domingo, 29 de junho de 2014

3 textos sobre o cinema de horror italiano

Blood and black lace, de Mario Bava

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Sei Donne per l'Assassino, Itália/França/Alemanha Ocidental, 1964

Esta crítica é uma versão abreviada da original, presente no livro The Haunted World of Mario Bava. Editora: FAB Press (o livro pode ser comprado on-line pela fabpress.com)
SINOPSE:
Isabel, uma modelo na chique casa de moda Haute Couture, que é de propriedade da recente viúva Condessa Christina Cuomo e gerenciada por Massimo Morlacchi, é assassinada brutalmente por um assaltante desconhecido. A investigação subseqüente da polícia, representada pelo arrogante inspetor Sylvester, revela a casa como um verdadeiro antro de drogas, corrupção e chantagem. Quando se descobre que Isabella mantinha um diário que detalhava estas indiscrições, tudo é jogado em dúvida. Inicialmente o diário cai nas mãos de Nicole, que promete levá-lo à polícia, mas outra das modelos, Peggy, consegue tirá-lo de suas mãos sem que ela perceba. Mais tarde nessa noite, Nicole vai visitar seu amante Frank em seu antiquário; lá, ela é aterrorizada por sons estranhos e por sombras fugazes, mas antes que possa escapar, é atacada e morta por uma figura misteriosa vestida de preto.
Descobrindo que a jovem morta não mais possui o diário, o assassino foge do antiquário e sequestra Peggy em seu apartamento. Embora a menina estarrecida assegure ao assassino que queimou o diário, ele se recusa a acreditar, recorrendo assim à tortura. Quando remove a máscara do seu assaltante, revelando Massimo como o culpada, ela é forçada a pagar com sua vida.
Massimo havia previamente ajudado sua amante Condessa Christina a assassinar seu marido, mas quando Isabella descobriu o assassinato, o chantageou. Uma vez que suas demandas se tornaram demasiado elevadas, ele matou-a, sem perceber que ela tinha escrito tudo no diário. Agora que o diário e tudo que levava a seu conhecimento haviam sido eliminados, Massimo parece não ter nada a temer.  Entretanto, o inspetor é convencido de que o assassino está bem abaixo de seu nariz, resolvendo então colocar todos os homens ligados aos crimes atrás das grades. Em um movimento arrojado para afastar a suspeita de seu amante, a Coundessa Christina veste a roupa do assassino e mata uma outra modelo. De modo que este crime ocorre enquanto os homens estão na cadeia, eles obviamente não podem ser culpados, sendo assim liberados. Contudo Massimo está bem ciente de que não está ainda fora de perigo; ele instiga um plano astucioso para levar Christina à sua própria morte, dando ao mesmo tempo à polícia a impressão que ela era a maníaca procurada. O tiro sai pela culatra, entretanto, e os amantes culpados morrem nos braços um do outro.
CRÍTICA:
Concebido inicialmente pelos co-financiadores da Alemanha Ocidental como um thriller policial de rotina, no modo de Edgar Wallace, Sei Donne per l'Assassino representa um tremendo avanço no desenvolvimento do moderno filme de horror. É, de fato, discutivelmente o primeiríssimo filme slasher, embora esse rótulo diminua as conquistas de Bava por razões que se tornarão logo aparentes.
Neste filme, Bava retira a ênfase nas personagens e motivações psicológicas, criando desse modo uma literal sinfonia da violência em que ninguém é o que parece. No paranóico ambiente do filme, não se deve confiar em ninguém. Homens de negócio aparentemente respeitáveis revelam-se assassinos sádicos; todos os outros ou são seguros-de-si e intocáveis (por exemplo, o inspetor) ou traiçoeiros chantagistas. Desnecessário dizer que os espectadores em busca de um filme "pra cima" sobre pessoas felizes e maravilhosas não devem se arriscar. Bava usa sua câmera para que o público fisicamente tome parte na ação, sem encorajar contudo a simpatia do espectador com as personagens; por estas razões, muitos críticos continuam a vilipendiar Sei Donne, levando Bava a responder pela criação de uma celebração sem remorsos do sadismo.
