segunda-feira, 30 de junho de 2014

2 anos de Cineclube Sesi: Ciclo Charlie Chaplin

Programação
03/07 - "O Garoto"
10/07 - "Tempos Modernos"
17/07 - "Monsieur Verdoux"
24/07 - "Um Rei em Nova York
31/07 - "A Condessa de Hong Kong"

Serviço:
Toda quinta
às 19h30
na Sala Multiartes do Centro Cultural do Sistema Fiep
(Av. Cândido de Abreu, 200, Centro Cívico)
ENTRADA FRANCA

Realização: Sesi 
Produção: Atalante

domingo, 29 de junho de 2014

3 textos sobre o cinema de horror italiano

Blood and black lace, de Mario Bava

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Sei Donne per l'Assassino, Itália/França/Alemanha Ocidental, 1964

Esta crítica é uma versão abreviada da original, presente no livro The Haunted World of Mario Bava. Editora: FAB Press (o livro pode ser comprado on-line pela fabpress.com)
SINOPSE:
Isabel, uma modelo na chique casa de moda Haute Couture, que é de propriedade da recente viúva Condessa Christina Cuomo e gerenciada por Massimo Morlacchi, é assassinada brutalmente por um assaltante desconhecido. A investigação subseqüente da polícia, representada pelo arrogante inspetor Sylvester, revela a casa como um verdadeiro antro de drogas, corrupção e chantagem. Quando se descobre que Isabella mantinha um diário que detalhava estas indiscrições, tudo é jogado em dúvida. Inicialmente o diário cai nas mãos de Nicole, que promete levá-lo à polícia, mas outra das modelos, Peggy, consegue tirá-lo de suas mãos sem que ela perceba. Mais tarde nessa noite, Nicole vai visitar seu amante Frank em seu antiquário; lá, ela é aterrorizada por sons estranhos e por sombras fugazes, mas antes que possa escapar, é atacada e morta por uma figura misteriosa vestida de preto.
Descobrindo que a jovem morta não mais possui o diário, o assassino foge do antiquário e sequestra Peggy em seu apartamento. Embora a menina estarrecida assegure ao assassino que queimou o diário, ele se recusa a acreditar, recorrendo assim à tortura. Quando remove a máscara do seu assaltante, revelando Massimo como o culpada, ela é forçada a pagar com sua vida.
Massimo havia previamente ajudado sua amante Condessa Christina a assassinar seu marido, mas quando Isabella descobriu o assassinato, o chantageou. Uma vez que suas demandas se tornaram demasiado elevadas, ele matou-a, sem perceber que ela tinha escrito tudo no diário. Agora que o diário e tudo que levava a seu conhecimento haviam sido eliminados, Massimo parece não ter nada a temer.  Entretanto, o inspetor é convencido de que o assassino está bem abaixo de seu nariz, resolvendo então colocar todos os homens ligados aos crimes atrás das grades. Em um movimento arrojado para afastar a suspeita de seu amante, a Coundessa Christina veste a roupa do assassino e mata uma outra modelo. De modo que este crime ocorre enquanto os homens estão na cadeia, eles obviamente não podem ser culpados, sendo assim liberados. Contudo Massimo está bem ciente de que não está ainda fora de perigo; ele instiga um plano astucioso para levar Christina à sua própria morte, dando ao mesmo tempo à polícia a impressão que ela era a maníaca procurada. O tiro sai pela culatra, entretanto, e os amantes culpados morrem nos braços um do outro.
CRÍTICA:
Concebido inicialmente pelos co-financiadores da Alemanha Ocidental como um thriller policial de rotina, no modo de Edgar Wallace, Sei Donne per l'Assassino representa um tremendo avanço no desenvolvimento do moderno filme de horror. É, de fato, discutivelmente o primeiríssimo filme slasher, embora esse rótulo diminua as conquistas de Bava por razões que se tornarão logo aparentes.
Neste filme, Bava retira a ênfase nas personagens e motivações psicológicas, criando desse modo uma literal sinfonia da violência em que ninguém é o que parece. No paranóico ambiente do filme, não se deve confiar em ninguém. Homens de negócio aparentemente respeitáveis revelam-se assassinos sádicos; todos os outros ou são seguros-de-si e intocáveis (por exemplo, o inspetor) ou traiçoeiros chantagistas. Desnecessário dizer que os espectadores em busca de um filme "pra cima" sobre pessoas felizes e maravilhosas não devem se arriscar. Bava usa sua câmera para que o público fisicamente tome parte na ação, sem encorajar contudo a simpatia do espectador com as personagens; por estas razões, muitos críticos continuam a vilipendiar Sei Donne, levando Bava a responder pela criação de uma celebração sem remorsos do sadismo.
Com bastante frequência, as personagens de Bava são marcados por sua incapacidade de amar. Em nenhum outro filme este conceito é mais aparente. Ainda que a maioria das personagens principais estejam envolvidas em relacionamentos, elas são demasiado travadas em seus próprios mundos para sentir realmente algo pelos outros. O estranho negociante do antiquário, Frank, por exemplo, gaba-se ao inspetor de que "não acredita em relacionamentos permanentes, exclusivos". E mais, ele parece genuinamente não afetado pelo fato que duas de suas amantes foram mortas selvagemente. Somente quando a polícia o considera suspeito das matanças que ele passa a demonstrar interesse em qualquer coisa além de sexo e drogas. Ao inspetor também falta qualquer paixão, mesmo aparentemente pelo seu trabalho; ele quase pode ser visto como uma paródia das figuras de autoridade da escola Joe Friday/DRAGNET: "just the facts, ma'am". Somente a Coundessa Christina exibe alguma emoção verdadeira, embora paradoxalmente esta conduza a sua desgraça. Seu amor por Massimo é completamente genuíno, de tal modo que não lhe deixa enxergar suas falhas e a compele a cometer atos hediondos para mantê-lo ao seu lado. Em contraste, Massimo é exclusivamente preocupado com posses: carros rápidos, roupas caras, o centro de moda, etc. É ele quem compele Christina a assassinar seu marido, permitindo-o controlar, desta forma, o negócio da moda. Finalmente, quando se cansa da Condessa, ele arruma friamente uma maneira de se dispor dela, utilizando-a como um bode espiatório para seus crimes. Em sua incapacidade de amar Christina, Massimo literalmente se destrói. Enquanto considera que pode usar qualquer um para obter o que quer, ele não leva a força e os recursos de Christina em conta. Christina é cegada totalmente por suas emoções -- não há nada que possa fazer para controlar isto -- mas, ironicamente, se Massimo tivesse investido ao menos algum amor genuíno em seu relacionamento, poderia provavelmente fugir à culpa de seus crimes; é a SUA impotência emocional que o destrói, não alguma fraqueza da parte de Christina.
