Blood and black lace, de Mario Bava
Sei Donne per l'Assassino, Itália/França/Alemanha Ocidental, 1964
Esta crítica é uma versão abreviada da original,
presente no livro The Haunted World of Mario Bava. Editora: FAB
Press (o livro pode ser comprado on-line pela fabpress.com)
SINOPSE:
Isabel, uma modelo na chique casa de moda Haute Couture, que é de
propriedade da recente viúva Condessa Christina Cuomo e gerenciada por Massimo
Morlacchi, é assassinada brutalmente por um assaltante desconhecido. A
investigação subseqüente da polícia, representada pelo arrogante inspetor
Sylvester, revela a casa como um verdadeiro antro de drogas, corrupção e
chantagem. Quando se descobre que Isabella mantinha um diário que detalhava
estas indiscrições, tudo é jogado em dúvida. Inicialmente o diário cai nas mãos
de Nicole, que promete levá-lo à polícia, mas outra das modelos, Peggy,
consegue tirá-lo de suas mãos sem que ela perceba. Mais tarde nessa noite,
Nicole vai visitar seu amante Frank em seu antiquário; lá, ela é aterrorizada
por sons estranhos e por sombras fugazes, mas antes que possa escapar, é
atacada e morta por uma figura misteriosa vestida de preto.
Descobrindo que a jovem morta não mais possui o diário, o assassino foge
do antiquário e sequestra Peggy em seu apartamento. Embora a menina estarrecida
assegure ao assassino que queimou o diário, ele se recusa a acreditar,
recorrendo assim à tortura. Quando remove a máscara do seu assaltante,
revelando Massimo como o culpada, ela é forçada a pagar com sua vida.
Massimo havia previamente ajudado sua amante Condessa Christina a
assassinar seu marido, mas quando Isabella descobriu o assassinato, o
chantageou. Uma vez que suas demandas se tornaram demasiado elevadas, ele
matou-a, sem perceber que ela tinha escrito tudo no diário. Agora que o diário
e tudo que levava a seu conhecimento haviam sido eliminados, Massimo parece não
ter nada a temer. Entretanto, o inspetor é convencido de que o assassino
está bem abaixo de seu nariz, resolvendo então colocar todos os homens ligados
aos crimes atrás das grades. Em um movimento arrojado para afastar a suspeita
de seu amante, a Coundessa Christina veste a roupa do assassino e mata uma
outra modelo. De modo que este crime ocorre enquanto os homens estão na cadeia,
eles obviamente não podem ser culpados, sendo assim liberados. Contudo Massimo
está bem ciente de que não está ainda fora de perigo; ele instiga um plano
astucioso para levar Christina à sua própria morte, dando ao mesmo tempo à
polícia a impressão que ela era a maníaca procurada. O tiro sai pela culatra,
entretanto, e os amantes culpados morrem nos braços um do outro.
CRÍTICA:
Concebido inicialmente pelos co-financiadores da Alemanha Ocidental como
um thriller policial de rotina, no modo de Edgar Wallace, Sei Donne per
l'Assassino representa um tremendo avanço no desenvolvimento do
moderno filme de horror. É, de fato, discutivelmente o primeiríssimo
filme slasher, embora esse rótulo diminua as conquistas de Bava por
razões que se tornarão logo aparentes.
Neste filme, Bava retira a ênfase nas personagens e motivações
psicológicas, criando desse modo uma literal sinfonia da violência em que
ninguém é o que parece. No paranóico ambiente do filme, não se deve confiar em
ninguém. Homens de negócio aparentemente respeitáveis revelam-se assassinos
sádicos; todos os outros ou são seguros-de-si e intocáveis (por exemplo, o
inspetor) ou traiçoeiros chantagistas. Desnecessário dizer que os espectadores
em busca de um filme "pra cima" sobre pessoas felizes e maravilhosas
não devem se arriscar. Bava usa sua câmera para que o público fisicamente tome
parte na ação, sem encorajar contudo a simpatia do espectador com as
personagens; por estas razões, muitos críticos continuam a vilipendiar Sei
Donne, levando Bava a responder pela criação de uma celebração sem remorsos
do sadismo.