Com bastante frequência, as personagens de Bava são marcados por sua incapacidade de amar. Em nenhum outro filme este conceito é mais aparente. Ainda que a maioria das personagens principais estejam envolvidas em relacionamentos, elas são demasiado travadas em seus próprios mundos para sentir realmente algo pelos outros. O estranho negociante do antiquário, Frank, por exemplo, gaba-se ao inspetor de que "não acredita em relacionamentos permanentes, exclusivos". E mais, ele parece genuinamente não afetado pelo fato que duas de suas amantes foram mortas selvagemente. Somente quando a polícia o considera suspeito das matanças que ele passa a demonstrar interesse em qualquer coisa além de sexo e drogas. Ao inspetor também falta qualquer paixão, mesmo aparentemente pelo seu trabalho; ele quase pode ser visto como uma paródia das figuras de autoridade da escola Joe Friday/DRAGNET: "just the facts, ma'am". Somente a Coundessa Christina exibe alguma emoção verdadeira, embora paradoxalmente esta conduza a sua desgraça. Seu amor por Massimo é completamente genuíno, de tal modo que não lhe deixa enxergar suas falhas e a compele a cometer atos hediondos para mantê-lo ao seu lado. Em contraste, Massimo é exclusivamente preocupado com posses: carros rápidos, roupas caras, o centro de moda, etc. É ele quem compele Christina a assassinar seu marido, permitindo-o controlar, desta forma, o negócio da moda. Finalmente, quando se cansa da Condessa, ele arruma friamente uma maneira de se dispor dela, utilizando-a como um bode espiatório para seus crimes. Em sua incapacidade de amar Christina, Massimo literalmente se destrói. Enquanto considera que pode usar qualquer um para obter o que quer, ele não leva a força e os recursos de Christina em conta. Christina é cegada totalmente por suas emoções -- não há nada que possa fazer para controlar isto -- mas, ironicamente, se Massimo tivesse investido ao menos algum amor genuíno em seu relacionamento, poderia provavelmente fugir à culpa de seus crimes; é a SUA impotência emocional que o destrói, não alguma fraqueza da parte de Christina.
Muitos filmes de Bava lidam com pseudo-aristocratas moralmente falidos, e Sei Donne não é nenhuma exceção. Christina tem a distinção do título: é uma condessa, e este título rende seu status social elitista.  Com sua classe social, naturalmente, vem o dinheiro -- aquilo que fornece as motivaçõess das personagens.  Da mesma maneira que a família de Menliff em The Whip and the Body se utiliza de sua "superioridade" social para se desligarem da sociedade, Christina habita um mundo de seus próprios desígnios. O Christian Haute Couture Salon é menos um negócio que um símbolo de benesses sociais; os vestidos/modas que ela ajuda a promover alinha-se com seu próprio bolso, permitindo que ela se aparte dos "comuns" de Roma. A óbvia desconfiança de Bava em tal gente privilegiada -- que deriva de sua desconfiança em julgar as pessoas por sua aparência -- vem a termo de maneira bem forte. Christina, peão que é no jogo de Massimo, é ainda uma assassina decepcionante. Quaisquer características simpáticas que ela possua derivam de sua incapacidade em encontrar o amor e a atenção das pessoas certas; ela é cercada por sicofantas que secretamente fofocam sobre ela e que, como no caso de Massimo, tramam tomar sua riqueza. Ainda mais reveladora é a personagem de Richard