Filme "um dia muito especial" tem mais de três décadas e os cinéfilos podem confirmar sua atualidade
Miguel Haoni
Especial para o jornal Amazônia
Na próxima quinta-feira (10), o Cine Sesc inicia parceria com a Associação de Críticos de Cinema do Pará (ACCPA), e exibe o filme do diretor italiano Ettore Scola, "Um dia muito especial" (Itália, 1977), no auditório do Sesc Boulevard (em frente à Estação das Docas) às 19h, com entrada franca. Não resistindo a estragar a grande surpresa, ouso antecipar que é um filme muito atual e que todo cinemaníaco deveria ver.
Apesar da questão da atualidade ser cara a muitos, sempre me pareceu uma característica óbvia. O cinema, oficialmente, tem só 115 anos, é praticamente um recém-nascido perto de suas milenares artes irmãs. E como arte, os filmes são sempre atemporais e universais. Como a pintura, a música e a literatura, o cinema reverbera em qualquer tempo e lugar. Um filme como "O nascimento de uma nação" (1915), de D. W. Griffith, é tão defasado quanto "A odisséia", de Homero, ou "A santa ceia" de Leonrado Da Vinci. Para uma plateia sensível, o caráter humano destes trabalhos nunca perderá o sentido.
Contudo, "Um dia muito especial" é realmente um "filme atual" no sentido mais ordinário em que se aplica a expressão. O encontro do radialista ferido Gabrielle (Marcello Mastroianni) com a resignada dona de casa Antonietta (Sophia Loren) é o mote para a exploração do mais universal dos sentimentos: a solidão.
Única companheira de Ulisses em seu retorno a Ítaca e expressão subjacente no olhar do Cristo rodeado de apóstolos, a solidão, esta consciência da fragilidade de nossa condição, impregna cada plano do filme de Ettore Scola como uma escuridão implacável.
Ação se passa num período em que o fascismo dominava a Itália
A ação transcorre no final dos anos 30, durante a histórica visita de Adolf Hitler a Roma. Um conjunto de prédios é esvaziado em decorrência do evento deixando apenas quatro pessoas: Gabrielle e Antonietta, a zeladora irascível e um papagaio. Este último, um agente do destino que provoca o cruzamento dos caminhos dos protagonistas é, também, pela habilidade de falar, um ícone da incomunicabilidade, razão essencial do moderno cinema italiano.
O cenário gigantesco e a épica parada fascista servem como um pano de fundo fantasmagórico para um drama íntimo, minúsculo. Tal qual seus antecessores Luchino Visconti ("Morte em Veneza"), Federico Fellini ("Julieta dos espíritos") e Michelangelo Antonioni ("O eclipse"), Scola promove um sensível encontro entre a tradição italiana da ópera com a incapacidade de entendimento no homem contemporâneo.
Esta tristeza é incorporada ao filme por meio, sobretudo, da cor. O cinza, o bege e o pálido dourado pintam um filme a cores sobre a memória preta e branca. Tal caracterização lúgubre, sinistra, é extraída dos restos da terrível iconografia fascista, cheia de marcas da morte. No trágico final, os protagonistas reassumem suas posições retornando para as sombras silenciosas depois do catártico conflito.
Apesar do encontro ser revelador, e em certa medida libertador para os personagens, a tristeza e a violência nunca os abandona. Na estranhíssima "cena de amor", por exemplo, podemos antever um sujeito frágil que se submete à incontrolável pulsão erótica da dona de casa fascista.
As expressões dos atores indicam o descompasso dos sentimentos e o mal-estar é agravado pelo tonitruante hino da juventude hitlerista. O amor para Gabrielle já tinha aparecido antes na brincadeira nos varais. O sexo posterior é praticado como um doce assassinato.
Apesar de toda dilaceração dramática, Ettore Scola realiza uma obra sensível que foge à obviedade e chega até nós, não por meio de sua "atualidade" (isto já está na definição da arte), mas como algo mais essencial: um encantador passeio pelas feias paisagens da nossa alma.
Texto original: http://noticias.orm.com.br/noticia.asp?id=519900&%7Cettore+scola+volta,+no+sesc#.U5zO95RdVb4
http://filmfilia.blogspot.com.br/2013/03/two-lovers-james-gray-2008.html
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