Com bastante frequência, as personagens de Bava são marcados por sua
incapacidade de amar. Em nenhum outro filme este conceito é mais aparente.
Ainda que a maioria das personagens principais estejam envolvidas em
relacionamentos, elas são demasiado travadas em seus próprios mundos para
sentir realmente algo pelos outros. O estranho negociante do antiquário, Frank,
por exemplo, gaba-se ao inspetor de que "não acredita em relacionamentos
permanentes, exclusivos". E mais, ele parece genuinamente não afetado pelo
fato que duas de suas amantes foram mortas selvagemente. Somente quando a
polícia o considera suspeito das matanças que ele passa a demonstrar interesse
em qualquer coisa além de sexo e drogas. Ao inspetor também falta qualquer
paixão, mesmo aparentemente pelo seu trabalho; ele quase pode ser visto como
uma paródia das figuras de autoridade da escola Joe Friday/DRAGNET: "just
the facts, ma'am". Somente a Coundessa Christina exibe alguma emoção
verdadeira, embora paradoxalmente esta conduza a sua desgraça. Seu amor por
Massimo é completamente genuíno, de tal modo que não lhe deixa enxergar suas
falhas e a compele a cometer atos hediondos para mantê-lo ao seu lado. Em
contraste, Massimo é exclusivamente preocupado com posses: carros rápidos,
roupas caras, o centro de moda, etc. É ele quem compele Christina a assassinar
seu marido, permitindo-o controlar, desta forma, o negócio da moda. Finalmente,
quando se cansa da Condessa, ele arruma friamente uma maneira de se dispor
dela, utilizando-a como um bode espiatório para seus crimes. Em sua
incapacidade de amar Christina, Massimo literalmente se destrói. Enquanto
considera que pode usar qualquer um para obter o que quer, ele não leva a força
e os recursos de Christina em conta. Christina é cegada totalmente por suas
emoções -- não há nada que possa fazer para controlar isto -- mas,
ironicamente, se Massimo tivesse investido ao menos algum amor genuíno em seu
relacionamento, poderia provavelmente fugir à culpa de seus crimes; é a SUA
impotência emocional que o destrói, não alguma fraqueza da parte de Christina.
Muitos filmes de Bava lidam com pseudo-aristocratas moralmente falidos,
e Sei Donne não é nenhuma exceção. Christina tem a distinção
do título: é uma condessa, e este título rende seu status social
elitista. Com sua classe social, naturalmente, vem o dinheiro -- aquilo
que fornece as motivaçõess das personagens. Da mesma maneira que a
família de Menliff em The Whip and the Body se utiliza de sua
"superioridade" social para se desligarem da sociedade, Christina
habita um mundo de seus próprios desígnios. O Christian Haute Couture Salon é
menos um negócio que um símbolo de benesses sociais; os vestidos/modas que ela
ajuda a promover alinha-se com seu próprio bolso, permitindo que ela se aparte
dos "comuns" de Roma. A óbvia desconfiança de Bava em tal gente
privilegiada -- que deriva de sua desconfiança em julgar as pessoas por sua
aparência -- vem a termo de maneira bem forte. Christina, peão que é no jogo de
Massimo, é ainda uma assassina decepcionante. Quaisquer características
simpáticas que ela possua derivam de sua incapacidade em encontrar o amor e a
atenção das pessoas certas; ela é cercada por sicofantas que secretamente
fofocam sobre ela e que, como no caso de Massimo, tramam tomar sua riqueza.