Muitos filmes de Bava lidam com pseudo-aristocratas moralmente falidos, e Sei Donne não é nenhuma exceção. Christina tem a distinção do título: é uma condessa, e este título rende seu status social elitista.  Com sua classe social, naturalmente, vem o dinheiro -- aquilo que fornece as motivaçõess das personagens.  Da mesma maneira que a família de Menliff em The Whip and the Body se utiliza de sua "superioridade" social para se desligarem da sociedade, Christina habita um mundo de seus próprios desígnios. O Christian Haute Couture Salon é menos um negócio que um símbolo de benesses sociais; os vestidos/modas que ela ajuda a promover alinha-se com seu próprio bolso, permitindo que ela se aparte dos "comuns" de Roma. A óbvia desconfiança de Bava em tal gente privilegiada -- que deriva de sua desconfiança em julgar as pessoas por sua aparência -- vem a termo de maneira bem forte. Christina, peão que é no jogo de Massimo, é ainda uma assassina decepcionante. Quaisquer características simpáticas que ela possua derivam de sua incapacidade em encontrar o amor e a atenção das pessoas certas; ela é cercada por sicofantas que secretamente fofocam sobre ela e que, como no caso de Massimo, tramam tomar sua riqueza. Ainda mais reveladora é a personagem de Richard Morrell, um assim-chamado marquês que possui um título extravagante e pouco mais. Um palhaço, Morrell faz objeção a ser algemado pela polícia e orgulhosamente anuncia que, como um aristocrata, está acima de tal tratamento. Como Christina, Morrell vive também em ambientes muito "exclusivos": uma villa que é aparentemente assombrada pela sempre presente figura de um antigo retentor da família, de visual singularmente triste. Morrell é um sanguessuga que vive dos salários de sua atraente noiva Greta, uma das modelos da Coundessa Christina. É o medo de Morrell de que seus débitos a Isabella sejam descobertos, destruindo assim sua imagem como um playboy rico, que arremessa Greta na tragédia. A ironia da morte de Greta é que a Coundessa Christina, que já se utiliza da imagem da menina para promover seu negócio, usa sua morte como um álibe de ferro para a inocência de Massimo (ela é morta enquanto Massimo e Morrell debilitavam-se na cadeia). Com sua morte, o verdadeiro assassino é libertado, enquanto o imprestável Morrell é poupado de todo o embaraço. A sutil alegoria é que ela é um dos aristocratas imorais usando a mais acessível, "inferior" classe trabalhista para seus propósitos nefastos. A noção da elite excessivamente privilegiada, isolados do restante do mundo, saciando todos os seus caprichos, informa muitos outros filmes de Bava, incluindo Banho de Sangue e Lisa e il Diavolo (Lisa and the Devil) (ambos lidam com as figuras da Condessa/mãe super-protetora que tentam impedir que suas proles mentalmente aberrantes se espalhem), Il Rosso Segno della Follia (Hatchet for the Honeymoon), e Mata, Bebê, Mata. Esta idéia também está presente no primeiro western de Bava, La Strada per Fort Alamo (The Road to Fort Alamo), em que os colonizadores europeus são descritos como racistas ambiciosos, enquanto os assim chamados indesejáveis (os americanos nativos, os fora-da-lei) são mostrados de maneira mais humanista. A sugestão de Bava parece ser que a falta de contato com a realidade cotidiana é uma coisa perigosa, mesmo se o mundo de um modo geral está longe da perfeição (cf. Cani Arrabiati / Rabid Dogs).
Executado com uma perspicácia mórbida e repleto dos deslumbrantes toques estilísticos que tiveram tão profunda influência em Dario Argento e Martin Scorsese, Sei Donne representa uma etapa lógica na maturidade crescente de Bava como cineasta. Os recursos um tanto limitados dos gêneros do gótico e do peplum deixaram o diretor ansioso por tentar algo novo. Embora La Ragazza che Sapeva Troppo (The Girl Who Knew too Much) tenha permitido que ele deixasse pra trás as armadilhas artificiais do filme de época, ele ainda sofre de certa falta de maturidade -- pode ser o primeiro giallo, mas é um giallo incerto. Em As Três Máscaras do Terror, o diretor deu um passo no sentido correto com o segmento "Il telefono" (seu segundo thriller com ambientação contemporânea), mas Sei Donne permanece o primeiro exemplo verdadeiramente sanguinolento do giallo. É um filme de tal crueldade sem remorsos e cinismo amargo que agitou o gênero em seus próprios fundamentos. Mesmo se não é o melhor thriller a sair da Itália (esta honra pertence a Prelúdio para Matar, 1975 de Dario Argento), é um exemplo compendioso do que fascina os conhecedores no trabalho de Bava, e do que outros consideram estar faltando, ou do que consideram simplesmente ofensivo.
Visualmente falando, Sei Donne é uma dos filmes mais bonitos de Bava: não há um único plano que não pareça positivamente reluzir. Ainda que criticado pela inconsistência por Maitland McDonagh em BROKEN MIRRORS/ BROKEN MINDS: THE DARK DREAMS OF DARIO ARGENTO, não há nada descuidado no visual do filme. Antecedendo os massacres engenhosamente coreografados de Argento por diversos anos, Bava não deixa escapar nenhuma oportunidade de dar plena vazão a sua imaginação nada convencional. Uma mulher tem seu rosto repetidamente esmagado de encontro ao tronco de uma árvore; o rosto de uma outra jovem é rasgado em pedaços por uma luva de metal laminada (ecos da sequência de abertura de A Maldição do Demônio), e uma outra vítima é escaldada à morte por uma fornalha em brasa. A sedutora encenação de Bava e seu uso impecavelmente orquestrado da cor emprestam a estas cenas uma beleza perturbadora; Hitchcock pôde ter sido pioneiro no aspecto auto-analítico, voyeurístico do cinema, mas Bava foi o primeiro a confrontar clamorosamente a mórbida obsessão do público com a violência. A violência é intensa, distante de qualquer coisa em Psicose de Hitchcock (1960) ou em Peeping Tom de Michael Powell (1960), mas dificilmente há qualquer sangue derramado. A cor vermelha, irrevogavelmente associada a atos de violência por razões óbvias, é predominante na paleta de cores doces de Sei Donne, dos telefones e dos adornos vermelhos do Haute Couture Salon ao batom e esmalte que adorna os corpos das modelo-vítimas; a consciência culpada de Massimo é reafirmada em sua vestimenta com manchas carmesins. Este uso da cor não é hiperbólico, mas antes serve como uma representação simbólica da narrativa manchada de sangue.
O uso direção de arte por Bava fornece o particular impacto de Sei Donne. A idéia mesma de ambientar um violento thriller de assassinato nos confins de uma casa de moda é um conceito deliciosamente irônico, estabelecendo imediatamente um conflito inquietante entre a ação e o ambiente.  Superficialmente, o Haute Couture Salon representa um patamar de beleza e cultura -- é aqui que os pessoas vão para se embelezar -- mas, uma vez mais, as coisas raramente são o que aparentam no universo de Bava: para dizer o mínimo, a corrupção que se esconde por trás desta exterioridade prova ser destrutiva e mortal. Com seu sempre critativo uso de cor e sombras, Bava empresta ao Salon um visual ao mesmo tempo sinistro e belo. Da mesma maneira que o diretor encontra beleza nos vários assassinatos que percorrem a narrativa, a ambientação logra ser tanto perturbadora quanto agradável ao olhar.
Em uma crítica bastante laudatória de Sei Donne (cf. FANGORIA # 100), Tim Lucas comenta o ponto de vista "maturamente misógino" do filme, embora não há qualquer maneira de negar que as personagens masculinas são apresentadas muito desfavoravelmente. Não há heróis neste filme, e Bava não incentiva o espectador a simpatizar com ninguém. O assassino vestido em negro, sua face escondida com uma escarfa de seda branca, representa o lado mal de todo homem. Ao contrário de posteriores "assassinos em série" como Freddy Krueger, o assassino de Bava é apresentado sem qualquer personalidade. Parte da razão que o gênero do slasher tem recebido tanta crítica negativa é que, intencionalmente ou não, poucos cineastas apresentaram seus assassinos como figuras heróicas que seguem punindo pessoas merecedoras que, de uma forma ou de outra, tenham quebrado os códigos morais da sociedade. Bava nunca comete este erro.  Ao invés disso, ao provocar uma resposta estimulante do público durante as cenas do assassinato, Bava está encorajando o público não apenas a recuar e examinar seu próprio código moral, mas também a pensar no poder do visual. De um modo muito concreto, não-abstrato, Bava força o espectador a enxergar o incrível potencial do cinema de fazer mesmo os atos mais horripilantes parecerem perturbadoramente bonitos.
Mesmo se os filmes que inspirou (incluindo Haloween de John Carpenter, 1978, e Cabo do Medo de Martin Scorsese, 1991) não sejam, Sei Donne permanesce um filme de poder e substância, e um clássico em seu próprio direito.

