobayashi) A família Kohayagawa é dona de uma pequena fábrica de saquê. No período pós-guerra, os negócios entram em crise pela falta de competitividade da empresa. Nesse contexto, os parentes providenciam o casamento da caçula Noriko (Yôko Tsukasa) e o da viúva Akiko (Setsuko Hara). Paralelamente, sr. Kohayagawa (Ganjiro Nakamura), o patriarca da família, revive uma antiga paixão.

19/08: Portrait of Jason, de Shirley Clarke
(EUA, 1962 – 105 min. Com: Jason Hollyday)
Entrevista com Jason Holliday, nascido Aaron Payne, que, sozinho em cena, conta como era a vida de um gay negro e prostituto, nos anos 60.
Serviço:
Sessões quinzenais aos sábados
16 horas
Na Cinemateca de Curitiba
(Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174 - São Francisco)
(41) 3321 – 3552
ENTRADA FRANCA

Realização:Coletivo Atalante

sábado, 22 de julho de 2017

DEIXAI TODA ESPERANÇA, Ó VÓS QUE ENTRAIS:

A poética do cinema de horror italiano

Miguel Haoni

Introdução: O cinema de Dante Alighieri[1]

O presente artigo pretende, através de um recorte bem específico de três filmes, traçar um comentário sobre o universo estético do cinema de horror fantástico concebido na Itália como uma das culminâncias da tradição milenar do grotesco na arte.
Desde a antiguidade romana, através da poesia de Petrônio e seu Satíricon, passando pela Commedia dell’arte e seu jogo de inversão de valores, esta tradição chegou ao seu momento de maior maturidade com a confecção da Comédia de Dante Alighieri[2], ainda na Idade Média.
Comédia – posteriormente adjetivada como ‘Divina’ por Giovanni Boccaccio – é um capítulo central na cultura visual, principalmente no que tange à representação do Mal. Diversos artistas do mundo inteiro e em diversos momentos da História, ao pretenderem representar as encarnações do Mal e seu horror, recorriam às imagens da cântica do Inferno[3], direta[4] ou indiretamente. Incluída aqui está a geração de cineastas italianos que a partir dos anos 60 do século XX recorrerão a esta tradição para conceber suas imagens.
A autoridade intelectual, política e artística de Dante relacionou-se sobremaneira ao seu contexto. Dante era um homem medieval, e sua Comédia resultou das mudanças nos paradigmas culturais, políticos e religiosos advindos da primeira onda de histeria coletiva em torno do fim do mundo, na virada para o ano Mil. A mudança de milênio e a expectativa do Apocalipse acarretou implicações catastróficas para o imaginário cristão europeu. A cultura do medo, base para a produção artística e ideológica do período, atinge seu paroxismo neste ponto de grande crise.
Soma-se a isso o fato de o poeta, em seu ímpeto pedagógico, ter ousado compor em língua vulgar num contexto em que a escrita só era concebida em Latim. Ao optar pelo estrato menor na hierarquia cultural, Dante se alçou à posição de pai da literatura italiana.
O berço de Dante, Florença – pela qual nutria sentimentos de amor e ódio – era uma das maiores e mais economicamente desenvolvidas cidades européias. Testemunha da falência do modelo aristocrático e da ascensão prematura dos valores burgueses, a cidade com a qual Dante inicia seu turbulento diálogo era moderna antes da letra.
Isso tudo condicionou Dante a escrever sob uma visão escatológica da humanidade, num contexto de degenerescência e decadentismo. É o momento que lhe municia a conceber as imagens de um trajeto em direção às trevas.
Tais dados nos permitiriam criar paralelos com o ambiente da produção cinematográfica italiana a partir dos anos 60: com a crise histérica do “fim do cinema” no contexto da decadência do modelo hollywoodiano e da ascensão da televisão; com a escolha empreendida por determinados artistas que queriam se “fazer ouvir” pela “língua vulgar” dos filmes de horror, faroestes e pepla[5]; e no espaço muito pouco espiritual do studio system italiano.
 Voltemos ao contexto de Dante. Retroativamente a Idade Média foi concebida pelos Iluministas sob o epíteto de “idade das trevas”, mas para o poeta e muitos de seus contemporâneos aquele era um momento de verdadeira iluminação espiritual, ameaçado por um iminente mundanismo destruidor. Até meados do século XIV, Deus era a verdade universal, a medida última do movimento dos homens e da natureza. Em determinado momento se opera uma transição e os pensadores se reapropriam da Razão, impondo o Homem como centro do universo. É em resposta a este contexto que Dante elabora a sua teopoética.
Sua maior contribuição para a cultura imagética foi, entretanto, oferecer uma forma plena ao inferno, algo que até então era uma agremiação de conceitos abstratos e tentativas de caracterização, na instauração daquilo que podemos chamar de fenomenologia do Mal. O começo do poema insere o personagem Dante[6] numa selva escura que já carrega todos os traços daquilo que ele vai abordar na materialização deste Mal. Este é um espaço vegetal, animal e, sobretudo irracional – traço elementar para a criação poética nos filmes abordados mais adiante.
O passeio, guiado pelo poeta Virgílio, através dos círculos infernais tem por motivos motores a aprendizagem intelectual e o aperfeiçoamento espiritual, e exigem de Dante aquilo que os diretores de filmes de horror exigirão de suas plateias: a fé. Sem ela não existe possibilidade de imersão nos universos propostos. Estes artistas parecem pedir um alto nível de integração à substância ficcional ou a audácia da adesão às incoerências da sua criação.
Impossível não recorrer aqui ao início da aventura de Dante quando Virgílio lhe interpela:

Portanto pra teu bem, penso e externo
que tu me sigas, e eu irei te guiando.
Levar-te-ei para lugar eterno
de condenados que ouvirás bradando,
de antigas almas que verás, dolentes,
uma segunda morte em vão rogando;
[7]

E mais à frente, ao perceber a hesitação de Dante em iniciar a viagem:

é tibieza o que faz o teu tolhimento;

essa é o que o homem muita vez ensombra
e de uma honrosa empresa até o reverte,
como o animal que uma visão assombra.
[8]

Para entrarmos na aventura destas obras é preciso que nos permitamos ser conduzidos ao reino movediço da criação cinematográfica. É preciso o desprendimento, a fé e a coragem que Virgílio insuflou em Dante para viajarmos por este Inferno audiovisual.
Na entrada do Inferno os poetas leem inscrições que dizem:

VAI-SE POR MIM À CIDADE DOLENTE,
VAI-SE POR MIM À SEMPITERNA DOR,
VAI-SE POR MIM ENTRE A PERDIDA GENTE.

MOVEU JUSTIÇA O MEU ALTO FEITOR,
FEZ-ME A DIVINA POTESTADE, MAIS
O SUPREMO SABER E O PRIMO AMOR.

ANTES DE MIM NÃO FOI CRIADO MAIS
NADA SENÃO ETERNO, E ETERNA EU DURO.
DEIXAI TODA ESPERANÇA, Ó VÓS QUE ENTRAIS.
[9]

Tal advertência está intimamente ligada às proposições dos cineastas aqui abordados. Seus filmes desenham um movimento em direção ao pesadelo, ao enlouquecimento e para sorvê-los na sua plenitude precisamos não apenas abandonar a esperança, mas nossas regras e padrões racionalizadores, que na estrutura das narrativas serão por vezes, destruídos ou ridicularizados.
Finalmente, podemos concluir, nesta leitura, que Dante já antecipa uma concepção cinematográfica. O Inferno se cria, na forma como o poeta lhe atribuiu, a partir da queda de Lúcifer do céu em direção ao centro da terra. O movimento descendente do Anjo Decaído cava um cone no qual se inscrevem os nove círculos infernais. O Inferno seria, portanto, a materialização, o registro de um movimento – definição esta que muitos teóricos atribuíram ao cinema.

(Fragmento do texto “Deixai toda a esperança, ó vós que entrais: a poética do cinema de horror italiano”, originalmente publicado no livro Cinemas de Horror.)


[1] Muito das ideias aqui apresentadas é produto da palestra do Professor Ernani Fritoli sobre A Divina Comédia na Universidade Federal do Paraná, dia 28 de setembro de 2013.
[2] Aqui utilizamos a edição de A Divina Comédia – Inferno/Dante Alighieri – Trad. Italo Eugenio Mauro. São Paulo: Ed. 34, 1998.
[3] A Comédia é dividida em três cânticas (InfernoPurgatório e Paraíso) com 33 cantos cada. Soma-se a esta estrutura triádica o primeiro canto do Inferno (que funciona como prólogo), num total de 100 cantos.
[4] Daqueles que ilustraram a Comédia destacam-se o florentino Sandro Botticelli (1445-1510), o inglês William Blake (1757-1827), o francês Gustave Doré (1832-1883) e o espanhol Salvador Dalí (1904-1989)
[5] Filmes de sandália e espada, protagonizados por heróis como Hércules e Maciste, numa mítica Antiguidade greco-romana, os pepla fixaram-se na história do cinema comercial a partir da crise da indústria hollywoodiana dos anos 50 e respondiam ao domínio da televisão oferecendo aventuras espetaculares em grandes produções (numa espécie de pré-blockbuster) como Ben-Hur (William Wyler, 1959), Quo Vadis (Mervyn Le Roy, 1951), Spartacus (Stanley Kubrick, 1960) entre outros, que transformavam passagens bíblicas em filmes de ação.
[6] Dante Alighieri foi talvez o primeiro literato a se inserir como personagem numa obra de ficção
[7] Canto I, versos 112-117 (p. 29).
[8] Canto II, versos 45-48 (p. 32).
[9] Canto III, versos 1-9 (p. 37).