Ainda mais reveladora é a personagem de Richard Morrell, um assim-chamado
marquês que possui um título extravagante e pouco mais. Um palhaço, Morrell faz
objeção a ser algemado pela polícia e orgulhosamente anuncia que, como um
aristocrata, está acima de tal tratamento. Como Christina, Morrell vive também
em ambientes muito "exclusivos": uma villa que é aparentemente
assombrada pela sempre presente figura de um antigo retentor da família, de
visual singularmente triste. Morrell é um sanguessuga que vive dos salários de
sua atraente noiva Greta, uma das modelos da Coundessa Christina. É o medo de
Morrell de que seus débitos a Isabella sejam descobertos, destruindo assim sua imagem
como um playboy rico, que arremessa Greta na tragédia. A ironia da morte de
Greta é que a Coundessa Christina, que já se utiliza da imagem da menina para
promover seu negócio, usa sua morte como um álibe de ferro para a inocência de
Massimo (ela é morta enquanto Massimo e Morrell debilitavam-se na cadeia). Com
sua morte, o verdadeiro assassino é libertado, enquanto o imprestável Morrell é
poupado de todo o embaraço. A sutil alegoria é que ela é um dos aristocratas
imorais usando a mais acessível, "inferior" classe trabalhista para
seus propósitos nefastos. A noção da elite excessivamente privilegiada,
isolados do restante do mundo, saciando todos os seus caprichos, informa muitos
outros filmes de Bava, incluindo Banho de Sangue e Lisa
e il Diavolo (Lisa and the Devil) (ambos lidam com as figuras da
Condessa/mãe super-protetora que tentam impedir que suas proles mentalmente
aberrantes se espalhem), Il Rosso Segno della Follia (Hatchet
for the Honeymoon), e Mata, Bebê, Mata. Esta idéia também está
presente no primeiro western de Bava, La Strada per Fort Alamo (The
Road to Fort Alamo), em que os colonizadores europeus são descritos como
racistas ambiciosos, enquanto os assim chamados indesejáveis (os americanos
nativos, os fora-da-lei) são mostrados de maneira mais humanista. A sugestão de
Bava parece ser que a falta de contato com a realidade cotidiana é uma coisa
perigosa, mesmo se o mundo de um modo geral está longe da perfeição (cf. Cani
Arrabiati / Rabid Dogs).
Executado com uma perspicácia mórbida e repleto dos deslumbrantes toques
estilísticos que tiveram tão profunda influência em Dario Argento e Martin
Scorsese, Sei Donne representa uma etapa lógica na maturidade
crescente de Bava como cineasta. Os recursos um tanto limitados dos gêneros do
gótico e do peplum deixaram o diretor ansioso por tentar algo novo.
Embora La Ragazza che Sapeva Troppo (The Girl Who Knew too
Much) tenha permitido que ele deixasse pra trás as armadilhas artificiais do
filme de época, ele ainda sofre de certa falta de maturidade -- pode ser o
primeiro giallo, mas é um giallo incerto. Em As Três Máscaras do Terror,
o diretor deu um passo no sentido correto com o segmento "Il
telefono" (seu segundo thriller com ambientação contemporânea), mas Sei
Donne permanece o primeiro exemplo verdadeiramente sanguinolento do
giallo. É um filme de tal crueldade sem remorsos e cinismo amargo que agitou o
gênero em seus próprios fundamentos. Mesmo se não é o melhor thriller a sair da
Itália (esta honra pertence a Prelúdio para Matar, 1975 de Dario Argento),
é um exemplo compendioso do que fascina os conhecedores no trabalho de Bava, e
do que outros consideram estar faltando, ou do que consideram simplesmente
ofensivo.
Visualmente falando, Sei Donne é uma dos filmes mais
bonitos de Bava: não há um único plano que não pareça positivamente reluzir.
Ainda que criticado pela inconsistência por Maitland McDonagh em BROKEN
MIRRORS/ BROKEN MINDS: THE DARK DREAMS OF DARIO ARGENTO, não há nada descuidado
no visual do filme. Antecedendo os massacres engenhosamente coreografados de
Argento por diversos anos, Bava não deixa escapar nenhuma oportunidade de dar
plena vazão a sua imaginação nada convencional. Uma mulher tem seu rosto
repetidamente esmagado de encontro ao tronco de uma árvore; o rosto de uma
outra jovem é rasgado em pedaços por uma luva de metal laminada (ecos da
sequência de abertura de A Maldição do Demônio), e uma outra vítima
é escaldada à morte por uma fornalha em brasa. A sedutora encenação de Bava e
seu uso impecavelmente orquestrado da cor emprestam a estas cenas uma beleza
perturbadora; Hitchcock pôde ter sido pioneiro no aspecto auto-analítico,
voyeurístico do cinema, mas Bava foi o primeiro a confrontar clamorosamente a
mórbida obsessão do público com a violência. A violência é intensa, distante de
qualquer coisa em Psicose de Hitchcock (1960) ou em Peeping
Tom de Michael Powell (1960), mas dificilmente há qualquer sangue
derramado. A cor vermelha, irrevogavelmente associada a atos de violência por
razões óbvias, é predominante na paleta de cores doces de Sei Donne,
dos telefones e dos adornos vermelhos do Haute Couture Salon ao batom e esmalte
que adorna os corpos das modelo-vítimas; a consciência culpada de Massimo é
reafirmada em sua vestimenta com manchas carmesins. Este uso da cor não é
hiperbólico, mas antes serve como uma representação simbólica da narrativa
manchada de sangue.