Troy Howarth
Tradução de Fernando Verissimo
copyright do original: Troy Howarth
Reproduzido com autorização do autor

Elogio de um cinema feérico

No meio de um desfile de modas, uma das modelos precisa deixar o atelier para ir visitar seu companheiro, que telefona avisando que está mal da saúde. Estamos em Sei Donne per l'Assassino / Blood And Black Lace de Mario Bava. O espectador tem um privilégio de informação em relação à pobre moça: ele sabe que por ela espera um assassino que deseja realizar uma morte do tipo queima-de-arquivo (é como os assassinatos se seguem no filme). Quando a moça entra no estúdio e as luzes se apagam, assistimos ao provavelmente mais delirante e aberrante espetáculo de sombras e cores que a história do cinema tem a oferecer num filme com personagens, histórias e veiculação comercial. Com toda a tradição que surge dos primeiros filmes de Mario Bava, estamos diante de uma escola – que, se pensarmos como escola, é nos últimos quarenta anos a única do mundo – que deseja transformar um gênero cinematográfico reputado como menor (ao contrário do noir e do melodrama, o horror é ainda hoje alvo dos narizes em pé dos cinéfilos mais esnobes – e, adicionemos, cegos) num campo de pesquisa plástica que é definitivamente experimental.
Observemos bem Sei Donne per l'Assassino: não é como no cinema americano um registro para causar medo através da história nem como as produções britânicas da Hammer, que cativavam seus espectadores pela criação de climas soturnos e de uma elegância incomparável. A trama tecida pelo filme (e pela maioria das obras de Bava e de Argento, seu sucessor) não se encaminha para nenhum desses dois lados canônicos do cinema de terror, mas em direção a algo que só alguns dos grandes mestres conseguiram na história do cinema: para o prazer do olho, que é conseguido através da mestria da direção (enquadramento/luz/decupagem) e transforma um simples filme de ficção em pesquisa conceitual. Pertencem a esse hall infame cineastas como Alfred Hitchcock, Fritz Lang, Brian de Palma, Stanley Kubrick... A câmera desenha por si própria um filme mais interessante que o filme que se vê acompanhando a história e seguindo as motivações dos personagens.
No filme de Bava, não sabemos profundamente das motivações da moça que procura seu colega no estúdio, e tampouco nos questionamos por que os aposentos da casa são de tal forma excessivos. A quebra da verossimilhança é abissal, mas eis que estamos nós maravilhados e pedindo mais da inacreditável luz pisca-pisca que ilumina com tons de azul e rosa (!) os elementos de cenário da seqüência do filme, numa das cenas mais anti-naturalistas já filmadas dentro do esquema longa-metragem-industrial-de-ficção. Podemos igualmente falar de toda a seqüência inicial de Suspiria, que compreende uma chuva no aeroporto, uma perseguição à noite na floresta e um inigualável baile sangrento de montagem e cores que se termina com um objeto plástico tão disparatado quanto um ready-made de Duchamp: um rosto fendido ao meio por um vitral (David Lynch fará semelhante – homenagem? – em A Estrada Perdida). Pouco importa o porquê de a menina estar lá ou ser perseguida: o que importa é o resultado atingido, e atingido por meio dos meios de expressão do cinema, ou seja, a visualidade.
Disso deriva, talvez, a maior crítica que é feita a esses filmes: eles jamais se tornariam clássicos porque, apesar de um ou dois momentos geniais, essas obras não trariam histórias cativantes que prendessem o espectador, fazendo com que os filmes fiquem inócuos ou masturbatórios. Nessa crítica, que de fato se esquiva de entender a essência desse cinema, apenas um elemento a ser levado em consideração: o aprofundamente e a inteligibilidade das histórias. Pois é toda a natureza do giallo, subgênero preferido entre os diretores do horror italiano: um estilo de narrar uma intrincada história que entretanto dá muito mais atenção aos fluxos e aos rituais de assassinato do que às explicações psicológicas e à pretensa profundidade da alma humana (onde o maior exemplo seria o evidentemente superestimado O Silêncio dos Inocentes). Ao contrário, toda a graça do giallo reside na maneira como a lógica e a psicologia são relegadas ao mínimo necessário para em compensação o filme ganhar em clima, situações de terror e força de composição, de potência visual. Obviamente, a crítica mais comum ao terror italiano já está toda imbuída de uma visão preconcebida do cinema, e do cinema de terror americano dos anos 80 em particular (logo esse, que bebeu, diluiu e idiotizou – em parte – o cinema fantástico da Itália): verossimilhança, psicologismo funcional (o espectador tem que acreditar nos motivos dos assassino e das sensações das vítimas), fixação na fluidez narrativa e pouca atenção à plasticidade da imagem (pensemos na série Sexta-Feira 13 ou nas continuações de Halloween).
Das escandalosas e estetizantes iluminações de Mario Bava ao gore sofisticado e inventivo de Lucio Fulci passando pela exacerbação do giallo e pela loucura visual de Dario Argento, o cinema fantástico italiano recupera e mantém-se como o único gênero no mundo ainda a considerar o cinema como um suntuoso exercício de estilo destinado a, puramente pelos olhos e pelos ouvidos, espantar e maravilhar o espectador independente da história que se conta. Prazer especificamente cinematográfico (os outros terrores podem muito bem ser contados em livro) outrora disseminado na produção mundial – filme noir, realismo poético francês – e hoje cada vez menor em prol de um cinema de gênero puramente digestivo, ancorado nas vendas para a televisão e no todo-poderoso roteiro, geralmente sem qualquer invenção ou preocupação visual (pensemos nos três mais fortes gêneros de hoje, a comédia romântica, o terror e a comédia adolescente). Com o fim cada vez mais próximo da indústria do terror italiano – Argento é o único a filmar o gênero regularmente e aparentemente só há um continuador, Michelle Soavi –, morre também a última escola de cineastas que se educaram pela visualidade e pela criatividade na iamgem (a penúltima foi o celeiro de Corman: Dante, De Palma, Scorsese, Coppola...) e crescem cineastas que só se interessam pelo gênero enquanto algo camp, "trash" se se quiser. O cinema de terror foge do gênero "fantástico" para entrar nas raias de um cinema de suspense dependente demais dos roteiros. Enquanto isso, o poder de evocação que provém da tela no cinema fantástico hoje ainda pode ser encontrado em alguns diretores, como Carpenter ou Burton ou Amenábar, mas parece em vias de extinção.
"Cinema fantástico" na França tem um sinônimo: "féerique". Assim é tratado desde Méliès, o primeiro homem que realizou truques especialmente para a câmera. Feérico quer dizer relativo às fadas, aos contos de fadas. Logo, um mergulho nas teias de imaginação dos relatos de encantamento da infância, na liberdade de sonhar com palácios, inimigos monstruosos, heróis firmes e mocinhas lindas, mas antes de tudo um poder de imantação que nos transporta para um mundo outro, levemente diferente desse, mas onde ainda é possível sonhar com figuras improváveis, leis físicas diferentes, desaparições súbitas... Se há algo que unifique o cinema de, digamos, Georges Méliès, Jean Cocteau, de um lado, e Bava, Argento e Fulci, de outro, é a capacidade de fazer maravilhar através de um universo não pela verossimilhança e pela psicologia, mas sim pelo poder que as imagens trazem dentro de si. Não de fazer um cinema da diversão, mas de fazer com diversão um cinema do jogo.Uma confiança absoluta na força do cinema, a escola de terror italiano deveria muito honrosamente carregar solitária hoje esse brasão de uma criatividade radical, beirando o infantil (e garantindo um prazer respectivo, o de uma criança com seu brinquedo preferido), que acredita antes de tudo na pregnância e na capacidade de evocação da imagem. Qual brasão? O de digna representante do cinema feérico.