Morrell, um assim-chamado marquês que possui um título extravagante e pouco mais. Um palhaço, Morrell faz objeção a ser algemado pela polícia e orgulhosamente anuncia que, como um aristocrata, está acima de tal tratamento. Como Christina, Morrell vive também em ambientes muito "exclusivos": uma villa que é aparentemente assombrada pela sempre presente figura de um antigo retentor da família, de visual singularmente triste. Morrell é um sanguessuga que vive dos salários de sua atraente noiva Greta, uma das modelos da Coundessa Christina. É o medo de Morrell de que seus débitos a Isabella sejam descobertos, destruindo assim sua imagem como um playboy rico, que arremessa Greta na tragédia. A ironia da morte de Greta é que a Coundessa Christina, que já se utiliza da imagem da menina para promover seu negócio, usa sua morte como um álibe de ferro para a inocência de Massimo (ela é morta enquanto Massimo e Morrell debilitavam-se na cadeia). Com sua morte, o verdadeiro assassino é libertado, enquanto o imprestável Morrell é poupado de todo o embaraço. A sutil alegoria é que ela é um dos aristocratas imorais usando a mais acessível, "inferior" classe trabalhista para seus propósitos nefastos. A noção da elite excessivamente privilegiada, isolados do restante do mundo, saciando todos os seus caprichos, informa muitos outros filmes de Bava, incluindo Banho de Sangue e Lisa e il Diavolo (Lisa and the Devil) (ambos lidam com as figuras da Condessa/mãe super-protetora que tentam impedir que suas proles mentalmente aberrantes se espalhem), Il Rosso Segno della Follia (Hatchet for the Honeymoon), e Mata, Bebê, Mata. Esta idéia também está presente no primeiro western de Bava, La Strada per Fort Alamo (The Road to Fort Alamo), em que os colonizadores europeus são descritos como racistas ambiciosos, enquanto os assim chamados indesejáveis (os americanos nativos, os fora-da-lei) são mostrados de maneira mais humanista. A sugestão de Bava parece ser que a falta de contato com a realidade cotidiana é uma coisa perigosa, mesmo se o mundo de um modo geral está longe da perfeição (cf. Cani Arrabiati / Rabid Dogs).
Executado com uma perspicácia mórbida e repleto dos deslumbrantes toques estilísticos que tiveram tão profunda influência em Dario Argento e Martin Scorsese, Sei Donne representa uma etapa lógica na maturidade crescente de Bava como cineasta. Os recursos um tanto limitados dos gêneros do gótico e do peplum deixaram o diretor ansioso por tentar algo novo. Embora La Ragazza che Sapeva Troppo (The Girl Who Knew too Much) tenha permitido que ele deixasse pra trás as armadilhas artificiais do filme de época, ele ainda sofre de certa falta de maturidade -- pode ser o primeiro giallo, mas é um giallo incerto. Em As Três Máscaras do Terror, o diretor deu um passo no sentido correto com o segmento "Il telefono" (seu segundo thriller com ambientação contemporânea), mas Sei Donne permanece o primeiro exemplo verdadeiramente sanguinolento do giallo. É um filme de tal crueldade sem remorsos e cinismo amargo que agitou o gênero em seus próprios fundamentos. Mesmo se não é o melhor thriller a sair da Itália (esta honra pertence a Prelúdio para Matar, 1975 de Dario Argento), é um exemplo compendioso do que fascina os conhecedores no trabalho de Bava, e do que outros consideram estar faltando, ou do que consideram simplesmente ofensivo.