O uso direção de arte por Bava fornece o particular impacto de Sei
Donne. A idéia mesma de ambientar um violento thriller de assassinato nos
confins de uma casa de moda é um conceito deliciosamente irônico, estabelecendo
imediatamente um conflito inquietante entre a ação e o ambiente.
Superficialmente, o Haute Couture Salon representa um patamar de beleza e
cultura -- é aqui que os pessoas vão para se embelezar -- mas, uma vez mais, as
coisas raramente são o que aparentam no universo de Bava: para dizer o mínimo,
a corrupção que se esconde por trás desta exterioridade prova ser destrutiva e
mortal. Com seu sempre critativo uso de cor e sombras, Bava empresta ao Salon
um visual ao mesmo tempo sinistro e belo. Da mesma maneira que o diretor
encontra beleza nos vários assassinatos que percorrem a narrativa, a
ambientação logra ser tanto perturbadora quanto agradável ao olhar.
Em uma crítica bastante laudatória de Sei Donne (cf.
FANGORIA # 100), Tim Lucas comenta o ponto de vista "maturamente
misógino" do filme, embora não há qualquer maneira de negar que as
personagens masculinas são apresentadas muito desfavoravelmente. Não há heróis
neste filme, e Bava não incentiva o espectador a simpatizar com ninguém. O
assassino vestido em negro, sua face escondida com uma escarfa de seda branca,
representa o lado mal de todo homem. Ao contrário de posteriores
"assassinos em série" como Freddy Krueger, o assassino de Bava é
apresentado sem qualquer personalidade. Parte da razão que o gênero do slasher
tem recebido tanta crítica negativa é que, intencionalmente ou não, poucos
cineastas apresentaram seus assassinos como figuras heróicas que seguem punindo
pessoas merecedoras que, de uma forma ou de outra, tenham quebrado os códigos
morais da sociedade. Bava nunca comete este erro. Ao invés disso, ao
provocar uma resposta estimulante do público durante as cenas do assassinato,
Bava está encorajando o público não apenas a recuar e examinar seu próprio
código moral, mas também a pensar no poder do visual. De um modo muito
concreto, não-abstrato, Bava força o espectador a enxergar o incrível potencial
do cinema de fazer mesmo os atos mais horripilantes parecerem perturbadoramente
bonitos.
Mesmo se os filmes que inspirou (incluindo Haloween de
John Carpenter, 1978, e Cabo do Medo de Martin Scorsese, 1991)
não sejam, Sei Donne permanesce um filme de poder e
substância, e um clássico em seu próprio direito.
Troy Howarth
Tradução de Fernando Verissimo
copyright do original: Troy Howarth
Reproduzido com autorização do autor
copyright do original: Troy Howarth
Reproduzido com autorização do autor
Elogio de um cinema feérico
No
meio de um desfile de modas, uma das modelos precisa deixar o atelier para ir
visitar seu companheiro, que telefona avisando que está mal da saúde. Estamos
em Sei Donne per l'Assassino / Blood
And Black Lace de Mario Bava.