Ruy Gardnier

O medo e o estupor

A retrospectiva dedicada a Mario Bava (1914-1980) pela Cinemateca Francesa, também co-editora de uma preciosa coletânea de textos sobre o mestre italiano, permite hoje uma análise mais confiável. Como seus filmes saíam em Paris sempre nas mesmas salas, todas associadas ao filme de terror – Atlas e Midi Minuit incluídas –se poderia pensar que Bava, durante os vinte anos de sua carreira de diretor (1960-1980), tivesse sempre realizado o mesmo filme, à exceção de alguns westerns ruinzinhos, e que ele era homem de um só gênero...assim como Matarazzo, Leone ou Jacopetti, que realmente só se sentiam à vontade no melodrama, no western ou no documentário-espetáculo.
Na verdade, colar uma só etiqueta na obra de Bava se revela coisa difícil, a marca do Fantástico não se encaixando nem na Menina que Sabia Demais, nem em Banho de Sangue, que se situa na realidade contemporânea, sem pegar emprestado nem ao passado, nem ao futuro, nem ao sobrenatural. A marca do Terror, da qual fazem parte, de certa forma, esses dois filmes, só podendo ser atribuída a Perigo: Diabolik, reconstituição muito divertida de uma história em quadrinhos de sucesso, e nem mesmo – por causa de seu título – à Terrore nelle spazzio, inteiramente marcado pela frieza e especulações futuristas.
Dois gêneros, portanto, são utilizados alternativamente, o fantástico e o terror.
Mas estará o medo, que faz figura de marca de fábrica (vejam esses títulos : I tre volti della paura, Operazzione paura ["as três faces do medo", "operação medo", traduzidos no Brasil como As Três Máscaras do Terror e Mata, Bebê, Mata, n.d.e.]), realmente no encontro? As ações se revelam inverossímeis demais. Personagens e atores são freqüentemente inexistentes1. Pode-se temer, então, pela vida de personagens inconsistentes, que deixam a identificação impossível, e que não se podem distinguir uns dos outros. Em O Planeta dos Vampiros, raramente se vêem os rostos e os corpos dos atores, dissimulados atrás de suas roupas de astronautas. O medo, se ele existe, aparece unicamente durante aqueles poucos segundos que passam entre a primeira visão da arma do crime – de preferência gilete ou canivete – e a visão realmente gore do corpo odiosamente mutilado. Dois filmes, no entanto, procuram uma angústia quase contínua: A Menina que Sabia Demais, por causa da protagonista perseguida permanentemente, situada no quadro realista, à qual não podemos nos identificar, e, principalmente, por causa da impossibilidade de não sabermos nem de onde, nem como, nem por que pode surgir o perigo. E também Banho de Sangue, pois a acumulação estupefaciente dos quinze assassinatos repartidos em todo o filme cria, além do medo pontual que mencionei (causado mais pela particularidade visual atroz da morte que pela morte em si, que sabemos inevitável, já que o hábito ajuda), uma impressão de mal-estar e de enjôo contínuos.
Pode parecer surpreendente que o humor seja consubstancial ao medo. Em Banho de Sangue, onde se ri a cada clímax sangrento, com mais intensidade ainda quando o crime é atroz. Tem nesse riso ao menos quatro razões:
1. Reação frente à inverossimilhança das situações.
2. Expressão de uma necessidade de recuo, de distanciamento em relação à acumulação macabra.
3. Presença de um humor que escorre do comportamento dos personagens: depois de ter visto o homem agonizante se arrastar longos minutos sobre o chão, a mulher o interroga: "Mas tu estás ferido?". Ou ainda, intrusão cômica de uma figura codificada estranha ao gênero do terror, a menina que vê emergir da baía o corpo de seu pai, com polpa no rosto: "Mas é meu pai..."
4. Apreciação admirativa de invenção refinada na escolha de armas mortíferas, a cada assassinato diferente uma das outras.
Banho de Sangue aparece, aliás, como a obra-prima de Bava. Ele impõe ao espectador uma dinâmica irremediável fundada no assassinato, e que releva o cinema mais puro, na medida que não deve nada, nem ao roteiro, nem as ações – nada compreensíveis, por sinal – nem ao sentido, nem aos personagens, nem aos atores. Um cinema, uma lógica que funciona unicamente por ela mesma, sem bengalas, da qual não se encontra equivalente na arte fílmica, e que mergulha o público no estupor admirativo.
O mesmo estupor é acentuado pela utilização do travelling ótico. Se fosse preciso encontrar um denominador comum ao cinema italiano posterior ao neo-realismo, seria a reflexão em cima do zoom, fundamental em cineastas tão diferentes quanto Rossellini (do qual Bava foi diretor de fotografia), Cottafavi e Bava. Com Rossellini, otravelling ótico constitui um apêndice ao movimento lateral da dolly, criador de vida, de respiração interna, de fluidez, de peso existencial, o oposto total da utilização essencialmente dramática que descobrimos nos outros dois mestres peninsulares. Curiosamente, Bava retoma freqüentemente a figura-mãe do zoom cottafaviano, o brusco movimento antes seguido illico de um movimento traseiro não menos rápido. Mas, enquanto que com Cottofavi, como por exemplo em Uma Donna Libera 2, o efeito é muito raro – o cineasta se permite de usá-lo não mais do que duas ou três vezes por filme – criando um clima excepcional chocante pela sua raridade e pela sua natureza contraditória, Bava, por sua vez, se serve dele até o abuso. O zoom é sua imagem de marca mais do que a escolha de um gênero.
Aqui, o zoom se revela criador, não de vida, mas de medo. Essa equivalência torna-se tão institucional que, logo que entra um zoom, ou um duplo zoom, ficamos com medo, mesmo que o objeto filmado não tenha nada de aterrorizante. É o procedimento técnico que, por ele mesmo, suscita medo, como um reflexo pavloviano...E Bava se diverte em nos enganar, em nos orientar com pistas falsas.
Eu detesto filmes que se apóiam no travelling ótico. Eu gosto quando tem um ou dois por filme, ainda assim justificados e eficazes. Porém, quanto mais eu avanço na carreira de Bava, mais os encontro, e mais percebo que funcionam. Eu não contei, mas deve ter mais de cem no estupefaciente Lisa e o Diabo, infinitamente mais apaixonante que as faixas da metade da década de sessenta, que tinham duas ou três vezes menos. É o meio-termo, a justa (a injusta) medida que não funciona. Chegamos a um delírio, a uma orgia, uma vertigem gratuita (lembrando o admirável O Arquivo Confidencial de Sidney Furie) que nos levam, ligados a todo um arsenal de artifícios formais que visam a confundir o verdadeiro com o falso, o ator e a boneca, o sonho e a realidade. Uma reavaliação do cinema 3, e ao mesmo tempo a sua afirmação lírica pela importância do movimento que anima o filme.
Mas tudo isso se encontra hoje ameaçado pelo tempo: raramente projetados, mostrados por difusores quebrados ou pouco exigentes, as cópias dos Bavas são reduzidas a uma dominante rosa ou liga de vinho em todos pontos contrárias ao negativo original. O enorme trabalho de Bava, que conseguia fazer esquecer a falta de recursos, se encontra hoje destruído pelo apodrecimento da cor, que deixa o resultado envelhecido, brega, pobre. Os italianos dedicam toda sua atividade em favor da preservação de obras acadêmicas que não interessam a ninguém, como as de Genina, Camerini, Gallone ou Bolognoni, que não tiveram a ocasião de trabalhar a cor ou nem tentaram. Enquanto que, no sentido de conservação e preservação, não existe no mundo tarefa mais urgente que a consideração pela obra de Bava, onde a cor é essencial, e que periga desaparecer insidiosamente da memória.