Visualmente falando, Sei Donne é uma dos filmes mais bonitos de Bava: não há um único plano que não pareça positivamente reluzir. Ainda que criticado pela inconsistência por Maitland McDonagh em BROKEN MIRRORS/ BROKEN MINDS: THE DARK DREAMS OF DARIO ARGENTO, não há nada descuidado no visual do filme. Antecedendo os massacres engenhosamente coreografados de Argento por diversos anos, Bava não deixa escapar nenhuma oportunidade de dar plena vazão a sua imaginação nada convencional. Uma mulher tem seu rosto repetidamente esmagado de encontro ao tronco de uma árvore; o rosto de uma outra jovem é rasgado em pedaços por uma luva de metal laminada (ecos da sequência de abertura de A Maldição do Demônio), e uma outra vítima é escaldada à morte por uma fornalha em brasa. A sedutora encenação de Bava e seu uso impecavelmente orquestrado da cor emprestam a estas cenas uma beleza perturbadora; Hitchcock pôde ter sido pioneiro no aspecto auto-analítico, voyeurístico do cinema, mas Bava foi o primeiro a confrontar clamorosamente a mórbida obsessão do público com a violência. A violência é intensa, distante de qualquer coisa em Psicose de Hitchcock (1960) ou em Peeping Tom de Michael Powell (1960), mas dificilmente há qualquer sangue derramado. A cor vermelha, irrevogavelmente associada a atos de violência por razões óbvias, é predominante na paleta de cores doces de Sei Donne, dos telefones e dos adornos vermelhos do Haute Couture Salon ao batom e esmalte que adorna os corpos das modelo-vítimas; a consciência culpada de Massimo é reafirmada em sua vestimenta com manchas carmesins. Este uso da cor não é hiperbólico, mas antes serve como uma representação simbólica da narrativa manchada de sangue.
O uso direção de arte por Bava fornece o particular impacto de Sei Donne. A idéia mesma de ambientar um violento thriller de assassinato nos confins de uma casa de moda é um conceito deliciosamente irônico, estabelecendo imediatamente um conflito inquietante entre a ação e o ambiente.  Superficialmente, o Haute Couture Salon representa um patamar de beleza e cultura -- é aqui que os pessoas vão para se embelezar -- mas, uma vez mais, as coisas raramente são o que aparentam no universo de Bava: para dizer o mínimo, a corrupção que se esconde por trás desta exterioridade prova ser destrutiva e mortal. Com seu sempre critativo uso de cor e sombras, Bava empresta ao Salon um visual ao mesmo tempo sinistro e belo. Da mesma maneira que o diretor encontra beleza nos vários assassinatos que percorrem a narrativa, a ambientação logra ser tanto perturbadora quanto agradável ao olhar.
Em uma crítica bastante laudatória de Sei Donne (cf. FANGORIA # 100), Tim Lucas comenta o ponto de vista "maturamente misógino" do filme, embora não há qualquer maneira de negar que as personagens masculinas são apresentadas muito desfavoravelmente. Não há heróis neste filme, e Bava não incentiva o espectador a simpatizar com ninguém. O assassino vestido em negro, sua face escondida com uma escarfa de seda branca, representa o lado mal de todo homem. Ao contrário de posteriores "assassinos em série" como Freddy Krueger, o assassino de Bava é apresentado sem qualquer personalidade. Parte da razão que o gênero do slasher tem recebido tanta crítica negativa é que, intencionalmente ou não, poucos cineastas apresentaram seus assassinos como figuras heróicas que seguem punindo pessoas merecedoras que, de uma forma ou de outra, tenham quebrado os códigos morais da sociedade. Bava nunca comete este erro.  Ao invés disso, ao provocar uma resposta estimulante do público durante as cenas do assassinato, Bava está encorajando o público não apenas a recuar e examinar seu próprio código moral, mas também a pensar no poder do visual. De um modo muito concreto, não-abstrato, Bava força o espectador a enxergar o incrível potencial do cinema de fazer mesmo os atos mais horripilantes parecerem perturbadoramente bonitos.
Mesmo se os filmes que inspirou (incluindo Haloween de John Carpenter, 1978, e Cabo do Medo de Martin Scorsese, 1991) não sejam, Sei Donne permanesce um filme de poder e substância, e um clássico em seu próprio direito.