quinta-feira, 20 de julho de 2017

Cineclube da Cinemateca: "Noite dos mortos vivos" e "A casa do cemitério"

Neste sábado, o Cineclube da Cinemateca apresenta Noite dos mortos vivos (às 14h), em homenagem ao cineasta George Romero, e A casa do cemitério (às 16h) que  encerra o ciclo Os zumbis de Lucio Fulci. Em agosto, exibiremos os filmes Fim de Verão (05/08) e Portrait of Jason (19/08). Sempre com a entrada franca!

                 Cineclube da Cinemateca apresenta:

             Noite dos mortos vivos, de George A. Romero

Um satélite cai numa pequena cidade da Pensilvânia e sua radiação faz com que os mortos deixem suas tumbas e saiam à caça de pessoas vivas, pois se alimentam de carne humana. Numa fazenda, um grupo de pessoas armam uma barricada na tentativa de sobreviver ao terrível ataque dos mortos-vivos, que só podem ser mortos (mais uma vez) com um tiro na cabeça.

                    A casa do cemitério, de Lucio Fulci

Norman Boyle muda-se com a família para uma velha mansão em New England, precisamente ao lado de um cemitério, com a finalidade de prosseguir uma investigação iniciada por um colega seu, o dr. Jacob Freudstein, que se enforcou após matar a amante. Logo sua família começa a ouvir misteriosos ruídos, como os choros de uma criança. Surgem estranhos personagens, e segue-se uma série de trágicos assassinatos. Os Boyle não tardarão a descobrir que, no porão da sua casa, se esconde um assassino sedento de sangue. Um assassino que pode não ser humano.


Observação: A partir de agosto o Cineclube da Cinemateca mudará o seu nome para Cineclube do Atalante. Nome novo, mas a luta de sempre.

Serviço:

22 de julho (sábado)
Às 14h e 16h, respectivamente
Na Cinemateca de Curitiba
(Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174 - São Francisco)
(41) 3321 – 3552
ENTRADA FRANCA
Realização: Cinemateca de Curitiba e Coletivo Atalante

sábado, 15 de julho de 2017

Oficina de crítica cinematográfica em agosto

COMUNICADO IMPORTANTE:
Por motivo de força maior, a oficina programada para iniciar nesta sexta-feira, dia 18 de agosto, será adiada por tempo indeterminado. Aguardem maiores informações sobre as novas datas.


A oficina de crítica cinematográfica ministrada por Miguel Haoni (do Coletivo Atalante) em agosto, pretende, através do estudo de textos e da apreciação de filmes, oferecer uma base sólida para a reflexão sobre a arte das imagens em movimento. A partir do estudo do cinema de autor, a oficina é, ao mesmo tempo,  introdução e aprofundamento no exercício crítico.

Programa:
1° Unidade – Cinema do gesto
2° Unidade – Ingmar Bergman e a juventude
3° Unidade – Roberto Rossellini, cineasta moderno
4° Unidade – Cartas de Fontainhas: o cinema de Pedro Costa
5° Unidade – Victor Erice e a solidão