Luc Moullet
(publicado originalmente nos Cahiers du Cinéma a propósito de uma retrospectiva Mario BAva na Cinemateca Francesa, mencionada no início do texto)
tradução de Bolívar Torres

*Textos originalmente publicados em http://www.contracampo.com.br/

sábado, 28 de junho de 2014

The Whip and the Body, de Mario Bava


La Frusta e il Corpo, Itália/França,1963
Dellamorte Dellamore

O que persiste em Mario Bava, mais do que os outros cineastas discutidos nesta pauta, são certamente algumas imagens de predileção: uma figura sinistra aparecendo por detrás da janela (Boris Karloff em As Três Máscaras do Terror, Espartaco Santoni em Lisa and the Devil), suas adoradas donzelas tocando o piano durante a noite (Barbara Steele em A Maldição do Demônio, Daliah Lavi emThe Whip and the Body), a fixação por imagens duplas ou até mesmo pela questão da duplicidade (as bruxas Katia e Asa Wajda em A Maldição do Demônio, o médico que persegue a si próprio em dado momento de Mata Bebê Mata, todo o cast de Lisa and the Devil) e obviamente a beleza, a plasticidade inerente a todas elas. A impressão que se tem é que a partir destas cenas - e não o contrário - o cineasta organiza seus enredos, e que inclusive seus temas de predileção (em especial a ligação quase sempre inevitável entre paixão e morte) surgem da força de um específico imaginário visual traçado em seus filmes.
Se em A Maldição do Demônio o cineasta reúne uma série de modelos já existentes na cinematografia de gêneros (a elegância e o classicismo presentes nos filmes da inglesa Hammer; a criação exagerada de climas oníricos como em Jacques Tourneur e Jean Cocteau; a ambientação em estúdio dos filmes da década de 30 daUniversal), em As Três Máscaras do Terror percebe-se uma tentativa de agrupar no formato do filme em episódios (tão comum quanto particular ao cinema italiano nas décadas de 60 e 70) um padrão ou uma idealização do que poderia ser um terror única e essencialmente italiano. São sem dúvida dois belíssimos e especialmente importantes filmes na obra de seu diretor, porém de alguma maneira ambos parecem almejar um patamar de filme-sumário/filme-testamento que apenas Whip, desta primeira fase de Bava, de fato alcança como um todo.
Contratado pelos produtores para realizar um rápido veículo de horror estrelado pelo ícone Christopher Lee (o Conde Drácula dos filmes de Terence Fisher), Bava fez de Whip menos um exercício narrativo que um complexo e extremamente arrojado delírio visual em cima dos temas e das imagens mais marcantes de outros filmes. Já no início, quando o castigado universo familiar de A Maldição do Demônio e do episódio Il Wurdalak de As Três Máscaras do Terror se constrói diante de nossos olhos, sabemos estar em território unicamente Baviano. O crédito de abertura - letras amarelas por cima de uma cortina vermelha esparramada pela tela -, acompanhado pelo sensacional tema composto por Carlo Rustichelli, de certa forma prenuncia que algo de muito interessante está por vir. Porém, ao mesmo tempo em que satisfaz as expectativas visuais de quem já conhece o cinema de Bava, Whip choca com sua crueza. Pois se trata certamente do filme mais físico do cineasta, um dos poucos onde os atos de violência praticados pela figura opressora - aqui as chicotadas que Christopher Lee desfere em Daliah Lavi - adquirem um impacto emocional mais direto junto ao espectador, em grande parte por Bava despir tais cenas dos artifícios conferidos em outros filmes a seqüências deste gênero. Não vemos aqui a artificialização da cenografia como em Blood and Black Lace, Perigo: Diabolik ouBanho de Sangue - que por conta de suas impressionantes dimensões ajudam a tornar fácil um distanciamento das ações que nelas ocorrem - nem os jogos de luzes, nevoeiros e sombras presentes em Mata Bebê Mata e O Planeta dos Vampiros: tudo o que Bava tem à sua disposição são um chicote, seus dois atores e uma praia. O que é retirado de recursos tão miseráveis são alguns dos momentos mais intensamente belos de sua obra: o cenário poético envolve perfeitamente as cenas de sadomasoquismo protagonizadas por Kurt (Christopher Lee) e Novenka Menliff (Daliah Lavi), cada chicotada repercutida na aspereza da ambientação ou nas bizarras expressões dos personagens.
Se por um lado é Il Wurdalak que Bava parece mais ter em mente, especialmente nas cenas em que um já falecido Kurt retorna do além-túmulo para convencer sua amada Novenka de que a junção na morte conservará para sempre a paixão de ambos, são certamente as imagens marcantes de A Maldição do Demônio que o cineasta quer recriar aqui: uma mão que parece abandonar os limites da tela e querer nos agarrar; uma cena de beijo onde um Christopher Lee iluminado por verdes e azuis saturados engole a câmera; as cavalgadas pela praia que dão início ao filme, onde acompanhamos o percurso que Kurt Menliff toma para retornar à família da qual foi expulso; e as melancólicas passagens na mesma praia onde Novenka se põe a fitar o mar quando percebe que não tem como controlar seu desejo por Kurt. São cenas que não apenas marcam profundamente nossas percepções mas que também reforçam nossa relação com o assunto que Bava explora neste filme: o amor que para existir precisa matar, não por ser doentio mas por ser levado às últimas conseqüências, por ser voraz e por precisar ser saciado com a chama, com o ardor das paixões. Sabemos que a filha da governanta Giorgia se matou por adoração a Kurt, e veremos que o percurso traçado pelas vítimas neste filme não é tão diferente: por mais que Kurt tente estabelecer um desprezo por Novenka existe uma ligação impetuosa entre os dois que necessariamente irá levá-los - e ao pai de Kurt - às fatalidades que acabam com suas vidas. Os outros personagens apenas observam passivos, raivosos ou simplesmente incapazes deste amor (como nos casos de Christian, irmão de Kurt, e sua prima Katia, separados pelo forçado casamento de Christian com Novenka). Neste mundo de belas imagens que Bava nos oferece também são belas as emoções e as sensações proporcionadas: o tempo inteiro se ama um pouco, se sofre um pouco e se morre muito. "Do amor à morte", nos lembra Bava, antecedendo o Michele Soavi de Pelo Amor e Pela Morte como também o David Lynch do maravilhoso Mulholland Drive. Apenas um mestre consegue tornar noções tão distintas em uma única idéia, uma única imagem: o fogo que queima os restos mortais de Kurt na última cena do filme, unindo-o a Novenka por uma última vez enquanto seu chicote se desfaz em chamas.