Troy Howarth
Tradução de Fernando Verissimo
copyright do original: Troy Howarth
Reproduzido com autorização do autor

Elogio de um cinema feérico

No meio de um desfile de modas, uma das modelos precisa deixar o atelier para ir visitar seu companheiro, que telefona avisando que está mal da saúde. Estamos em Sei Donne per l'Assassino / Blood And Black Lace de Mario Bava. O espectador tem um privilégio de informação em relação à pobre moça: ele sabe que por ela espera um assassino que deseja realizar uma morte do tipo queima-de-arquivo (é como os assassinatos se seguem no filme). Quando a moça entra no estúdio e as luzes se apagam, assistimos ao provavelmente mais delirante e aberrante espetáculo de sombras e cores que a história do cinema tem a oferecer num filme com personagens, histórias e veiculação comercial. Com toda a tradição que surge dos primeiros filmes de Mario Bava, estamos diante de uma escola – que, se pensarmos como escola, é nos últimos quarenta anos a única do mundo – que deseja transformar um gênero cinematográfico reputado como menor (ao contrário do noir e do melodrama, o horror é ainda hoje alvo dos narizes em pé dos cinéfilos mais esnobes – e, adicionemos, cegos) num campo de pesquisa plástica que é definitivamente experimental.
Observemos bem Sei Donne per l'Assassino: não é como no cinema americano um registro para causar medo através da história nem como as produções britânicas da Hammer, que cativavam seus espectadores pela criação de climas soturnos e de uma elegância incomparável. A trama tecida pelo filme (e pela maioria das obras de Bava e de Argento, seu sucessor) não se encaminha para nenhum desses dois lados canônicos do cinema de terror, mas em direção a algo que só alguns dos grandes mestres conseguiram na história do cinema: para o prazer do olho, que é conseguido através da mestria da direção (enquadramento/luz/decupagem) e transforma um simples filme de ficção em pesquisa conceitual. Pertencem a esse hall infame cineastas como Alfred Hitchcock, Fritz Lang, Brian de Palma, Stanley Kubrick... A câmera desenha por si própria um filme mais interessante que o filme que se vê acompanhando a história e seguindo as motivações dos personagens.
No filme de Bava, não sabemos profundamente das motivações da moça que procura seu colega no estúdio, e tampouco nos questionamos por que os aposentos da casa são de tal forma excessivos. A quebra da verossimilhança é abissal, mas eis que estamos nós maravilhados e pedindo mais da inacreditável luz pisca-pisca que ilumina com tons de azul e rosa (!) os elementos de cenário da seqüência do filme, numa das cenas mais anti-naturalistas já filmadas dentro do esquema longa-metragem-industrial-de-ficção. Podemos igualmente falar de toda a seqüência inicial de Suspiria, que compreende uma chuva no aeroporto, uma perseguição à noite na floresta e um inigualável baile sangrento de montagem e cores que se termina com um objeto plástico tão disparatado quanto um ready-made de Duchamp: um rosto fendido ao meio por um vitral (David Lynch fará semelhante – homenagem? – em A Estrada Perdida). Pouco importa o porquê de a menina estar lá ou ser perseguida: o que importa é o resultado atingido, e atingido por meio dos meios de expressão do cinema, ou seja, a visualidade.
Disso deriva, talvez, a maior crítica que é feita a esses filmes: eles jamais se tornariam clássicos porque, apesar de um ou dois momentos geniais, essas obras não trariam histórias cativantes que prendessem o espectador, fazendo com que os filmes fiquem inócuos ou masturbatórios. Nessa crítica, que de fato se esquiva de entender a essência desse cinema, apenas um elemento a ser levado em consideração: o aprofundamente e a inteligibilidade das histórias. Pois é toda a natureza do giallo, subgênero preferido entre os diretores do horror italiano: um estilo de narrar uma intrincada história que entretanto dá muito mais atenção aos fluxos e aos rituais de assassinato do que às explicações psicológicas e à pretensa profundidade da alma humana (onde o maior exemplo seria o evidentemente superestimado O Silêncio dos Inocentes). Ao contrário, toda a graça do giallo reside na maneira como a lógica e a psicologia são relegadas ao mínimo necessário para em compensação o filme ganhar em clima, situações de terror e força de composição, de potência visual. Obviamente, a crítica mais comum ao terror italiano já está toda imbuída de uma visão preconcebida do cinema, e do cinema de terror americano dos anos 80 em particular (logo esse, que bebeu, diluiu e idiotizou – em parte – o cinema fantástico da Itália): verossimilhança, psicologismo funcional (o espectador tem que acreditar nos motivos dos assassino e das sensações das vítimas), fixação na fluidez narrativa e pouca atenção à plasticidade da imagem (pensemos na série Sexta-Feira 13 ou nas continuações de Halloween).