Programa:
Sobre Ingmar Bergman e "Juventude":
"
Na história do cinema, existem cinco ou seis filmes os quais adoramos criticar somente pelas palavras: “É o mais belo dos filmes!”. Porque não existe elogio mais bonito. Por que se estender falando de Tabu, Viagem à Itália, ou de A Carruagem de Ouro? Como a estrela do mar que se abre e se fecha, eles sabem oferecer e esconder o segredo de um mundo do qual eles são, ao mesmo tempo, o único depositário e o fascinante reflexo. A verdade é a verdade deles. Eles carregam-na profundamente em si mesmos e, no entanto, a tela se rasga a cada plano para semeá-la aos quatro ventos. Dizer deles: “é o mais belo dos filmes” é dizer tudo. Porquê? Porque é assim. E esse raciocínio infantil, somente o cinema se permite utilizar sem falsa vergonha. Por quê? Porque ele é o cinema. E o cinema basta a si próprio. De Welles a Ophüls, de Dreyer, de Hawks, de Cukor, mesmo de Vadim, para se gabar de seus méritos nos bastará dizer: é cinema! E quando o nome de grandes artistas dos séculos passados aparecem em comparação sob nossa pena, nós não queremos dizer nada além disso. Imaginemos, por oposição, um crítico se gabando da última obra de Faulkner dizendo: é a literatura; de Stravinsky, de Paul Klee: é a música, é a pintura? Ainda mais com Shakespeare, Mozart ou Raphael. Não faria parte das idéias de um editor, fosse ele Bernard Grasset, de lançar um poeta com o slogan: é a poesia! Mesmo Jean Vilar, enquanto consertava El Cid, enrubesceria ao colocar nos cartazes: “isso é o teatro!”. Enquanto que “isso é o cinema!” mais do que uma senha, continua sendo o grito de guerra do vendedor, tanto quanto do amante de filmes. Ou seja, dentre todos os privilégios, o menor, para o cinema, com certeza não é erigir em razão de ser sua própria existência, e transformar, na mesma ocasião, a ética em sua estética. Cinco ou seis filmes, eu disse, mais um, porque Juventude (Sommarlek, SUE, 1951) é o mais belo dos filmes."
(Jean-Luc Godard, Bergmanorama)

Sobre Roberto Rossellini e "Roma, cidade aberta":
"Quem hoje vir (ou revir) Roma città aperta (Roma, Cidade Aberta, 1945) percebe muito claramente que, atreladamente aos episódios de rodagem atormentada que iniciam o método rosselliniano pelo qual os filmes são documentários sobre essa mesma rodagem, além de se tratar de uma obra icónica sobre a resistência, ela produz uma trilogia discursiva que assenta numa lógica de opressão-resistência-libertação. A queda de Anna Magnani, executada numa rua ocupada de Roma, além de ser o primeiro dos momentos em que a o cinema de Rossellini ao começar a “subir” filma a “queda” de uma inocente, ela é a imagem da opressão tornada material. Essa sequência que, pode dizer-se, rima com a frase de George Orwell em 1984 – “Se quiseres uma imagem de futuro pensa numa bota a pisar um rosto humano. Para sempre.” – possui a mesma inevitabilidade de montagem que uma sequência de um outro assassinato: o de Janet Leigh na célebre shower scene de Psycho (Psico, 1960) de Hitchcock. A comparação mais do que temática ou formal, prende-se com uma certa inevitabilidade que antecede a morte. A morte de Magnani, como a de Leigh, são ambas concretizações brutais de um mecanismo posto em movimento que só pode culminar com o trágico desfecho. Quer dizer, não há maneira de ver tais sequências descosidas do seu término que funciona tanto como clímax violento quanto como libertação. No caso de Roma, esta começa com a palmada que Pina dá num oficial da SS que a assedia e só termina na primeira das imagens de iconografia religiosa que acompanham cada um dos momentos desse triplo discurso: o plano da pietà em que Don Pietro segura nos braços a já falecida Pina. Assim encenava Rossellini, do alto documental, do ponto de vista de alguém superior (não ele, mas talvez a humanidade como testemunha?), a morte brutal e desdramatizada de uma mulher que representava a indignação de todo um povo romano ante a guerra."
(Carlos Natálio, Rossellini: subindo ao vulcão do cinema moderno (Parte I)
Sobre Pedro Costa e "Juventude em marcha":
"Esta relação entre a grande arte e a arte de viver dos pobres, é o tema do filme. Uma ilustração espetacular é o episódio da visita ao museu, se é que se pode chamar de visita: de facto, o filme transporta-nos sem transição narrativa para uma sala da Fundação Gulbenkian onde Ventura já se encontra, apoiado na parede, entre o Portrait d'Hélène Fourment de Rubens e o Portrait d'homme de Van Dyck. Silenciosamente, um empregado do museu, negro, como o funcionário da câmara municipal, vem dizer a Ventura que saia, tirando um lenço para limpar as marcas do intruso no chão, tal como o funcionário público já tinha feito, limpando as manchas da sua cabeça da parede branca do apartamento novo. Mais tarde vem buscar Ventura, sentado meditativo num sofá Régence, e fá-lo sair, sempre em silêncio, pela porta de serviço. O segurança está satisfeito com o seu trabalho: não tem nada a ver com a fauna cosmopolita e trafulha dos hipermercados. Aqui, diz ele sobriamente a Ventura, temos paz, a não ser quando vêm pessoas como nós, o que é raro. Ventura não revela ao que vem. Sentado abaixo dele e sem o olhar, com as árvores do jardim em fundo, Ventura fala do país de onde veio, do pântano que era este terreno cheio de sapos que se multiplicavam, terreno que ele cavou e limpou, e onde colocou pedras e relva, apontando então com um gesto imperial, o lugar de onde um dia caiu do andaime. Não se trata de opôr o suor e as dores dos construtores de museus ao prazer estético dos ricos. Trata-se de confrontar história com história, espaço com espaço e palavra com palavra. O tratamento da palavra provoca de facto uma ruptura com os dois filmes precedentes. A ficção de "Ossos" acontecia sob o signo de um certo mutismo, o de Tina, a jovem mãe ultrapassada pela vida que gerou. No Quarto de Vanda adoptava, com a aparência do documentário, o tom de conversa entre quarto paredes. Juventude em Marcha instala espaços de silêncio entre os dois regimes bem distintos da palavra. De um lado, há a conversa que continua no novo quarto da Vanda, o quarto da mãe de uma família aumentada e "aburguesada", preenchido pela cama matrimonial de design de supermercado e ocupado continuamente pelo som da televisão cujo ecrã não vemos. Vanda fala do seu difícil regresso à norma no mesmo tom familiar de anteriormente. Ventura não conversa. Muitas vezes cala-se, impondo quer apenas a massa sombria da sua silhueta, quer a força de um olhar que talvez julgue aquilo que vê, ou talvez se perca noutro lugar mas que, em todo o caso, resiste a toda a interpretação. A palavra que emerge deste silêncio, que dele se parece alimentar, varia entre a fórmula lapidar, como um epitáfio ou um hemistíquio de uma tragédia, e a dicção lírica. É deste modo que ele evoca, nas costas de um interlocutor que não o vê, a partida de Cabo Verde num grande avião a 19 de Agosto de 1972 que nos relembra outra partida, aquela de um poeta e dos seus dois amigos num pequeno automóvel, a 31 de Agosto de 1914."
(Jacques Rancière, A carta de Ventura)

