sexta-feira, 13 de junho de 2014

Abel Ferrara e a religião da intensidade


Em 1996, quando Abel Ferrara lançou seu The Funeral/Os Chefões, deu-se uma curiosa mudança de posição de seus admiradores. Enquanto seus fervorosos fãs apaludiam com alguma temeridade esse retrato familiar da máfia com sotaque academicista, os eventuais detratores de filmes como O Rei de Nova York e Bad Lieutenant/Vício Frenético ovacionavam esfuziantemente o primeiro filme de Ferrara sem os excessos de pathos, de sangue ou de crueza de estilo. Em bom português: com Os Chefões Ferrara teria finalmente servido um prato palatável para estômagos fracos. Infelizmente para eles e felizmente para nós, a continuidade da obra do bíblico Abel evoluiu no sentido de seus filmes mais vertiginosos e exuberantes, seguiu o caminho da perdição dos sentidos, do pathosdescontrolado de seus protagonistas, do coquetel de álcool, drogas, sangue e sexo filmados por uma câmera cinematograficamente tão inebriada quanto aquilo que ela filma. Mais que isso: com filmes comBlackout, R Xmas ou com os já citados acima, Ferrara comprova-se cada vez mais como o grande questionador moral do cinema americano. Poucas vezes na vida vimos um policial ser um humano de carne e osso, e não um "robozinho do sistema" ou aquele herói positivo dos filmes de ação que tem sempre um parceiro, come rosquinhas, conversa com meninas bonitas, etc. Mas vimos emVício Frenético e em O Rei de Nova York. Mas de fato nunca tínhamos visto um filme que tratava a família de um traficante de drogas como uma família qualquer, e o tráfico como uma simples questão de trazer dinheiro para casa, como qualquer pai de família decente, como vemos em R Xmas (na TV a cabo, Natal Negro). Dir-se-ia que o filme é uma versão americana do francês Agenda.
Mas antes de R Xmas, dois filmes nos imergiam numa outra trip, menos social e mais climática, existencial, oriunda sem dúvida de seu Naked Eyes/Dangerous Game (Olhos de Serpente). EmBlackout e Enigma do Poder, a figura feminina sexuada é a grande figura obsessional que conduz os heróis à perdição: seja emBlackout, em que um Matthew Modine que não consegue encontrar serenidade com uma mulher de temperamento impossível (a morena, Béatrice Dalle) nem com a mulher perfeita, amante e mãe cuidadosa (a loira, Claudia Schiffer), ou seja em Enigma do Poder, em que um sonho onipotente de vencer os chefões do contrabando internacional transforma-se num pesadelo desesperador graças à figura também morena (curioso como Ferrara inverte sempre o arquétipo de dominação feminina, associado ad infinitum à loira) de Asia Argento.
Social ou interna, a figura de conteúdo que interessa a Abel Ferrara é sempre a do excesso. Ou melhor, às conseqüências do excesso: todo excesso diz respeito a uma tentativa de sair de si, de transcender o próprio corpo em busca de um equilíbrio mais forte do que o corporal. Sair-de-si, leia-se ex-tase, êxtase. E, pouco importa de que natureza sejam, todas as principais figuras do êxtase aparecem uma a uma nos filmes de Ferrara, seja o êxtase da droga, o êxtase religioso, o êxtase da manutenção familiar ou o êxtase sexual. O importante aqui é que o sujeito aspira ao sentimento do absoluto, almeja a completa dissolução do sujeito no mundo (ou no nada). Estejam de que lado estiverem, tanto Frank White (o chefe da máfia de O Rei de Nova York) quanto o "mau oficial" de Vício Frenético (é assim que o policial interpretado por Harvey Keitel é descrito nos créditos, "bad lieutenant") não têm outra atitude: eles combatem o mal com o mal, entram num circuito de mão única, suicida, desejam atingir uma espécie de êxtase por atingir o mal absoluto. A lógica de violência desses dois personagens não está subsumida a nenhuma explicação, política ou social: são antes dois primos longínquos de Ricardo III, o shakespeariano anti-herói por excelência que pratica o mal não com a intenção de atingir qualquer finalidade, mas como pura atividade de excesso gratuito, uma experiência quase litúrgica. Uma religião da intensidade.
Naturalmente o cinema já nos deu muitos personagens que encarnam o mal, mas nos parece que Abel Ferrara abre um capítulo à parte nessa história. Figuras do excesso destruidor, a própria literatura nos dá desde o Heathcliff de O Morro dos Ventos Uivantes(e não é à toa que Georges Bataille abre seu A Literatura e o Malcom um capítulo sobre Emily Brontë) Mas Ferrara, no entanto, não se limita a simplesmente acompanhar fascinado os passos de seus anti-heróis. Em seus filmes, a própria narrativa é tão balbuciante quanto os passos de seus protagonistas, a própria segurança do tabalho de câmera espelha os descaminhos de excesso e inconsciência dos personagens.
