sexta-feira, 26 de julho de 2019

Visão de Cineasta: Rita Azevedo Gomes

(Comentários escolhidos por Gérard Grugeau) 


Não sei bem o que é o cinema. Eu o procuro. Há algo nesta arte que outras artes não têm. É como um gatilho para o movimento das nossas almas. Nós próprios, como indivíduos e como espectadores, estamos à espera de algo. Estamos à procura de nós próprios em imagens que se movem num dado momento. Enquanto estamos vendo um filme, não temos consciência disso. No entanto, participamos com nossos sentimentos no que acontece na tela. Mas o filme acaba, e é aí que algo começa. Não durante, mas depois! Vem aí algo a seguir... O cinema é todo aquele sentimento que se desenrola ao longo do tempo, que nos leva para longe e põe a nossa alma em movimento. A marca do que este movimento produziu em nós é o que deixamos como memória. É volátil e muito subjetivo. E todos saem com o seu próprio filme. É isso que existe, não o filme. O cinema é algo muito solitário.

*
 
O cinema também está na adolescência, como os meus personagens. Há um tempo em que o cinema experimenta todas as portas que se abrem. Eu procuro, quero tentar coisas... correndo o risco de todos os erros, todas as inseguranças, todas as indecisões.

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É como a luz. Imaginemos que a luz do sol é esperada no filme e que no dia da filmagem chove. Como é que encontramos o sol para o pôr lá? Essa é a bela questão do cinema. O sol, está ali! Temos de o procurar. Tens de deixar as portas abertas para deixar entrar as coisas. O cinema também me ensina a viver. Depende de mim, que estou à procura de soluções. 

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Pode ser muito cedo para falar de uma cultura cinematográfica portuguesa. Uma coisa é certa, somos um país de pessoas de poesia. Há raízes muito profundas. Elas estão lá sem que nós pensemos muito nelas. Não somos um país de músicos, mas somos um país com uma voz humana muito forte. Estamos errados quando queremos fazer um cinema que reproduza o que se faz em outro lugar, e que fascine. Nós, em Portugal, vivemos durante muito tempo com janelas fechadas, acreditando que tudo estava acontecendo em outro lugar, no exterior. Sob Salazar, não tínhamos livros, não podíamos falar. Tudo era proibido. Estava tudo noutro lugar. Então, de repente, tudo aconteceu. Foi emocionante, finalmente tivemos a oportunidade de ler tudo. De repente, o sonho vem até você. Tu estás feliz. Queres cantar como o Mick Jagger, mas não está bom. Queres filmar como o Spielberg, mas não está bom... Há vinte anos que somos bombardeados por aquilo que está a ser feito no outro lado. E ainda estamos em choque com essa emoção que nos faz querer deixar tudo entrar ou deixar sair. É o caos..., mas a poeira assentará e voltaremos para nós mesmos. Não estou interessada em fazer um cinema como os outros. 

Artigo retirado da Revista 24 Images - Les cinémas du Portugal No. 110, primavera de 2002. Traduzido por Waleska Antunes.

quinta-feira, 18 de julho de 2019

Cineclube do Atalante: A Vingança de Uma Mulher

O Cineclube do Atalante celebra em julho a obra da diretora portuguesa Rita Azevedo Gomes com a exibição de dois de seus filmes, terminando neste sábado: 

A Vingança de uma Mulher, de Rita Azevedo Gomes


Europa, século XIX. Roberto, um dândi entediado, conhece uma cortesã que lhe revela algo absolutamente inesperado: ela foi, em tempos, a esposa do duque de Sierra Leone. Depois de o seu marido assassinar o grande amor da sua vida, jurou a maior e mais cruel vingança de uma mulher: atacando a sua honra, torna-se prostituta. Aquele encontro perturbará Roberto, que reconhece o vazio de toda a sua existência por nunca ter conhecido o verdadeiro amor. O filme é uma adaptação livre de um dos mais famosos contos do francês Barbey d'Aurevilly (1808 - 1889). 

Dirigido por Rita Azevedo Gomes.



(A Vingança de uma Mulher: POR, 2012 - 100 min. Com Rita Durão, Fernando Rodrigues, Isabel Ruth)

Serviço:
Sábado, 20 de julho
Às 16h
Na Cinemateca de Curitiba
(Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174 - São Francisco)
(41) 3321 – 3552
ENTRADA FRANCA

Realização: Coletivo Atalante

sexta-feira, 12 de julho de 2019

Clube do Filme: O Desprezo

O Clube do Filme na Casa do Contador de Histórias está de volta em julho. À semelhança de um clube do livro, toda quarta quarta-feira do mês nos encontramos para a discussão de um filme e textos relacionados. Com foco na Nouvelle Vague, o Clube se propõe a discutir as renovações técnicas, temáticas e filosóficas propostas pela crítica da época e seu cinema, que tomou de assalto a França e o mundo.