Sobre Victor Erice e suas dúvidas razoáveis:
"Disse Samuel Johnson, embora costume-se atribuir a frase a outros, que o patriotismo era o último refúgio de um canalha; parafraseando-o, podemos suspeitar, às vezes, que o 'profissionalismo' é a desculpa definitiva de um incompetente e o escudo dos funcionários das atividades artísticas ou, para dizer de uma maneira mais atualizada, das denominadas 'indústrias culturais'."
(Miguel MaríasAs dúvidas razoáveis de Víctor Erice)

Sobre a oficina:
Oficina de crítica cinematográfica: o cinema de autor (ministrada por Miguel Haoni do Coletivo Atalante) oferecerá uma abordagem teórica do cinema a partir do estudo de textos fundamentais e da apreciação de filmes. Filmes e textos, permitirão um percurso geral e específico em alguns capítulos essenciais da história recente do cinema.

Começaremos investigando a função da história do cinema no exercício crítico e o lugar do gesto na mise en scènecinematográfica.
Na sequência estudaremos a irrupção do cinema moderno a partir de alguns de seus protagonistas: Ingmar Bergman, Roberto Rossellini, Pedro Costa e Victor Erice. 

Com este recorte, ao mesmo tempo amplo e restrito, a oficina pretende a formação do olhar crítico com embasamento histórico sobre a arte cinematográfica e suas diversas dimensões.

Referências bibliográficas:
Catálogo da Mostra Pedro Costa & Victor Erice da Caixa Cultural
Foco - Revista de Cinema:http://focorevistadecinema.com.br/
Revista À pala de Walsh: http://www.apaladewalsh.com/
Revista Devires - Cinema e Humanidades

Referências fílmicas:
Juventude (Sommarlek). Ingmar Bergman. SUE. 1951. p&b.
Juventude em marcha. Pedro Costa. POR. 2006. cor.
O amor (L'amore). Roberto Rossellini. ITA. 1948. p&b.
O sul (El sur). Victor Erice. ESP. 1983. cor.