O espectador tem um privilégio de informação em relação à pobre moça: ele sabe
que por ela espera um assassino que deseja realizar uma morte do tipo queima-de-arquivo
(é como os assassinatos se seguem no filme). Quando a moça entra no estúdio e
as luzes se apagam, assistimos ao provavelmente mais delirante e aberrante
espetáculo de sombras e cores que a história do cinema tem a oferecer num filme
com personagens, histórias e veiculação comercial. Com toda a tradição que
surge dos primeiros filmes de Mario Bava, estamos diante de uma escola – que,
se pensarmos como escola, é nos últimos quarenta anos a única do mundo – que
deseja transformar um gênero cinematográfico reputado como menor (ao contrário
do noir e do melodrama, o horror é ainda hoje alvo dos narizes em pé dos
cinéfilos mais esnobes – e, adicionemos, cegos) num campo de pesquisa plástica
que é definitivamente experimental.
Observemos
bem Sei Donne per l'Assassino:
não é como no cinema americano um registro para causar medo através da história
nem como as produções britânicas da Hammer, que cativavam seus espectadores
pela criação de climas soturnos e de uma elegância incomparável. A trama tecida
pelo filme (e pela maioria das obras de Bava e de Argento, seu sucessor) não se
encaminha para nenhum desses dois lados canônicos do cinema de terror, mas em
direção a algo que só alguns dos grandes mestres conseguiram na história do
cinema: para o prazer do olho, que é conseguido através da mestria da direção
(enquadramento/luz/decupagem) e transforma um simples filme de ficção em
pesquisa conceitual. Pertencem a esse hall infame cineastas como Alfred
Hitchcock, Fritz Lang, Brian de Palma, Stanley Kubrick... A câmera desenha por
si própria um filme mais interessante que o filme que se vê acompanhando a
história e seguindo as motivações dos personagens.
No
filme de Bava, não sabemos profundamente das motivações da moça que procura seu
colega no estúdio, e tampouco nos questionamos por que os aposentos da casa são
de tal forma excessivos. A quebra da verossimilhança é abissal, mas eis que
estamos nós maravilhados e pedindo mais da inacreditável luz pisca-pisca que
ilumina com tons de azul e rosa (!) os elementos de cenário da seqüência do
filme, numa das cenas mais anti-naturalistas já filmadas dentro do esquema
longa-metragem-industrial-de-ficção. Podemos igualmente falar de toda a
seqüência inicial de Suspiria,
que compreende uma chuva no aeroporto, uma perseguição à noite na floresta e um
inigualável baile sangrento de montagem e cores que se termina com um objeto
plástico tão disparatado quanto um ready-made de Duchamp: um rosto fendido ao
meio por um vitral (David Lynch fará semelhante – homenagem? – em A Estrada Perdida). Pouco
importa o porquê de a menina estar lá ou ser perseguida: o que importa é o
resultado atingido, e atingido por meio dos meios de expressão do cinema, ou
seja, a visualidade.
Disso
deriva, talvez, a maior crítica que é feita a esses filmes: eles jamais se
tornariam clássicos porque, apesar de um ou dois momentos geniais, essas obras
não trariam histórias cativantes que prendessem o espectador, fazendo com que
os filmes fiquem inócuos ou masturbatórios. Nessa crítica, que de fato se
esquiva de entender a essência desse cinema, apenas um elemento a ser levado em
consideração: o aprofundamente e a inteligibilidade das histórias. Pois é toda
a natureza do giallo,
subgênero preferido entre os diretores do horror italiano: um estilo de narrar
uma intrincada história que entretanto dá muito mais atenção aos fluxos e aos
rituais de assassinato do que às explicações psicológicas e à pretensa
profundidade da alma humana (onde o maior exemplo seria o evidentemente
superestimado O Silêncio dos
Inocentes). Ao contrário, toda a graça do giallo reside na maneira como a
lógica e a psicologia são relegadas ao mínimo necessário para em compensação o
filme ganhar em clima, situações de terror e força de composição, de potência
visual. Obviamente, a crítica mais comum ao terror italiano já está toda
imbuída de uma visão preconcebida do cinema, e do cinema de terror americano
dos anos 80 em particular (logo esse, que bebeu, diluiu e idiotizou – em parte
– o cinema fantástico da Itália): verossimilhança, psicologismo funcional (o
espectador tem que acreditar nos motivos dos assassino e das sensações das
vítimas), fixação na fluidez narrativa e pouca atenção à plasticidade da imagem
(pensemos na série Sexta-Feira
13 ou nas continuações de Halloween).