Bruno Andrade
(texto original:
 http://www.contracampo.com.br/41/whipandthebody.htm)

quinta-feira, 26 de junho de 2014

Cineclube da Cinemateca: programação de julho

Programação:
05/07 - "O Alucinado", de Luis Buñuel
26/07 - "Memórias de um Assassino", de Bong Joon-Ho

Serviço:
sábados
às 15hs
na Cinemateca de Curitiba(Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174 - São Francisco)
(41) 3321 - 3552
ENTRADA FRANCA

Realização: Cinemateca de Curitiba e Coletivo Atalante

GEOMETRIA DA FORÇA


Simone Weil e Abel Ferrara (fragmentos)

O verdadeiro herói, o verdadeiro tema, o centro da Ilíada é a força. A força empregada pelo homem, a força que escraviza o homem, a força diante da qual a carne do homem diminui. Nessa obra, em todos os momentos, o espírito humano aparece modificado por suas relações com a força, como que varrido, tornado cego, pela própria força que ele imaginou que poderia controlar, deformado pelo peso da força a qual ele se submete. (...)

Definir força – é aquele x que transforma qualquer um que se submete a ela em uma coisa. (...) Ela o transforma num cadáver. Alguém esteve aqui, e no minuto seguinte não há absolutamente ninguém. (...) Da primeira propriedade [da força] (a capacidade de transformar um ser humano numa coisa pelo simples método de matá-lo) brota outra..., a capacidade de transformar um ser humano numa coisa enquanto ele ainda está vivo. Ele está vivo, ele tem uma alma; e, ao mesmo tempo, ele é uma coisa... E no que diz respeito à alma, que casa extraordinária a força encontra nela! Quem pode dizer o quanto custa, a cada momento, acomodar-se a essa residência, contorcer-se e curvar-se, quanto dobrar-se e enrugar-se são necessários para isso? Ela não foi feita para morar dentro de uma coisa; se ela o faz, diante da pressão da necessidade, não há um único elemento de sua natureza que não seja violentado...

Talvez todos os homens, pelo simples fato de nascerem, destinam-se a sofrer violência; ainda assim, esta é uma verdade para a qual a circunstância fecha os olhos dos homens. (...) Eles têm em comum uma recusa em acreditar que ambos pertencem à mesma espécie: os fracos não vêem relação entre si mesmos e os fortes, e vice-versa. (...) [Os fortes], empunhando o poder, não suspeitam do fato que as conseqüências de seus feitos vão finalmente retornar a eles. (...) [Mas eventualmente isso acontece, e] nada, nenhum escudo, pode manter-se entre eles e as lágrimas.

Essa retribuição, que tem um rigor geométrico, que opera automaticamente para penalizar o abuso da força, foi o tema principal do pensamento grego. É a alma do épico. (...) Para os pitagóricos, para Sócrates e para Platão, foi o ponto de partida da especulação sobre a natureza do homem e do universo. (...) Nos países orientais que estão impregnados pelo budismo, é talvez essa idéia que tem existido sob o nome de karma. (...) O Ocidente, entretanto, perdeu isso, e nem tem mais uma palavra para expressá-lo em nenhuma de suas línguas: concepções de limite, medida, equilíbrio, que deveriam determinar a conduta de vida são, no Ocidente, restritas a uma função servil no vocabulário de técnicos. Nós somos apenas geômetras da matéria; os gregos eram, mais do que tudo, geômetras em seu aprendizado da virtude...

Assim, a violência oblitera qualquer um que sinta seu toque. Ela parece tão externa àquele que a emprega quanto ao que dela é vítima. E daí brota a idéia de um destino diante do qual tanto o executor quanto a vítima encontram-se igualmente inocentes. (...), irmãos na mesma miséria. (...)

A amargura [da 
Ilíada] é a única amargura justificável, pois ela brota das sujeições do espírito humano à força, ou seja, em última análise, à matéria. Essa sujeição é o que une a todos. (...) Ninguém na Ilíada é poupado dela, assim como ninguém na Terra. (...) O sentido da miséria humana é uma pré-condição da justiça e do amor... Apenas aquele que mediu o domínio da força, e sabe como não respeitá-la, é capaz de amor e justiça.

Aqueles que crêem que o próprio Deus, desde que se tornou humano, não pôde manter a severidade de seu destino diante de seus olhos sem tremer de angústia, deveriam entender que as únicas pessoas que podem parecer que se elevam acima da miséria humana são aqueles que mascaram a severidade do destino de seus próprios olhos com a ajuda da ilusão, da embriaguez ou do fanatismo. Ninguém que não esteja protegido pela armadura de uma mentira pode sofrer a força sem ser atingido até a alma por ela. A graça pode prevenir que esse sopro nos corrompa, mas não pode prevenir a ferida.

Simone Weil, "A Ilïada ou O poema da força". Escrito em 1939, a propósito da iminente guerra. Assinado com um anagrama, Émile Novis, porque um judeu não podia ser publicado
1.

* * *
Enigma do Poder

Depois de O Rei de Nova York, as emoções e o sangue que anteriormente esperávamos de um realizador de filmes de exploração retrocedem para uma simbologia sugestiva, ou deslocam-se inteiramente para fora da cena. Enigma do Podertem tão pouca "ação" de qualquer tipo, que a verdadeira trama torna-se algo a ser descoberto em repetidas visões do filme. Nós nunca vemos as cenas pelas quais estamos esperando, Sandii seduzindo Hiroshi, seu seqüestro, sua morte. Ferrara as eliminou. O que vemos são apenas os momentos humanos entre os eventos, o que acontece nas mentes das pessoas, e aqui também os momentos chave podem desaparecer, já que passam por um instante pelo rosto de alguém, e só posteriormente são turvamente compreendidos. Esse não é um filme apto a satisfazer qualquer um na primeira visão. Como acontece com Ferrara, parece haver muito menos coisa acontecendo do que realmente há, porque ele corta cenas expositivas e explicações e o diálogo é freqüentemente incoerente, e porque nós, enquanto tentamos procurar aquilo que não está lá, podemos perder aquilo que está. (Temos que criar um vazio para deixar a graça entrar.)

Ainda estamos nas planícies de Tróia, mas a guerra agora é apenas o set num estúdio; só existem três heróis, e sua geometria de força é internalizada. Enigma do Poder é um estudo de personagem, mas o aparente argumento é de tal forma um truque narrativo que talvez não possamos reconhecer qual é o personagem que é mais estudado.

Sinopse: Num futuro próximo, mega-corporações controlam o mundo, que vive tragado pela poluição. Hiroshi, um brilhante biólogo japonês, trabalha para a Maas e rejeita ofertas da Hosaka. Hosaka concorda em pagar a dois criminosos corporativos, Fox (Christopher Walken) e seu ajudante, X (Willem Dafoe), 100 milhões de dólares pela entrega de Hiroshi. Então eles contratam uma prostituta, Sandii (Asia Argento), para servir de isca para Hiroshi com "a única coisa que falta a ele: paixão". X começa a ensinar Sandii como "se apaixonar sem se apaixonar" para que ela consiga fisgar Hiroshi, mas ele mesmo acaba se apaixonando por ela, e ela, aparentemente, retribui. Sandii seduz Hiroshi, o seqüestro funciona, e depois sai pela culatra, quando a Maas solta um vírus que mata todos os biólogos de Hosaka. Sandii desaparece; Fox diz que ela se vendeu para a Maas. Hosaka culpa Fox e X. Fox se mata, e os agentes perseguem X de forma cada vez mais próxima. X passa os últimos vinte minutos do filme escondido num cubículo de aeroporto, o New Rose Hotel, relembrando cenas anteriores, masoquisticamente masturbatórias, e tentando descobrir se, por quê, ou quando Sandii entregou-se para a Maas.