Serviço: 
dias 18, 22, 23, 25, 29 e 30/08 (segunda quinzena de agosto)
(terças, quartas e sextas)
das 19 às 22 horas
na KNN Idiomas Bacacheri
(Rua Maximino Zanon, 598. Esquina com a rápida Canadá – Bacacheri - Curitiba/PR)


Inscrições pelo email: coletivoatalante@gmail.com
Investimento: R$150,00
VAGAS LIMITADAS

sábado, 8 de julho de 2017

NADA ALÉM DO CORPO


Sobre o cinema de Lucio Fulci   
  
           
Todo aquele que não consegue fazer frente à vida enquanto está vivo precisa de uma das mãos para afastar parte do desespero que sente perante o seu destino - com pouco êxito - mas com a outra ele pode anotar o que observa entre as ruínas, porque é capaz de ver qualquer coisa de diferente (e muito mais) do que os outros vêem; apesar de tudo, mesmo morto durante a vida, ele é o verdadeiro sobrevivente.
Trecho de Diários de Franz Kafka  
     

Não é preciso ser um morto-vivo para sentir o vazio da existência. Nos filmes do italiano Lucio Fulci há essa mesma constatação niilista. Mas por se valer de meios “antinaturais” – histórias de zumbis, portais malignos, possessões e serial killers– para edificar sua poética, Fulci é menos óbvio e, sobretudo, menos "respeitável" que os demais. Geralmente associado ao cinema de gênero, de traço popular (da comédia no início da carreira, aos filmes de horror, passando pelos gialli e faroestes), ele é famoso pela maneira gráfica como filma eviscerações e toda sorte de mutilações. Porém, seu alcance é maior. Não apenas consolidou as bases criativas do que se convencionou chamar de cinema gore, como adicionou a esse subgênero rara inventividade e sofisticação. Pode parecer paradoxal que um cineasta capaz de rodar um homem sendo partido ao meio (Demonia) ou um jovem vomitando o próprio fígado (The City of the Living Dead) seja, em algum momento, sofisticado. No entanto, é. E, justamente, nas cenas mais extremas, tal o poder de fabulação de suas imagens.         

Ainda mais relevante para sua poética niilista - e o que o torna um autor acima de tudo - é a sua utilização do corpo. Se para Pier Paolo Pasolini, em sua trilogia da vida, o corpo é o locus do prazer, vestígio possível do sagrado entre os homens, que, mais tarde, converte-se em objeto, fetiche mercantil, mercadoria do “prazer” alheio (notadamente em Saló), para Fulci não há nada além do corpo. Em oposição a Robert Bresson, por exemplo, para quem o corpo é travessia, indício do invisível, do SOBREnatural, meio pelo qual se manifesta a graça (na primeira metade de sua obra) ou o mal (na fase final); para o diretor de The Beyond, o corpo é o fim. Talvez por isso, a obsessão em filmar o corpo mutilado, vegetativo, sem vida, a ponto de, num último grau de paroxismo, mostrar um corpo sendo literalmente moído (The Sweet House of Horrors). Em comum a todas essas imagens a falta de transcendência. É como se Fulci perscrutasse se existe algo além do corpo, quem sabe a alma...

Não por acaso, uma imagem recorrente nos filmes do cineasta italiano é a de um olho – “a janela da alma” – sendo perfurado. Ele filma o movimento até o fim, seja um graveto ou uma furadeira perfurando o globo ocular, e não encontra nada além do orgânico. É interessante observar como mesmo a presença do mal, a evocação do diabo ou de outros fenômenos próprios dos filmes de terror sempre têm uma manifestação corpórea nos filmes de Fulci. Na sua obra não existem espíritos ou ectoplasmas, somente corpos - mesmo após a morte. É difícil imaginar algo mais pessimista.

Para além das imposições comerciais, os filmes de zumbis de Fulci são prodigiosos em reforçar sua visão niilista, ao mostrar sem rumo, debatendo-se como moscas contra a janela, esses corpos sem alma. E quando se chega ao fim da longa estrada emThe Beyond, só há o vazio e corpos soterrados. Então, os dois protagonistas do filme, que escaparam às mutilações durante a trama, são encerrados em seus próprios corpos – e, novamente, são os olhos, que se acinzentam como barras de metal, a senha para a danação final. Não há alma, apenas uma prisão intransponível (o corpo) da qual, reforça Fulci, não é possível transcender. Metáfora da vida? Fulci, que morreu em março de 1996, já deve ter a resposta.       