Das
escandalosas e estetizantes iluminações de Mario Bava ao gore sofisticado e
inventivo de Lucio Fulci passando pela exacerbação do giallo e pela loucura
visual de Dario Argento, o cinema fantástico italiano recupera e mantém-se como
o único gênero no mundo ainda a considerar o cinema como um suntuoso exercício
de estilo destinado a, puramente pelos olhos e pelos ouvidos, espantar e
maravilhar o espectador independente da história que se conta. Prazer especificamente
cinematográfico (os outros terrores podem muito bem ser contados em livro)
outrora disseminado na produção mundial – filme noir, realismo poético francês
– e hoje cada vez menor em prol de um cinema de gênero puramente digestivo,
ancorado nas vendas para a televisão e no todo-poderoso roteiro, geralmente sem
qualquer invenção ou preocupação visual (pensemos nos três mais fortes gêneros
de hoje, a comédia romântica, o terror e a comédia adolescente). Com o fim cada
vez mais próximo da indústria do terror italiano – Argento é o único a filmar o
gênero regularmente e aparentemente só há um continuador, Michelle Soavi –,
morre também a última escola de cineastas que se educaram pela visualidade e
pela criatividade na iamgem (a penúltima foi o celeiro de Corman: Dante, De
Palma, Scorsese, Coppola...) e crescem cineastas que só se interessam pelo
gênero enquanto algo camp, "trash" se se quiser. O cinema de terror
foge do gênero "fantástico" para entrar nas raias de um cinema de
suspense dependente demais dos roteiros. Enquanto isso, o poder de evocação que
provém da tela no cinema fantástico hoje ainda pode ser encontrado em alguns
diretores, como Carpenter ou Burton ou Amenábar, mas parece em vias de
extinção.
"Cinema
fantástico" na França tem um sinônimo: "féerique". Assim é
tratado desde Méliès, o primeiro homem que realizou truques especialmente para
a câmera. Feérico quer dizer relativo às fadas, aos contos de fadas. Logo, um
mergulho nas teias de imaginação dos relatos de encantamento da infância, na liberdade
de sonhar com palácios, inimigos monstruosos, heróis firmes e mocinhas lindas,
mas antes de tudo um poder de imantação que nos transporta para um mundo outro,
levemente diferente desse, mas onde ainda é possível sonhar com figuras
improváveis, leis físicas diferentes, desaparições súbitas... Se há algo que
unifique o cinema de, digamos, Georges Méliès, Jean Cocteau, de um lado, e
Bava, Argento e Fulci, de outro, é a capacidade de fazer maravilhar através de
um universo não pela verossimilhança e pela psicologia, mas sim pelo poder que
as imagens trazem dentro de si. Não
de fazer um cinema da diversão, mas de fazer com diversão um cinema do jogo.Uma
confiança absoluta na força do cinema, a escola de terror italiano deveria
muito honrosamente carregar solitária hoje esse brasão de uma criatividade
radical, beirando o infantil (e garantindo um prazer respectivo, o de uma
criança com seu brinquedo preferido), que acredita antes de tudo na pregnância
e na capacidade de evocação da imagem. Qual brasão? O de digna representante do
cinema feérico.
Ruy
Gardnier
O medo e o estupor
A
retrospectiva dedicada a Mario Bava (1914-1980) pela Cinemateca Francesa,
também co-editora de uma preciosa coletânea de textos sobre o mestre italiano,
permite hoje uma análise mais confiável. Como seus filmes saíam em Paris sempre
nas mesmas salas, todas associadas ao filme de terror – Atlas e Midi Minuit
incluídas –se poderia pensar que Bava, durante os vinte anos de sua carreira de
diretor (1960-1980), tivesse sempre realizado o mesmo filme, à exceção de
alguns westerns ruinzinhos, e que ele era homem de um só gênero...assim como
Matarazzo, Leone ou Jacopetti, que realmente só se sentiam à vontade no
melodrama, no western ou no documentário-espetáculo.