Mesmo quando X reconhece os enganos de Sandii, ele não consegue parar de desejá-la. Isso está explícito na história original de William Gibson. E aparentemente esse foi o ponto que atraiu Ferrara quando ele leu o conto. ("Eu sabia que estava fodido. Porque era genial e eu sabia que tinha que fazer o filme.") No roteiro de Gibson e de Christ Zois, enquanto o helicóptero de Hosaka se aproxima, X delira: "Não posso te odiar, linda. Está tudo bem, linda. Vem aqui, por favor. Segura minha mão."
7

Mas o que está explícito para Gibson e Zois transpira uma dolorosa ambivalência em Ferrara. Na versão de Ferrara, X lembra-se de ver no passaporte de Sandii o cartão de computador que disparou o vírus. Mas é tão certeiro assim que Sandii de bom grado os traiu? E não seria culpa de X, já que ela não disse, na mesma noite, que eles deveriam esquecer sobre Hiroshi, que eles deviam fugir, casar e ter filhos, e ele não a mandou de volta para Hiroshi ao invés disso? Para sua morte?

Então o filme termina com X repetindo duas vezes, a primeira em sua cabeça, e depois num flashback para Sandii, enquanto ele se deita na cama ao lado dela, "Se você realmente quiser, nós vamos fugir, ou seja, esquecer sobre Hiroshi". E ela sorri. Isso aconteceu de fato? Ou trata-se apenas da fantasia de X sobre o que ele deveria ter dito?

E, qualquer uma das duas opções, isso teria verdadeiramente feito diferença? Sandii está sorrindo diante das palavras de X porque eles vão se casar? Ou porque ele caiu no jogo dela? Seu sorriso é doce? Ou vil?

A câmera sugere que a cena aconteceu, porque o sorriso de Sandii acontece fora da visão de X. E quanto mais meditamos a partir da evidência, incluindo aquele sorriso, mais percebemos que X ainda não aceitou o horror completo de tudo aquilo que ele percebeu, as dimensões da traição da Sandii. No momento que ela propõe casamento, ela já tem o cartão do computador, ela já consentiu com o assassinato de X; na verdade, ela inclusive já concordou em cometer assassinato em massa. Ela começou a mentir ainda antes de se encontrar com Hiroshi. (Primeiro seu pai era italiano e trabalhava para Hosaka. Depois de Hiroshi, seu pai é francês.) Ela se passa por uma prostituta barata, escondendo uma segunda identidade como uma aluna de doutorado (como Kathleen) – outro sinal de perigo que X encontra em sua bolsa e ignora. Ela pede a X que se case com ela para provocá-lo, torturá-lo, porque ele ressente-se de ela ter "chupado o pau de Hiroshi" – depois de ele mesmo ter treinado ela para fazê-lo. Ela não está com raiva, e fica imediatamente maternal, pela razão que X deseja acreditar, no entanto. Ela lhe dará o beijo de despedida poucas horas depois, com ele meio dormindo e ela partindo para chupar o pau de Hiroshi. Não foi à toa que Ferrara começou essa cena de cama com um barulho alto de trovão.

Sandii busca sexo indiscriminadamente, de forma insaciável. Para Gibson e Zois, ela destrói a Hosaka porque a Hosaka matou seu pai. Para Ferrara, ela não tem nenhuma motivação discernível, jamais, exceto o prazer pessoal. Fox estava certo. "Ela é uma apostadora", dizia ele. "Ensine ela a se apaixonar sem se apaixonar você mesmo", disse ele. "É pra já", respondeu X, enquanto, se afastava para dar uns amassos em Sandii com Fox olhando. A idéia para Sandii de uma boa saída noturna, em seu caso de amor com X, é levá-lo a um sex club onde ela o ignora e entra na orgia, enquanto ele observa masoquisticamente em silhueta negra, convencido de que ele é o cavaleiro e que ela é seu brinquedo.

Claro, ele é dela. Ele pensa que está "ensinando" a ela, quando ele faz com que ela sussurre "Hiroshi!", enquanto transa com ela. Mas ela está "praticando" nele. "Eu choraria, morreria, voaria por você" (com viagens da língua para dentro de sua boca). Para X, "Hiroshi" torna-se a terceira pessoa essencial ao amor romântico, a que cresce em rejeição, em geometrias triangulares de força, e Sandii usa os ciúmes de X para manipulá-lo. Para ela, não há rejeições, então ela pode se apaixonar sem se apaixonar. X não. "Você tem que ficar com a cabeça fria para se safar dessa", Fox tinha lhe alertado. Mas X não estava com a cabeça fria, e agora todos estão mortos, assim como ele brevemente estará também.

Fox e X constantemente subestimam Sandii, e essa é a razão pela qual ela os mata. É o jogo. Eles acham que ela está bastante aquém deles, um objeto de compra; eles são tolos. Eles não percebem a forma macho com a qual ela acende o cigarro, deixando-o em sua boca, como um pau, tão logo ela percebe que há um jogo a ser jogado. Fox tem hybris demais: ele tagarela que sua profissão "não é por dinheiro. É por ação! Não é fazer uma coisinha e pronto", mas ele não consegue perceber que Sandii sente da mesma forma e não tem necessidade de tagarelar. "Ela é uma verdadeira puta", alguém diz a ele. Não é uma falsa! É um jogo para cada um, chefes do tráfico e governos. Os campos de Tróia. A força reina em todos os lugares; não há mais boas intenções como as que o rei de Nova York ou o "mau policial" tinham. Agora somos todos vampiros de almas, sugaram nossos corpos. O filme começa com todos em luz vermelha ou sombra negra: estamos no inferno. A luz vermelha, como a chuva de Homero, cai em todos da mesma forma: apetite, luxúria, poder. "Não é apropriado a um cavalheiro ficar introspectivo", Fox declara. "Nós somos os lobos. De estepe. Isolados. Solitários, Concentrados. Você é o lobo perfeito: olhos gélidos, lábios arreganhados, costelas salientes. Faminto!"
8 E é o que ele parece: um lobo, um vampiro, gélido, perverso, totalmente egoísta, cruel. Ele até grunhe. É um choque quando ele sorri. Sua felicidade é diferente da minha? O prazer tem moralidade?

Fox é feio, repugnante. Sandii é bela, aconchegante, interessante, uma vampira mais interessante (e perigosa) do que qualquer dos vampiros anteriores de Ferrara, um tratamento mais interessante (e realista) do mal do que qualquer dos outros ensaios morais de Ferrara, porque ela é atraente. Ela deleita-se com carícias, com sexo animal, e nos faz querer juntar-se ao prazer dela – que será o de nos destruir. Os lobos machos esquecem o jogo; ela é apenas uma menina, um brinquedo. Fox chega a apontar para ela como um carro novo: "Esse foi meu toque de gênio! Olha só! Lá vamos nós!"

É por meio das vitórias aparentes de Fox, X e Hiroshi sobre ela que Sandii faz deles peões. Essa é a geometria da força. Como Hallie no geométrico O Homem Que Matou o Facínora, de Ford (The Man Who Shot Liberty Valance, EUA, 1962), Sandii destrói três homens no curso de sua conquista. Ela é um lobo melhor do que Fox ou X, porque ela gosta de ser um lobo. Ela sente prazer em ser uma prostituta. Ela adora ser uma dominatrix. X acha que está "ensinando-a" a se apaixonar sem se apaixonar, ela, a mestre da interpretação, a festa a fantasia que nunca termina. Suas aparições são uma série de papéis típicos, como Marlene Dietrich em Vênus Loira (Blonde Venus, EUA, 1932), de Joseph Von Sternberg: cantora, prostituta, doce moça da casa ao lado, rainha pornográfica, covarde, ninfomaníaca, virgem inocente, exibicionista, cientista, mãe, sedutora. Ela sempre batalha rumo ao topo: afundando X na piscina, subindo a escada, fodendo na cama, jogando o Grande Jogo. Em retrospecto, tudo fica claro: foi tudo decidido nos primeiros minutos, quando Fox chamou-a de tapada. "Caso você não tenha percebido", grunhiu ele, "você está morta, você apenas ainda não teve a percepção de deitar [como faria um lobo]." Acontece num instante, quando ela levanta os olhos e olha para ele. Juramento de vingança.