 Adolfo Gomes          

Retirado do site: www.contracampo.com.br           

quinta-feira, 6 de julho de 2017

Cineclube da Cinemateca: "Pavor na cidade dos zumbis" de Lucio Fulci

Neste sábado, dia 8 de julho, às 16h, o Cineclube da Cinemateca apresenta "Pavor na cidade dos zumbis", dando continuidade ao ciclo Os zumbis de Lucio Fulci que contará ainda com "A casa do cemitério" (22/07). Sempre com entrada franca!

Cineclube da Cinemateca apresenta:
"Pavor na cidade dos zumbis" de Lucio Fulci
Após o suicídio de um padre na cidade de Dunwich, uma força maligna é libertada, abrindo os portões do inferno. Uma jovem médium descobre tudo isso, e com a ajuda de um jornalista procuram a cidade para terminar com tal mal. Estranhos acontecimentos desencadeiam desde a morte do padre, mas tudo só poderá ser resolvido antes da meia-noite do dia de Todos os Santos, caso contrário o mal será instalado sobre a terra.

Serviço:

8 de julho (sábado)
Às 16h
Na Cinemateca de Curitiba
(Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174 - São Francisco)
(41) 3321 – 3552
ENTRADA FRANCA

sábado, 1 de julho de 2017

Zombie, ou a desrazão

















Por Miguel Haoni       

O primeiro plano de Zombie (1979) de Lucio Fulci é um revólver apontado para a plateia. A ironia implícita no gesto remete ao grande projeto do autor: a destruição da racionalização que o público assume na fruição dos filmes. Não à toa, a única maneira de eliminar os zumbis que invadem seu universo é através da destruição de suas cabeças, que sempre simbolizaram a razão, a inteligência, a consciência e outros instrumentos insuficientes para a apreciação de seus filmes. É através desta destruição que os mortos-vivos e os espectadores se libertarão.   

O filme se estrutura sobre paradoxos: os casais simbolizam os limites entre o desespero assumido e a projeção de uma aparência de controle. Enquanto as mulheres são as primeiras a mergulhar no pesadelo, os homens representam os estertores de uma razão vacilante. Para isto o filme transita entre o sobrenatural e o científico. O personagem do Dr. Menard, por exemplo, através de todas as estratégias médicas tenta em vão dar conta dos fenômenos inexplicáveis. A invasão dos mortos-vivos é a materialização do impossível, o que exigiria dos personagens – que são ao mesmo tempo heróis no filme e representantes da platéia - o abandono das antigas regras e um mergulho na fé. Algo que um dos personagens não consegue alcançar, pois, no fim do filme, reencontrando sua mulher transformada em zumbi, ignora o fato e acaba sendo mordido. A não assimilação do absurdo inerente ao universo representa o seu fim.            

A acefalia e a bestialidade garantiriam a sobrevivência neste universo, pois é preciso que os personagens se tornem animais e percam o contato com sua humanidade para sair do labirinto infernal que os engendra. No ataque dos zumbis (cena central que será abordada mais adiante) os personagens trancam as portas e as janelas, tentando se proteger através da redoma da consciência deste “outro” invasor maligno, e ignoram o mal que habita o lado de dentro. No clichê dos filmes de zumbi, com o grupo encurralado, um a um dos personagens sobreviventes vão passando para o outro lado (o lado do diretor, do inexplicável e da poesia)[1] levando com eles as possibilidades de esperança de uma comunidade cada vez menor. Não existe escapatória.      

Neste sentido o drama se estrutura como um pesadelo. Os objetivos iniciais dos personagens, pensando na lógica causal da narrativa clássica, serão arbitrariamente abandonados de forma incoerente e aleatória, assegurando a inconsistência destas personas (que são feitas de matéria muito mais vaporosa do que se lhes poderia atribuir à primeira vista). A culminância desta espiral descendente é a impossibilidade de saída. Nova York dominada pelos zumbis é o último golpe da fábula sobre o Homem.            