Neste mês, o ponto de partida é  "O Desprezo" (1963) de Jean-Luc Godard.



É dessa convicção fundamental formulada por Godard, segundo a qual o cinema é o definitivo por acaso, que decorrem de certo modo todas as outras. O cinema é primeiro uma arte do encontro – entre a ideia e o real, entre a pessoa do ator e o personagem –, e nesse encontro é preciso sempre confiar no real, nos acidentes, no que resiste, no contingente. 
Alain Bergala, em "Rosselini Godard: Qual herança?"

A partir deste filme de Godard, abordaremos as heranças e recusas que formaram os gostos da Nouvelle Vague, bem como seu trabalho com o corpo dos atores e na montagem de seus filmes, entre outros temas.

 
"O Desprezo" foi lançado no Brasil em DVD,
disponível em locadoras e sebos. Também é possível encontrá-lo no YouTube (com legendas). Qualquer dúvida, estamos aqui para ajudar. 

Os textos para leitura (recomendada, não obrigatória):
 
1) "Rosselini Godard: Qual herança?" de Alain Bergala (páginas 47-56 do Catálogo da Retrospectiva Jean-Luc Cinema Godard 2015).
2) "O Corpo" de Jean Douchet (Disponível aqui).
3) "Montagem, minha bela inquietação" de Jean-Luc Godard.

Serviço:
Clube do Filme na Casa do Contador de Histórias
"O Desprezo" (Le Mépris, 1963), de Jean-Luc Godard
Dia 24/07 (quarta quarta-feira do mês)
Das 19h15 às 21h45
Na Casa do Contador de Histórias
(Rua Trajano Reis, 325, São Francisco - Curitiba)
ENTRADA FRANCA
* Devido ao horário, não será exibido o filme na íntegra, mas alguns trechos (do filme indicado, de outros) ou mesmo curtas devem ser apresentados como pontos relevantes para a conversa.

Realização: Coletivo Atalante e Casa do Contador de Histórias

sábado, 6 de julho de 2019

Terror de te amar

por Luís Miguel Oliveira


Um amor adolescente, sem tempo e sem espaço, foge para a floresta encantada dos contos de fadas. Frágil como o Mundo, de Rita Azevedo Gomes, também é assim: singular e solitário. Mas as suas razões para existir estão expressas em cada plano. 

Frágil como o Mundo é a segunda longa-metragem de Rita Azevedo Gomes, mais de dez anos depois de O Som da Terra a Tremer, uma primeira obra que nunca conheceu estreia comercial nem conseguiu furar uma reduzidíssima visibilidade. Frágil como o Mundo será, portanto, para a generalidade do público, a descoberta de um universo próprio e original - pelos caminhos percorridos por Rita Azevedo Gomes neste filme, talvez só tenha andado algum João César Monteiro. 

Frágil como o Mundo traz um universo feito de uma fusão de imaginários, onde se misturam o romantismo sofisticado e as lendas populares, o cinema e a poesia, a realidade e o sonho. É um filme que inventa um tempo e um espaço - "o cinema é o sítio certo para representar a coexistência das pedras e dos fantasmas", diz a realizadora, e essa coexistência é das impressões mais fortes que o filme deixa. 

A história contada é a de um amor adolescente, um rapaz e uma rapariga que gostam um do outro mas não podem estar juntos, pelas mais diversas razões. Vêem-se, também eles, obrigados a "inventar" um tempo e um espaço - uma espécie de fuga para a floresta, encantada como nos contos de fadas. Mas também isso deixa de ser suficiente, e tudo tem que passar para um tempo e um espaço já para lá de qualquer realidade física, já para lá dos corpos: a morte, como território de sonho, como lugar de uma harmonia finalmente tornada possível. 

Diz Rita: "Este filme já andava a trabalhar comigo há muitos anos. Talvez desde 1993, através dum recorte de jornal. Uma notícia sobre um casal de miúdos que apareceu morto, com uma fotografia enorme de uma azinheira no Alentejo - aparentemente não havia nenhuma razão para eles se matarem, portanto não havia nenhuma resposta, ficava tudo em suspenso. Não havia sangue nem qualquer sinal de violência. Havia um enigma, um mistério". 