É possível que não vejamos isso. Mas é impossível não ver seu ressentimento. Ferrara filma emoções, não explicações para aquilo que as pessoas eventualmente fazem. Seu roteirista, Christ Zois, cita um desses exemplos (em seu comentário de DVD), reclamando que Ferrara cortou uma cena fora do sex clubmostrando que Sandii leva X contra a vontade dele. Na verdade a cena é clara, mas apenas se prestamos atenção na linguagem corporal. E também é claro o que a cena diz sobre a natureza do relacionamento "amoroso" deles, mas só se nós pensamos sobre as emoções; ou então, como Fox, vamos preferir acreditar, ao final, em nossa própria auto-desconfiança. Nós vamos ouvir sua voz nos sonhos de X – "Muitos meses atrás eu era tão bonita e adorável quando você me viu pela primeira vez... e eu estava de preto." Vamos perceber o egoísmo, a dominatrix; mas nós não compreenderemos.

Nós vamos observá-la, uma menininha na cama, dizendo "Sim! Sim! Quando eu voltar!" (depois que X diz que eles vão discutir casamento quando ela voltar de Hiroshi), e nós vamos preferir ouvir uma aceitação alegre ao sarcasmo sádico. (Kathleen, emThe Addiction, usa o mesmo tom quando ela tranqüiliza uma vítima desejada, "Claro, vou passar aqui.") E nós veremos o vil sorriso de Sandii ao fim do filme (inequivocamente vil no roteiro de Zois), e vamos preferir imaginar que ela é doce. "Imaginação", dizia Simone Weil, "é sempre o tecido da vida social e o motor da história. A influência das necessidades reais e compulsões, de materiais reais e interesses, é indireta porque a multidão nunca está consciente disso".
9

X saboreia os movimentos de Sandii, seu jeito e sua voz, até quando ele percebe seu cálculo letal. Opacidade é a tortura dela: nos deixa continuar nos enganando a nós mesmos. Será que ela está sempre jogando um jogo? Existe alguma autenticidade nela? Em alguém? X adere à dúvida para aderir a Sandii, para aderir ao amor, para aderir à humanidade, à lealdade, princípio, amizade, num mundo de arranha-céus disseminados, de um cinza sujo, podre de poluição, do qual nenhum deus ex machina chega para salvar desta vez, e a mais sangrenta vampira reina: Sandii. O masoquismo de X é a melhor esperança que Ferrara pode encontrar para redimir o mundo. O que dá uma certa glória a Sandii: uma glória na vitória, em satisfação sádica, como naIlíada quando Aquiles corta a garganta de uma dúzia de troianos na pira funerária de Pátroclo, ou a alegria de matar "Japas" nos filmes de Howard Hawks. Essa fêmea é claramente a escolha evolucionária para dominar neste mundo, em que o macho é uma figura ridícula, cujo desaparecimento é sua própria introversão (como em Raoul Walsh). Como Fox, Sandii rejeita a introspecção. Só a vitória. Existe heroísmo aí. Enigma do Poder insiste para que admiremos Sandii, assim como The Addiction insiste para que admiremos o vampirismo, My Lai, Hiroshima e Auschwitz. "Agora eu entendo como tudo isso foi possível!", exclama Kathleen.
***

Tag Gallagher
(Tradução de Ruy Gardnier)
(texto na íntegra: http://www.contracampo.com.br/86/artgeometriadaforca.htm)

terça-feira, 24 de junho de 2014

Cineclube Sesi: "Enigma do Poder" de Abel Ferrara

Nesta quinta-feira, dia 26, o Cineclube Sesi apresenta  "Enigma do Poder", encerrando o ciclo Abel Ferrara. Em julho o tema abordado no cineclube será Charlie Chaplin. 
Sempre com entrada franca!

Cineclube Sesi apresenta:  "Enigma do Poder", de Abel Ferrara

Em um futuro indefinido, dois espiões do mundo corporativo contratam uma prostituta italiana para seduzir o importante chefão de uma empresa japonesa e tirá-lo dos negócios, mas as coisas não saem conforme o imaginado

Serviço:
dia 26/06 (quinta)
às 19h30
na Sala Multiartes do Centro Cultural do Sistema Fiep
(Av. Cândido de Abreu, 200, Centro Cívico)
ENTRADA FRANCA
 

Realização: Sesi 
   
   (
http://www.sesipr.org.br/cultura/)
Produção: Atalante (http://coletivoatalante.blogspot.com.br/)

quinta-feira, 19 de junho de 2014

IMAGEM DO MÊS: BLACKOUT


Abel Ferrara, The Blackout, EUA, 1997

Durante a maior parte do tempo, Blackout é um filme sem chão. Poucas vezes aterrissamos em um terreno sólido aqui. Apenas deslizamos pelas imagens junto com o protagonista Matty (Matthew Modine). É provavelmente essa falta de chão que torna as quedas de Blackout tão fortes e tão violentas. A maior delas vem no fim, quando Matty se atira na escuridão do mar, como que tragado por um buraco negro. Talvez nunca em todo o cinema o mar tenha sido um elemento tão expressivo como aqui: um negrume espesso, o abismo onde o personagem se joga tentando encontrar a própria paz – qual paz, senão aquela do suicídio?

Voltemos um pouco ao início da cena. Primeiro, Matty rompe com sua esposa Susan (Claudia Schiffer). Eles brigam, Matty a abandona na beira da água, atirando-se no mar. Embora os planos ferrarianos sejam sempre dotados de uma força muito especial, este seria um desfecho relativamente comum, onde o personagem – observado pela mulher que o ama – marcha em direção ao horizonte, desaparecendo na paisagem e encontrando sua paz. Mas se há algo que Ferrara sempre fez em sua carreira foi justamente contornar as imagens-clichê. Seus filmes parecem sempre nos trazer imagens já conhecidas (dos gêneros, do cinema em geral), porém mostradas sob um outro ângulo, que retira delas a função arquetípica para revelar, nelas próprias, uma força oculta.

Então, a cena em questão se estende. Matty continua nadando. Ele atravessa o quadro em três planos sucessivos que criam uma certa estranheza. Mas eis que, no fim, há uma surpresa. Uma última da imagem surge sobre o negrume do mar em uma fusão. Como se estivéssemos diante de uma aparição, vemos o corpo nu da garçonete assassinada por Matty. Ao seu lado, o próprio Matty a contempla. Ele se inclina na direção daquele corpo irreal, como se quisesse tocá-lo, abraçá-lo. 

Por que nos dar ainda esta última imagem? O que fazem ali aqueles fotogramas perdidos logo antes dos créditos? A imagem reconcilia o personagem com seu fantasma. Ali, na imensidão do mar, provavelmente morto, Matty reencontra não apenas sua paz, mas a imagem perdida em sua memória (durante todo o filme, figura da garçonete não parece mais do que um delírio; o personagem é incapaz de se lembrar do crime que cometeu). Há um imenso gesto artístico, uma imensa poesia sobrenatural neste último plano. Para Ferrara, trata-se de uma crença, uma reivindicação. Se toda a questão do filme até então girava em torno do lugar concreto ocupado pelas imagens no nosso mundo, neste plano a imagem – artificial, inserida livremente – supera a realidade. É ela o que possibilita ao cineasta dar a seu personagem a chance de reconciliar-se. 

http://www.contracampo.com.br/98/imagens/bullet_seta.gif Calac Nogueira
(texto original: http://www.contracampo.com.br/98/pgblackout.htm)