Outro aspecto decisivo de seus filmes: como espectador, jamais temos acesso a algum dado da narrativa que o protagonista desconheça, e essa falta de lacuna entre o conhecimento que os personagens e os espectadores têm de cada cena nos impossibilita de realizar qualquer julgamento que não seja de nível existencial: não passamos a julgar as decisões deles, e sim a acompanhá-las. O que, em se tratando de personagens que cometem atos ignominiosos, cria um poderoso desconforto moral nos que se dignam a encarar seriamente seus filmes. O exemplo mais forte disso está em Blackout: no meio do filme, em visita a um amigo que produz vídeos de softporn, o personagem de Matthew Modine mistura sexo, álcool, cocaína e um revólver. Corta. Mais tarde, suas lembranças são difusas: teria ele matado a mulher? Ele sente-se inquieto por descobrir a verdade e culpado pelo possível assassinato, mas não podemos ajudá-lo: sabemos tanto quanto ele. A dúvida persiste até o final do filme, e não é resolvida.
Os puristas da narrativa clássica têm razão ao ressentirem-se de clareza nos filmes de Abel Ferrara. De fato, seu cinema está tanto para Don Siegel (o cinema físico) quanto para Maurice Pialat (os blocos de ação sendo mais importantes do que o equilíbrio formal do filem) quanto para Godard (total interesse em desrespeitar as regras do cinema narrativo). Ferrara toca num ponto decisivo da relação entre vanguarda e classicismo, entre ruptura e tradição. Não é por preciosismo ou vontade frívola de ser diferente que se foge do cinema narrativo clássico: é por querer expressar coisas que seriam impossíveis através da gramática dominante. Ferrara é muito menos um esteta do que um artista que vai tão profundamente nos sentimentos de excesso de seus personagens que ele deixa esses excessos penetrarem a narrativa e atingirem em cheio o espectador, sem mediação ou possibilidade de filtro. Prova disso é a seqüência final de New Rose Hotel/Enigma do Poder: Willem Dafoe debruçado sobre si mesmo relembrando todos os momentos decisivos que o levaram a esconder-se no hotel que dá nome ao filme. Quinze minutos apenas de flashbacks de cenas que vimos pouco antes, mudando apenas a ordem mental em que o personagem de Dafoe as encadeia (o que, narrativamente, até faz mudar em muito a interpretação do filme). Anátema absoluto das regras dos feature films, o filme encerra-se com uma seqüência enorme de "redundância". Entre aspas: essa redundância é ao mesmo tempo o estado quase catatônico do personagem e um novo rearranjamento das lembranças para entender onde a coisa toda deu errado. E se o cinema clássico não aceita isso, tanto pior. Para o cinema clássico, naturalmente.
Um dos lugares-comuns mais interessantes nos críticos é a opinião de que um filme ruim de um grande artista é sempre delicioso porque permite observar muito mais claramente todas as obsessões de conteúdo e de expressão, que num grande filme estão muito mais "escondidas" atrás de um artesanato mais bem feito ou de propostas estéticas mais veementes. The Driller Killer é o perfeito exemplo de um filme ruim assinado Abel Ferrara: neurose urbana e excesso de informação auditiva (uma banda que faz um som disco funkyabsolutamente datado) levam um homem à loucura e transformam-no num assassino em série que mata com uma broca de parede. O ator que interpreta o assassino é o próprio Ferrara, no pseudônimo de Jimmy Laine, como se estivesse prenunciando como ator em seu primeiro longa-metragem o que faria como diretor nos filmes seguintes (e o filme seguinte, Ms. 45/Sedução e Vingança, é uma pérola). Uma das coisas mais interessantes em The Driller Killer é a cartela inicial, pré-créditos. Nela se diz: "This film should be played loud". Um filme, qualquer que seja, que deva ser "tocado" ALTO. Ferrara desenvolveu sua carreira para não precisar mais colocar essa inscrição antes de seus filmes. Afinal de contas, poucas coisas falam mais alto do que seus finais suicidas, do que suas figuras femininas, e acima de tudo do choro gutural de Harvey Keitel em Vício Frenético, um choro desesperado de lobo, agudo, sem passado ou futuro. Poucas vezes o cinema foi tão "alto" quanto isso.

Ruy Gardnier
(Texto original: http://www.contracampo.com.br/50/abelferrara.htm)

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