Das escandalosas e estetizantes iluminações de Mario Bava ao gore sofisticado e inventivo de Lucio Fulci passando pela exacerbação do giallo e pela loucura visual de Dario Argento, o cinema fantástico italiano recupera e mantém-se como o único gênero no mundo ainda a considerar o cinema como um suntuoso exercício de estilo destinado a, puramente pelos olhos e pelos ouvidos, espantar e maravilhar o espectador independente da história que se conta. Prazer especificamente cinematográfico (os outros terrores podem muito bem ser contados em livro) outrora disseminado na produção mundial – filme noir, realismo poético francês – e hoje cada vez menor em prol de um cinema de gênero puramente digestivo, ancorado nas vendas para a televisão e no todo-poderoso roteiro, geralmente sem qualquer invenção ou preocupação visual (pensemos nos três mais fortes gêneros de hoje, a comédia romântica, o terror e a comédia adolescente). Com o fim cada vez mais próximo da indústria do terror italiano – Argento é o único a filmar o gênero regularmente e aparentemente só há um continuador, Michelle Soavi –, morre também a última escola de cineastas que se educaram pela visualidade e pela criatividade na iamgem (a penúltima foi o celeiro de Corman: Dante, De Palma, Scorsese, Coppola...) e crescem cineastas que só se interessam pelo gênero enquanto algo camp, "trash" se se quiser. O cinema de terror foge do gênero "fantástico" para entrar nas raias de um cinema de suspense dependente demais dos roteiros. Enquanto isso, o poder de evocação que provém da tela no cinema fantástico hoje ainda pode ser encontrado em alguns diretores, como Carpenter ou Burton ou Amenábar, mas parece em vias de extinção.
"Cinema fantástico" na França tem um sinônimo: "féerique". Assim é tratado desde Méliès, o primeiro homem que realizou truques especialmente para a câmera. Feérico quer dizer relativo às fadas, aos contos de fadas. Logo, um mergulho nas teias de imaginação dos relatos de encantamento da infância, na liberdade de sonhar com palácios, inimigos monstruosos, heróis firmes e mocinhas lindas, mas antes de tudo um poder de imantação que nos transporta para um mundo outro, levemente diferente desse, mas onde ainda é possível sonhar com figuras improváveis, leis físicas diferentes, desaparições súbitas... Se há algo que unifique o cinema de, digamos, Georges Méliès, Jean Cocteau, de um lado, e Bava, Argento e Fulci, de outro, é a capacidade de fazer maravilhar através de um universo não pela verossimilhança e pela psicologia, mas sim pelo poder que as imagens trazem dentro de si. Não de fazer um cinema da diversão, mas de fazer com diversão um cinema do jogo.Uma confiança absoluta na força do cinema, a escola de terror italiano deveria muito honrosamente carregar solitária hoje esse brasão de uma criatividade radical, beirando o infantil (e garantindo um prazer respectivo, o de uma criança com seu brinquedo preferido), que acredita antes de tudo na pregnância e na capacidade de evocação da imagem. Qual brasão? O de digna representante do cinema feérico.