Na
verdade, colar uma só etiqueta na obra de Bava se revela coisa difícil, a marca
do Fantástico não se encaixando nem na Menina que Sabia Demais, nem em Banho de Sangue, que se situa
na realidade contemporânea, sem pegar emprestado nem ao passado, nem ao futuro,
nem ao sobrenatural. A marca do Terror, da qual fazem parte, de certa forma,
esses dois filmes, só podendo ser atribuída a Perigo:
Diabolik, reconstituição muito divertida de uma história em quadrinhos de
sucesso, e nem mesmo – por causa de seu título – à Terrore nelle spazzio,
inteiramente marcado pela frieza e especulações futuristas.
Dois
gêneros, portanto, são utilizados alternativamente, o fantástico e o terror.
Mas
estará o medo, que faz figura de marca de fábrica (vejam esses títulos : I tre volti della paura, Operazzione paura ["as três faces do medo",
"operação medo", traduzidos no Brasil como As Três Máscaras do Terror e Mata,
Bebê, Mata, n.d.e.]), realmente no encontro? As ações se revelam
inverossímeis demais. Personagens e atores são freqüentemente inexistentes1. Pode-se temer,
então, pela vida de personagens inconsistentes, que deixam a identificação
impossível, e que não se podem distinguir uns dos outros. Em O Planeta dos Vampiros, raramente
se vêem os rostos e os corpos dos atores, dissimulados atrás de suas roupas de
astronautas. O medo, se ele existe, aparece unicamente durante aqueles poucos
segundos que passam entre a primeira visão da arma do crime – de preferência
gilete ou canivete – e a visão realmente gore do corpo odiosamente mutilado. Dois
filmes, no entanto, procuram uma angústia quase contínua: A Menina que Sabia
Demais, por causa da protagonista perseguida permanentemente, situada no quadro
realista, à qual não podemos nos identificar, e, principalmente, por causa da
impossibilidade de não sabermos nem de onde, nem como, nem por que pode surgir
o perigo. E também Banho de
Sangue, pois a acumulação estupefaciente dos quinze assassinatos repartidos
em todo o filme cria, além do medo pontual que mencionei (causado mais pela
particularidade visual atroz da morte que pela morte em si, que sabemos
inevitável, já que o hábito ajuda), uma impressão de mal-estar e de enjôo
contínuos.
Pode
parecer surpreendente que o humor seja consubstancial ao medo. Em Banho de Sangue, onde se ri a
cada clímax sangrento, com mais intensidade ainda quando o crime é atroz. Tem
nesse riso ao menos quatro razões:
1.
Reação frente à inverossimilhança das situações.
2. Expressão de uma necessidade de recuo, de distanciamento em relação à acumulação macabra.
3. Presença de um humor que escorre do comportamento dos personagens: depois de ter visto o homem agonizante se arrastar longos minutos sobre o chão, a mulher o interroga: "Mas tu estás ferido?". Ou ainda, intrusão cômica de uma figura codificada estranha ao gênero do terror, a menina que vê emergir da baía o corpo de seu pai, com polpa no rosto: "Mas é meu pai..."
4. Apreciação admirativa de invenção refinada na escolha de armas mortíferas, a cada assassinato diferente uma das outras.
2. Expressão de uma necessidade de recuo, de distanciamento em relação à acumulação macabra.
3. Presença de um humor que escorre do comportamento dos personagens: depois de ter visto o homem agonizante se arrastar longos minutos sobre o chão, a mulher o interroga: "Mas tu estás ferido?". Ou ainda, intrusão cômica de uma figura codificada estranha ao gênero do terror, a menina que vê emergir da baía o corpo de seu pai, com polpa no rosto: "Mas é meu pai..."
4. Apreciação admirativa de invenção refinada na escolha de armas mortíferas, a cada assassinato diferente uma das outras.
Banho
de Sangue aparece, aliás, como a
obra-prima de Bava. Ele impõe ao espectador uma dinâmica irremediável fundada
no assassinato, e que releva o cinema mais puro, na medida que não deve nada,
nem ao roteiro, nem as ações – nada compreensíveis, por sinal – nem ao sentido,
nem aos personagens, nem aos atores. Um cinema, uma lógica que funciona
unicamente por ela mesma, sem bengalas, da qual não se encontra equivalente na
arte fílmica, e que mergulha o público no estupor admirativo.
