Abel Ferrara, The
Blackout, EUA, 1997
Voltemos um pouco ao início da cena. Primeiro, Matty rompe com sua esposa Susan (Claudia Schiffer). Eles brigam, Matty a abandona na beira da água, atirando-se no mar. Embora os planos ferrarianos sejam sempre dotados de uma força muito especial, este seria um desfecho relativamente comum, onde o personagem – observado pela mulher que o ama – marcha em direção ao horizonte, desaparecendo na paisagem e encontrando sua paz. Mas se há algo que Ferrara sempre fez em sua carreira foi justamente contornar as imagens-clichê. Seus filmes parecem sempre nos trazer imagens já conhecidas (dos gêneros, do cinema em geral), porém mostradas sob um outro ângulo, que retira delas a função arquetípica para revelar, nelas próprias, uma força oculta.
Então, a cena em questão se estende. Matty continua nadando. Ele atravessa o quadro em três planos sucessivos que criam uma certa estranheza. Mas eis que, no fim, há uma surpresa. Uma última da imagem surge sobre o negrume do mar em uma fusão. Como se estivéssemos diante de uma aparição, vemos o corpo nu da garçonete assassinada por Matty. Ao seu lado, o próprio Matty a contempla. Ele se inclina na direção daquele corpo irreal, como se quisesse tocá-lo, abraçá-lo.
Por que nos dar ainda esta última imagem? O que fazem ali aqueles fotogramas perdidos logo antes dos créditos? A imagem reconcilia o personagem com seu fantasma. Ali, na imensidão do mar, provavelmente morto, Matty reencontra não apenas sua paz, mas a imagem perdida em sua memória (durante todo o filme, figura da garçonete não parece mais do que um delírio; o personagem é incapaz de se lembrar do crime que cometeu). Há um imenso gesto artístico, uma imensa poesia sobrenatural neste último plano. Para Ferrara, trata-se de uma crença, uma reivindicação. Se toda a questão do filme até então girava em torno do lugar concreto ocupado pelas imagens no nosso mundo, neste plano a imagem – artificial, inserida livremente – supera a realidade. É ela o que possibilita ao cineasta dar a seu personagem a chance de reconciliar-se.
Calac Nogueira
(texto original: http://www.contracampo.com.br/98/pgblackout.htm)
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