Ruy Gardnier

O medo e o estupor

A retrospectiva dedicada a Mario Bava (1914-1980) pela Cinemateca Francesa, também co-editora de uma preciosa coletânea de textos sobre o mestre italiano, permite hoje uma análise mais confiável. Como seus filmes saíam em Paris sempre nas mesmas salas, todas associadas ao filme de terror – Atlas e Midi Minuit incluídas –se poderia pensar que Bava, durante os vinte anos de sua carreira de diretor (1960-1980), tivesse sempre realizado o mesmo filme, à exceção de alguns westerns ruinzinhos, e que ele era homem de um só gênero...assim como Matarazzo, Leone ou Jacopetti, que realmente só se sentiam à vontade no melodrama, no western ou no documentário-espetáculo.
Na verdade, colar uma só etiqueta na obra de Bava se revela coisa difícil, a marca do Fantástico não se encaixando nem na Menina que Sabia Demais, nem em Banho de Sangue, que se situa na realidade contemporânea, sem pegar emprestado nem ao passado, nem ao futuro, nem ao sobrenatural. A marca do Terror, da qual fazem parte, de certa forma, esses dois filmes, só podendo ser atribuída a Perigo: Diabolik, reconstituição muito divertida de uma história em quadrinhos de sucesso, e nem mesmo – por causa de seu título – à Terrore nelle spazzio, inteiramente marcado pela frieza e especulações futuristas.
Dois gêneros, portanto, são utilizados alternativamente, o fantástico e o terror.
Mas estará o medo, que faz figura de marca de fábrica (vejam esses títulos : I tre volti della paura, Operazzione paura ["as três faces do medo", "operação medo", traduzidos no Brasil como As Três Máscaras do Terror e Mata, Bebê, Mata, n.d.e.]), realmente no encontro? As ações se revelam inverossímeis demais. Personagens e atores são freqüentemente inexistentes1. Pode-se temer, então, pela vida de personagens inconsistentes, que deixam a identificação impossível, e que não se podem distinguir uns dos outros. Em O Planeta dos Vampiros, raramente se vêem os rostos e os corpos dos atores, dissimulados atrás de suas roupas de astronautas. O medo, se ele existe, aparece unicamente durante aqueles poucos segundos que passam entre a primeira visão da arma do crime – de preferência gilete ou canivete – e a visão realmente gore do corpo odiosamente mutilado. Dois filmes, no entanto, procuram uma angústia quase contínua: A Menina que Sabia Demais, por causa da protagonista perseguida permanentemente, situada no quadro realista, à qual não podemos nos identificar, e, principalmente, por causa da impossibilidade de não sabermos nem de onde, nem como, nem por que pode surgir o perigo. E também Banho de Sangue, pois a acumulação estupefaciente dos quinze assassinatos repartidos em todo o filme cria, além do medo pontual que mencionei (causado mais pela particularidade visual atroz da morte que pela morte em si, que sabemos inevitável, já que o hábito ajuda), uma impressão de mal-estar e de enjôo contínuos.
Pode parecer surpreendente que o humor seja consubstancial ao medo. Em Banho de Sangue, onde se ri a cada clímax sangrento, com mais intensidade ainda quando o crime é atroz. Tem nesse riso ao menos quatro razões:
1. Reação frente à inverossimilhança das situações.
2. Expressão de uma necessidade de recuo, de distanciamento em relação à acumulação macabra.
3. Presença de um humor que escorre do comportamento dos personagens: depois de ter visto o homem agonizante se arrastar longos minutos sobre o chão, a mulher o interroga: "Mas tu estás ferido?". Ou ainda, intrusão cômica de uma figura codificada estranha ao gênero do terror, a menina que vê emergir da baía o corpo de seu pai, com polpa no rosto: "Mas é meu pai..."
4. Apreciação admirativa de invenção refinada na escolha de armas mortíferas, a cada assassinato diferente uma das outras.
Banho de Sangue aparece, aliás, como a obra-prima de Bava. Ele impõe ao espectador uma dinâmica irremediável fundada no assassinato, e que releva o cinema mais puro, na medida que não deve nada, nem ao roteiro, nem as ações – nada compreensíveis, por sinal – nem ao sentido, nem aos personagens, nem aos atores. Um cinema, uma lógica que funciona unicamente por ela mesma, sem bengalas, da qual não se encontra equivalente na arte fílmica, e que mergulha o público no estupor admirativo.