E "a partir daí, claro que tudo vem ter connosco". 

Encontros. "Tudo vem ter connosco" - para Rita Azevedo Gomes Frágil como o Mundo é um filme feito de "encontros" ("como na vida, os encontros dão-se ou não se dão"). Encontro com memórias pessoais, encontros com "coisas" que a acompanhavam e a acompanham desde há muito. Como a poesia: "O poema da Sophia [de Mello Breyner] que dá nome ao filme também já estava 'escolhido' antes. É do que trata o filme, 'terror de te amar num sítio frágil como o mundo'. São coisas que nos acompanham a vida toda, situações que já vivemos antes de elas realmente acontecerem, como a realidade dos sonhos...". 

Sophia dá o mote para o filme, mas a Menina e Moça de Bernardim Ribeiro também ocupa um lugar fundamental: "Tive a sensação estranha de que Bernardim Ribeiro escreveu isto para mim, para este filme... é um dos tais encontros. Eu sabia o que é que ia dizer, andava à procura de uma voz, e de repente apercebo-me que já estava escrito, pelo Bernardim". 

Mas ainda há o cinema, e se Frágil como o Mundo não é um filme de cinéfilo na acepção mais redutora do termo, se não há "citações" nem piscadelas de olho à erudição do espectador, é um filme que parece conservar uma memória, uma lembrança, de muitos dos filmes de que a realizadora gostou e que a acompanham: um pouco de Werner Schroeter (foi quando viu Eika Katappa, nos anos 70, que Rita Azevedo Gomes percebeu "que o cinema também servia para isto", e mais tarde trabalhou na rodagem de O Rei das Rosas), um pouco de John Ford (a casa dos avós, filmada com aquele sentido de comunidade simultaneamente austero e caloroso), um pouco de A Sombra do Caçador (e de todos os seus ascendentes, provavelmente até chegar a Nosferatu), um pouco de Elia Kazan ("consigo imaginar-me facilmente a sair do Império, tinha 13 anos, impressionadíssima com o Esplendor na Relva"). 

Tudo isto está no filme (e ainda se poderia falar da música e da pintura) como recordações mais ou menos vagas, trabalhadas como se se passassem a inscrever numa simbologia pessoal e intransmissível - o que quer dizer que nunca se sente nem o seu peso nem o peso de uma "caução", mas que tudo se organiza, tudo se torna orgânico e faz parte de um mesmo corpo, indivisível e irredutível em parcelas. Para se perceber bem o que isto quer dizer, atente-se por exemplo nos belíssimos planos do corpo da rapariga a boiar rio abaixo, enquanto a narração em "off" diz um excerto de Bernardim Ribeiro. 

Perdas. Ao mesmo tempo, Frágil como o Mundo é marcado por uma fortíssima impressão de perda. O plano inicial, uma panorâmica (ainda a cores, antes de se mergulhar no preto e branco) que "varre" o interior de uma casa em ruínas, remete para um passado longínquo: "Essa panorâmica é uma pergunta: 'onde é que está?'. Não quero acreditar muito que se perdeu, tem que estar algures no meio das ruínas. Como a frase que se ouve mais à frente: 'não sei como será o amor daqui a mil anos', mas será. Não acredito que as coisas se percam, acho que há é um esquecimento, como se estivéssemos esquecidos de alguma coisa". 

Um filme sobre a memória, sobre a necessidade de lembrar para recuperar? "O cinema é o sítio certo para isso", volta a dizer Rita, e Frágil como o Mundo lança-se, a partir desse plano inicial, numa espécie de tempo suspenso, que ou não é tempo nenhum ou é o tempo todo; é um tempo de cinema, desordenado e virado do avesso, um tempo que tem a mesma realidade do tempo dos sonhos e do tempo das memórias. "O que é que é mais verdade?", pergunta Rita, "a lenda da princesa moura ou a pedra onde se sacrificavam carneiros? É importante que o filme seja a preto e branco, como maneira de fazer coexistir, ou de reunir, essas duas realidades". 

Aparentemente, Frágil como o Mundo também é um filme onde existe uma relação com as coisas bastante mais serena do que em O Som da Terra a Tremer. "Uma relação mais serena, não sei. Talvez haja maior consciência... Por um lado, será mais sereno, por outro levanta outra vez um turbilhão de coisas que estava em repouso. Uma maior consciência do que estava a fazer, das relações entre as coisas que estava a trabalhar. Neste aspecto há um olhar diferente, tenho mais a noção do que é que estou a ver". 