Mas do que é feito o zumbi de Lucio Fulci? Em primeiro lugar é resultado do exacerbamento gráfico da violência no cinema, produto da apelação[2] que o filme de gênero (principalmente o de horror) encampa a partir dos anos 60. O gore, aqui, além da necessidade comercial, materializa também uma fé na beleza da abjeção. As tripas, miolos, sangue, vermes e excrementos possuem em si uma fabulação, uma dinâmica artesanal que nos convida (como no Inferno de Dante) a enxergar a beleza orgânica onde a tradição da sensibilidade se recusou a visitar. Nosso senso-comum associa muito gratuitamente o Belo às virgens, às estrelinhas do céu e aos campos floridos e – o pior – àquilo que se convencionou chamar de “bom-gosto”. Fulci não faz concessões a este maldito bom-gosto. Sua sensibilidade é selvagem, brutal e parte das entranhas, do sangue e da matéria que torna todos os homens criaturas frágeis e belas. Eis outro paradoxo fundamental: a beleza da música no filme é extraída exatamente de sua feiúra, assim como o trabalho dos atores. A canastrice, pastiche da tradição hollywoodiana, é deliciosamente coerente ao projeto, afinal o que anima os planos não são pessoas, mas sim criações, metáforas de pessoas. Porque deveria Fulci mascarar este fato? O gore, entretanto desenha aqui um duplo movimento: a busca pelo realismo mais impactante e um elogio ao nitidamente falso. Deste paradoxo Fulci extrai a sua energia: não apenas a assimilação do mundo fabricado, mas uma luta entre o mundo e o seu simulacro. Não apenas a “péssima” atuação, mas a fragilidade do ator e sua força material. Uma das cenas que melhor representa esta ambigüidade é a da luta entre o zumbi e o tubarão. O valor ontológico do encontro em quadro é amplificado pelos movimentos ralentados, absolutamente angustiantes. 

Os zumbis entram na narrativa, após o prólogo, através de uma embarcação à deriva na baía de Nova York, como uma barca do Inferno sem Caronte – aquele que na Divina Comédia faz o traslado dos pecadores entre o Limbo e o Inferno garantindo a manutenção dos dois domínios. A barca perdida representa o descontrole, a infiltração entre os universos, a queda do muro entre a Terra e o Inferno (tornado, portanto um espaço único). Os zumbis que surgem das águas ou de terrenos pantanosos materializam um indesejado retorno dos dejetos, de tudo que é reprimido, escondido nos níveis social e individual.

O curioso é que Fulci desfere o golpe da abjeção numa paisagem totalmente ensolarada, um paraíso tropical anti-idílico, do qual nos é negado qualquer vislumbre de beleza natural. Com a chegada da noite, contudo, chegam os zumbis para o seu último ataque. Enquanto as aparições individuais valorizavam a morosidade e a ineficácia das criaturas, o volume massificado no clímax do filme garante o seu valor de ameaça.[3]

A noite representa também a necessidade da iluminação artificial, algo já visto nas cenas internas filmadas em estúdio, e que insere o filme no domínio do diretor. A sofisticação da iluminação de Fulci nos claustros é o destaque, por exemplo, na cena doflashback, um retorno ao prólogo do filme, em que vemos a morte do pai de uma das personagens sob outros pontos de vista – com uma luz difusa, fantasmagórica, de um brilho adocicado – ou nas cenas da morte e do encontro com o cadáver da Sra. Menard. Fulci imprime uma beleza nos planos que muitas cenas de amor não conseguiram alcançar. 

Esta abertura à beleza nos conduz à apreciação de outras obsessões do realizador. A exploração da violência coabita no filme com a da sexualidade e do erotismo, esteja ela na força dos corpos nus ou na singeleza dos rostos. O tipo físico predileto de Fulci são os homens e mulheres loiros de olhos verdes. E através da profanação desta beleza ideal, Fulci alcança a essência de seu discurso: é preciso, antes de tudo, perfurar os belos olhos, estilhaçar as janelas para se alcançar o espírito. E o grande veículo para esta imersão é o domínio da linguagem cinematográfica.        

A câmera de Fulci, em seus permanentes zooms, é a materialização plena do que Alexandre Astruc denominou caméra-stylo.[4] Para ele a câmera serve à escrita de um cineasta como a caneta à escrita de um romancista. No fim, Zombie é a escrita de Fulci com a câmera sobre e através dos olhos de suas atrizes.

 
*Fragmento do texto “Deixai toda a esperança, ó vós que entrais: a poética do cinema de horror italiano”, originalmente publicado no livro Cinemas de Horror.       



[1] À maneira de Mario Bava, Fulci é um dos diretores que mais se identifica com o “lado mau”. Em seus filmes o sobrenatural e o maligno se confundem com a criação e o belo.

[2]
 Ou exploitation em inglês.

[3]
 Os zumbis representam na tradição cinematográfica uma das maiores críticas à sociedade de consumo e à cultura de massa, da qual, não inocentemente, cineastas como Fulci e George A. Romero são partícipes.

[4]
 Ver ASTRUC, Alexandre. “Nascimento de uma Nova Vanguarda: A Caméra-Stylo.” In: Nouvelle Vague/Org.: Luis Miguel Oliveira. Catálogo da Cinemateca Portuguesa.