O mesmo estupor é acentuado pela utilização do travelling ótico. Se fosse preciso encontrar um denominador comum ao cinema italiano posterior ao neo-realismo, seria a reflexão em cima do zoom, fundamental em cineastas tão diferentes quanto Rossellini (do qual Bava foi diretor de fotografia), Cottafavi e Bava. Com Rossellini, otravelling ótico constitui um apêndice ao movimento lateral da dolly, criador de vida, de respiração interna, de fluidez, de peso existencial, o oposto total da utilização essencialmente dramática que descobrimos nos outros dois mestres peninsulares. Curiosamente, Bava retoma freqüentemente a figura-mãe do zoom cottafaviano, o brusco movimento antes seguido illico de um movimento traseiro não menos rápido. Mas, enquanto que com Cottofavi, como por exemplo em Uma Donna Libera 2, o efeito é muito raro – o cineasta se permite de usá-lo não mais do que duas ou três vezes por filme – criando um clima excepcional chocante pela sua raridade e pela sua natureza contraditória, Bava, por sua vez, se serve dele até o abuso. O zoom é sua imagem de marca mais do que a escolha de um gênero.
Aqui, o zoom se revela criador, não de vida, mas de medo. Essa equivalência torna-se tão institucional que, logo que entra um zoom, ou um duplo zoom, ficamos com medo, mesmo que o objeto filmado não tenha nada de aterrorizante. É o procedimento técnico que, por ele mesmo, suscita medo, como um reflexo pavloviano...E Bava se diverte em nos enganar, em nos orientar com pistas falsas.
Eu detesto filmes que se apóiam no travelling ótico. Eu gosto quando tem um ou dois por filme, ainda assim justificados e eficazes. Porém, quanto mais eu avanço na carreira de Bava, mais os encontro, e mais percebo que funcionam. Eu não contei, mas deve ter mais de cem no estupefaciente Lisa e o Diabo, infinitamente mais apaixonante que as faixas da metade da década de sessenta, que tinham duas ou três vezes menos. É o meio-termo, a justa (a injusta) medida que não funciona. Chegamos a um delírio, a uma orgia, uma vertigem gratuita (lembrando o admirável O Arquivo Confidencial de Sidney Furie) que nos levam, ligados a todo um arsenal de artifícios formais que visam a confundir o verdadeiro com o falso, o ator e a boneca, o sonho e a realidade. Uma reavaliação do cinema 3, e ao mesmo tempo a sua afirmação lírica pela importância do movimento que anima o filme.
Mas tudo isso se encontra hoje ameaçado pelo tempo: raramente projetados, mostrados por difusores quebrados ou pouco exigentes, as cópias dos Bavas são reduzidas a uma dominante rosa ou liga de vinho em todos pontos contrárias ao negativo original. O enorme trabalho de Bava, que conseguia fazer esquecer a falta de recursos, se encontra hoje destruído pelo apodrecimento da cor, que deixa o resultado envelhecido, brega, pobre. Os italianos dedicam toda sua atividade em favor da preservação de obras acadêmicas que não interessam a ninguém, como as de Genina, Camerini, Gallone ou Bolognoni, que não tiveram a ocasião de trabalhar a cor ou nem tentaram. Enquanto que, no sentido de conservação e preservação, não existe no mundo tarefa mais urgente que a consideração pela obra de Bava, onde a cor é essencial, e que periga desaparecer insidiosamente da memória.

Luc Moullet
(publicado originalmente nos Cahiers du Cinéma a propósito de uma retrospectiva Mario BAva na Cinemateca Francesa, mencionada no início do texto)
tradução de Bolívar Torres

*Textos originalmente publicados em http://www.contracampo.com.br/

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