O
mesmo estupor é acentuado pela utilização do travelling ótico. Se fosse preciso encontrar um
denominador comum ao cinema italiano posterior ao neo-realismo, seria a
reflexão em cima do zoom,
fundamental em cineastas tão diferentes quanto Rossellini (do qual Bava foi
diretor de fotografia), Cottafavi e Bava. Com Rossellini, otravelling ótico constitui um apêndice ao
movimento lateral da dolly,
criador de vida, de respiração interna, de fluidez, de peso existencial, o
oposto total da utilização essencialmente dramática que descobrimos nos outros
dois mestres peninsulares. Curiosamente, Bava retoma freqüentemente a
figura-mãe do zoom cottafaviano, o brusco movimento antes
seguido illico de um movimento traseiro não menos
rápido. Mas, enquanto que com Cottofavi, como por exemplo em Uma Donna Libera 2, o efeito é muito
raro – o cineasta se permite de usá-lo não mais do que duas ou três vezes por
filme – criando um clima excepcional chocante pela sua raridade e pela sua
natureza contraditória, Bava, por sua vez, se serve dele até o abuso. O zoom é sua imagem de marca mais do que
a escolha de um gênero.
Aqui,
o zoom se revela criador, não de vida,
mas de medo. Essa equivalência torna-se tão institucional que, logo que entra
um zoom, ou um duplo zoom, ficamos com medo, mesmo
que o objeto filmado não tenha nada de aterrorizante. É o procedimento técnico
que, por ele mesmo, suscita medo, como um reflexo pavloviano...E Bava se
diverte em nos enganar, em nos orientar com pistas falsas.
Eu
detesto filmes que se apóiam no travelling ótico. Eu gosto quando tem um ou
dois por filme, ainda assim justificados e eficazes. Porém, quanto mais eu
avanço na carreira de Bava, mais os encontro, e mais percebo que funcionam. Eu
não contei, mas deve ter mais de cem no estupefaciente Lisa e o Diabo, infinitamente
mais apaixonante que as faixas da metade da década de sessenta, que tinham duas
ou três vezes menos. É o meio-termo, a justa (a injusta) medida que não
funciona. Chegamos a um delírio, a uma orgia, uma vertigem gratuita (lembrando
o admirável O Arquivo
Confidencial de Sidney Furie)
que nos levam, ligados a todo um arsenal de artifícios formais que visam a
confundir o verdadeiro com o falso, o ator e a boneca, o sonho e a realidade.
Uma reavaliação do cinema 3, e ao mesmo tempo a
sua afirmação lírica pela importância do movimento que anima o filme.
Mas
tudo isso se encontra hoje ameaçado pelo tempo: raramente projetados, mostrados
por difusores quebrados ou pouco exigentes, as cópias dos Bavas são reduzidas a
uma dominante rosa ou liga de vinho em todos pontos contrárias ao negativo
original. O enorme trabalho de Bava, que conseguia fazer esquecer a falta de
recursos, se encontra hoje destruído pelo apodrecimento da cor, que deixa o
resultado envelhecido, brega, pobre. Os italianos dedicam toda sua atividade em
favor da preservação de obras acadêmicas que não interessam a ninguém, como as
de Genina, Camerini, Gallone ou Bolognoni, que não tiveram a ocasião de
trabalhar a cor ou nem tentaram. Enquanto que, no sentido de conservação e
preservação, não existe no mundo tarefa mais urgente que a consideração pela
obra de Bava, onde a cor é essencial, e que periga desaparecer insidiosamente
da memória.
Luc
Moullet
(publicado originalmente nos Cahiers du Cinéma a propósito de uma retrospectiva Mario BAva na Cinemateca Francesa, mencionada no início do texto)
tradução de Bolívar Torres
(publicado originalmente nos Cahiers du Cinéma a propósito de uma retrospectiva Mario BAva na Cinemateca Francesa, mencionada no início do texto)
tradução de Bolívar Torres
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