Em
1996, quando Abel Ferrara lançou seu The
Funeral/Os Chefões, deu-se uma curiosa mudança de posição de seus
admiradores. Enquanto seus fervorosos fãs apaludiam com alguma temeridade esse
retrato familiar da máfia com sotaque academicista, os eventuais detratores de
filmes como O Rei de Nova York e Bad
Lieutenant/Vício Frenético ovacionavam
esfuziantemente o primeiro filme de Ferrara sem os excessos de pathos, de
sangue ou de crueza de estilo. Em bom português: com Os Chefões Ferrara teria finalmente servido
um prato palatável para estômagos fracos. Infelizmente para eles e felizmente
para nós, a continuidade da obra do bíblico Abel evoluiu no sentido de seus
filmes mais vertiginosos e exuberantes, seguiu o caminho da perdição dos
sentidos, do pathosdescontrolado
de seus protagonistas, do coquetel de álcool, drogas, sangue e sexo filmados
por uma câmera cinematograficamente tão inebriada quanto aquilo que ela filma.
Mais que isso: com filmes comBlackout, R
Xmas ou com os já citados
acima, Ferrara comprova-se cada vez mais como o grande questionador moral do
cinema americano. Poucas vezes na vida vimos um policial ser um humano de carne
e osso, e não um "robozinho do sistema" ou aquele herói positivo dos
filmes de ação que tem sempre um parceiro, come rosquinhas, conversa com
meninas bonitas, etc. Mas vimos emVício Frenético e em O
Rei de Nova York. Mas de fato nunca tínhamos visto um filme que tratava a
família de um traficante de drogas como uma família qualquer, e o tráfico como
uma simples questão de trazer dinheiro para casa, como qualquer pai de família
decente, como vemos em R Xmas (na TV a cabo, Natal Negro). Dir-se-ia que o
filme é uma versão americana do francês Agenda.
Mas
antes de R Xmas, dois
filmes nos imergiam numa outra trip,
menos social e mais climática, existencial, oriunda sem dúvida de seu Naked Eyes/Dangerous Game (Olhos de Serpente). EmBlackout e Enigma do Poder, a figura
feminina sexuada é a grande figura obsessional que conduz os heróis à perdição:
seja emBlackout, em que um Matthew Modine que não consegue encontrar
serenidade com uma mulher de temperamento impossível (a morena, Béatrice Dalle)
nem com a mulher perfeita, amante e mãe cuidadosa (a loira, Claudia Schiffer),
ou seja em Enigma do Poder,
em que um sonho onipotente de vencer os chefões do contrabando internacional
transforma-se num pesadelo desesperador graças à figura também morena (curioso
como Ferrara inverte sempre o arquétipo de dominação feminina, associado ad infinitum à loira) de Asia Argento.
Social
ou interna, a figura de conteúdo que interessa a Abel Ferrara é sempre a do
excesso. Ou melhor, às conseqüências do excesso: todo excesso diz respeito a
uma tentativa de sair de si, de transcender o próprio corpo em busca de um
equilíbrio mais forte do que o corporal. Sair-de-si, leia-se ex-tase, êxtase. E, pouco
importa de que natureza sejam, todas as principais figuras do êxtase aparecem
uma a uma nos filmes de Ferrara, seja o êxtase da droga, o êxtase religioso, o
êxtase da manutenção familiar ou o êxtase sexual. O importante aqui é que o
sujeito aspira ao sentimento do absoluto, almeja a completa dissolução do
sujeito no mundo (ou no nada). Estejam de que lado estiverem, tanto Frank White
(o chefe da máfia de O Rei de
Nova York) quanto o "mau oficial" de Vício Frenético (é assim que o policial interpretado
por Harvey Keitel é descrito nos créditos, "bad lieutenant") não têm
outra atitude: eles combatem o mal com o mal, entram num circuito de mão única,
suicida, desejam atingir uma espécie de êxtase por atingir o mal absoluto. A
lógica de violência desses dois personagens não está subsumida a nenhuma
explicação, política ou social: são antes dois primos longínquos de Ricardo
III, o shakespeariano anti-herói por excelência que pratica o mal não com a
intenção de atingir qualquer finalidade, mas como pura atividade de excesso
gratuito, uma experiência quase litúrgica. Uma religião da intensidade.
Naturalmente
o cinema já nos deu muitos personagens que encarnam o mal, mas nos parece que
Abel Ferrara abre um capítulo à parte nessa história. Figuras do excesso
destruidor, a própria literatura nos dá desde o Heathcliff de O Morro dos Ventos Uivantes(e
não é à toa que Georges Bataille abre seu A
Literatura e o Malcom um capítulo sobre Emily Brontë) Mas Ferrara, no
entanto, não se limita a simplesmente acompanhar fascinado os passos de seus
anti-heróis. Em seus filmes, a própria narrativa é tão balbuciante quanto os
passos de seus protagonistas, a própria segurança do tabalho de câmera espelha
os descaminhos de excesso e inconsciência dos personagens.
