EUA, 1995
The Addiction é um filme de vampiros, e o é de uma forma inteiramente singular, pois mais do que retrabalhar códigos e convenções de gênero, ele faz as próprias imagens parecerem verdadeiras sugadoras de luz, que exaurem a energia do mundo para tornar visível sua face escondida. Depois tudo volta a ser escuro. Para sair da sombra e ser visto, o corpo precisa também vampirizar a luz, eclipsá-la como faz o personagem de Christopher Walken em sua primeira aparição, quando anda pela rua e é abordado por Kathleen (Lily Taylor). "Você quer ir a um lugar escuro?", ele pergunta e a arrasta para fora de quadro. No momento em que eles saem de quadro, uma luz estourada vaza para dentro da imagem pelo lado esquerdo, antes ocupado justamente pelo personagem de Walken, como se ele a estivesse represando e somente agora essa luz pudesse atingir o plano. É óbvio que em se tratando de Ferrara, o vampirismo é uma forma de representar a força incontrolável e destrutiva da droga, e de mostrar sua propagação violenta na sociedade. Assim como as drogas, as imagens – advenham da cultura pop ou do horror das guerras – detêm um enorme poder de contágio dentro do ambiente urbano. Kathleen a princípio não consegue entender as imagens das pilhas de corpos dos civis vietnamitas mortos no massacre de My Lai – imagens que nos fazem perceber que é da ambigüidade moral de toda a América que o filme trata, evocando um passado histórico irredimível e mostrando que sua tão frisada distinção entre bem e mal é mero discurso. Quando o corpo de Kathleen é dominado pela força maligna, ela compreende que essa força precede toda explicação. Lily Taylor está incrível, encarnando uma personagem cuja vida entra em convulsão e se afunda ao longo da narrativa, entre crises de abstinência e de overdose. Kathleen estava desde o início do filme se tornando doutora em filosofia, mas o que ela ainda precisava aprender é que o conhecimento verdadeiro só chega uma vez atravessado o sofrimento físico. Ao menos para Ferrara é assim. Uma operação interessante em The Addiction é que, sendo este o filme de Ferrara que mais se liga a uma iconografia muito específica, que pede uma dramaturgia um tanto fechada, ele exibe ao mesmo tempo as imagens mais frontais e documentais que o cineasta já fez em ruas nova-iorquinas. O preto-e-branco reitera uma atmosfera sufocante, auxiliada por potências obscuras, mensageiras de um mal eterno. Somente abandonando o corpo é possível se livrar da dependência nefasta. Por mostrar esse mundo ensombrado, em estado de putrefação ética, The Addiction é uma das bad trips mais inescapáveis e pesadas de Ferrara – ainda que no final o filme vislumbre retornar à luz do dia.
(Texto original: http://www.contracampo.com.br/86/artferrarafilmografia.htm)
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