Outro
aspecto decisivo de seus filmes: como espectador, jamais temos acesso a algum
dado da narrativa que o protagonista desconheça, e essa falta de lacuna entre o
conhecimento que os personagens e os espectadores têm de cada cena nos
impossibilita de realizar qualquer julgamento que não seja de nível
existencial: não passamos a julgar as decisões deles, e sim a acompanhá-las. O
que, em se tratando de personagens que cometem atos ignominiosos, cria um
poderoso desconforto moral nos que se dignam a encarar seriamente seus filmes.
O exemplo mais forte disso está em Blackout:
no meio do filme, em visita a um amigo que produz vídeos de softporn, o personagem de
Matthew Modine mistura sexo, álcool, cocaína e um revólver. Corta. Mais tarde,
suas lembranças são difusas: teria ele matado a mulher? Ele sente-se inquieto
por descobrir a verdade e culpado pelo possível assassinato, mas não podemos
ajudá-lo: sabemos tanto quanto ele. A dúvida persiste até o final do filme, e
não é resolvida.
Os
puristas da narrativa clássica têm razão ao ressentirem-se de clareza nos
filmes de Abel Ferrara. De fato, seu cinema está tanto para Don Siegel (o
cinema físico) quanto para Maurice Pialat (os blocos de ação sendo mais
importantes do que o equilíbrio formal do filem) quanto para Godard (total
interesse em desrespeitar as regras do cinema narrativo). Ferrara toca num
ponto decisivo da relação entre vanguarda e classicismo, entre ruptura e
tradição. Não é por preciosismo ou vontade frívola de ser diferente que se foge
do cinema narrativo clássico: é por querer expressar coisas que seriam
impossíveis através da gramática dominante. Ferrara é muito menos um esteta do
que um artista que vai tão profundamente nos sentimentos de excesso de seus
personagens que ele deixa esses excessos penetrarem a narrativa e atingirem em
cheio o espectador, sem mediação ou possibilidade de filtro. Prova disso é a seqüência
final de New Rose Hotel/Enigma
do Poder: Willem Dafoe debruçado sobre si mesmo relembrando todos os
momentos decisivos que o levaram a esconder-se no hotel que dá nome ao filme.
Quinze minutos apenas de flashbacks de cenas que vimos pouco antes, mudando
apenas a ordem mental em que o personagem de Dafoe as encadeia (o que,
narrativamente, até faz mudar em muito a interpretação do filme). Anátema
absoluto das regras dos feature
films, o filme encerra-se com uma seqüência enorme de
"redundância". Entre aspas: essa redundância é ao mesmo tempo o
estado quase catatônico do personagem e um novo rearranjamento das lembranças
para entender onde a coisa toda deu errado. E se o cinema clássico não aceita
isso, tanto pior. Para o cinema clássico, naturalmente.
Um
dos lugares-comuns mais interessantes nos críticos é a opinião de que um filme
ruim de um grande artista é sempre delicioso porque permite observar muito mais
claramente todas as obsessões de conteúdo e de expressão, que num grande filme
estão muito mais "escondidas" atrás de um artesanato mais bem feito
ou de propostas estéticas mais veementes. The
Driller Killer é o perfeito
exemplo de um filme ruim assinado Abel Ferrara: neurose urbana e excesso de
informação auditiva (uma banda que faz um som disco
funkyabsolutamente datado) levam um homem à loucura e transformam-no num
assassino em série que mata com uma broca de parede. O ator que interpreta o
assassino é o próprio Ferrara, no pseudônimo de Jimmy Laine, como se estivesse
prenunciando como ator em seu primeiro longa-metragem o que faria como diretor
nos filmes seguintes (e o filme seguinte, Ms.
45/Sedução e Vingança, é uma pérola). Uma das coisas mais
interessantes em The Driller
Killer é a cartela inicial,
pré-créditos. Nela se diz: "This film should be played loud". Um
filme, qualquer que seja, que deva ser "tocado" ALTO. Ferrara
desenvolveu sua carreira para não precisar mais colocar essa inscrição antes de
seus filmes. Afinal de contas, poucas coisas falam mais alto do que seus finais
suicidas, do que suas figuras femininas, e acima de tudo do choro gutural de
Harvey Keitel em Vício Frenético, um choro desesperado de lobo, agudo, sem
passado ou futuro. Poucas vezes o cinema foi tão "alto" quanto isso.
(Texto original: http://www.contracampo.com.br/50/abelferrara.htm)
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