Para a realizadora, os dois filmes são obviamente diferentes, mas mantêm uma relação estreita: "Têm a ver comigo, têm a ver com a minha evolução por um lado e com a minha estagnação pelo outro. Não os desligo, nem percebo o que são os dez anos entre os dois. Havia uma espécie de chaga aberta em relação ao outro, que ficou um bocado apaziguada por ter feito este. Uma chaga que tinha a ver com o que aconteceu ao filme, mas não só; também tinha a ver com as questões que estavam nele. Havia coisas que, por um lado, ganhavam distância, mas por outro não me largavam, como alguém que nos morreu mas que ainda cá está". 

Talvez seja essa "maior consciência" aquilo que permite que Frágil como o Mundo ouse entrar nos terrenos mais delirantes, optar pelas soluções mais arriscadas, sem nunca perder o pé e sem que nunca se esvaia a sensação de uniformidade e de justeza - como na formidável série de planos em que, por intermédio das mais elementares e ancestrais trucagens (fundidos e sobreposições), se inventa um mundo de flores e de fantasmas. 

"Eu sei porque é que as coisas lá estão. Há uma razão minha, pode ser completamente solitária e não servir para nada, mas há uma razão minha" 

Quanto ao filme, também não há dúvida que é completamente solitário, e provavelmente vai sofrer por isso. Mas as suas razões para existir estão expressas em cada plano. E há-de haver gente a quem essas razões sirvam para alguma coisa. Isso, somos capazes de apostar.
 
Publicado em Ípsilon, 20 de Julho de 2001. Disponível em https://luckystarcine.blogspot.com/2019/06/fragil-como-o-mundo-2001-de-rita.html.

quinta-feira, 4 de julho de 2019

Cineclube do Atalante: Frágil como o mundo


Dois jovens se amam. O desejo de estarem juntos obriga-os, numa espécie de jogo infantil, a fugirem de casa, das pessoas e do mundo. Isolados numa floresta, afastam-se de tudo.

Dirigido por Rita Azevedo Gomes.

(Frágil como o mundo: POR, 2002 - 90 min. Com Maria Gonçalves, Bruno Terra, Duarte de Almeida. 14 anos.)

Serviço:
Sábado, 06 de julho
Às 16h
Na Cinemateca de Curitiba
(Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174 - São Francisco)
(41) 3321 – 3552
ENTRADA FRANCA

Realização: Coletivo Atalante 

quarta-feira, 3 de julho de 2019

Epifanias de Bresson: trechos

Por Evaldo Mocarzel



[...] Bresson enveredou por uma busca minimalista que poderia ser definida como “criação por subtração”, se despojando de todo tipo de excesso para tentar vislumbrar o “real” no inesperado e na essência epifânica da imanência de todas as coisas, sobretudo nos atos falhos dos não-atores, ou melhor, “modelos”, que passou a dirigir em seus sets de filmagem, como um pintor. [...] Bresson rejeitou o seu primeiro longametragem, “Os Anjos do Pecado”, com diálogos de Jean Giraudoux, de 1943. O primeiro motivo mais explícito é a interpretação teatral das atrizes, algumas da Comédie Française. Quando abandonou o espetáculo e defendeu a ideia de que a arte cinematográfica é uma escritura e que deveria ser chamada de “cinematógrafo”, o cineasta estava principalmente tentando se afastar do que ele chamava de “teatro filmado”, ou melhor, “cinema”. Nesse primeiro longa, há ainda algo que também passou a incomodar profundamente o mestre francês: o cheiro de madeira dos cenários. A locação se tornou uma das primeiras obsessões do estilo rigoroso de Bresson. Embora com uma certa afetação teatral e com muitas sequências rodadas em estúdio, “Os Anjos do Pecado” é uma obra que é puro Bresson. Temas como a morte como única possibilidade de transcendência, como única chance de vislumbrar um aceno de Deus, além do paradoxo da prisão como libertação, tudo isso está lá pulsando e revelando a face mais sincera desse grande artista sempre tão fiel a si mesmo, tentando encontrar a “lucidez” das tragédias gregas no desalento e no pessimismo suicida de seus personagens.

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Jean Sémolué reproduz em seu livro um depoimento de Bresson a Jean Quéval: “É o ‘interior’ que comanda. Sei que isso pode parecer paradoxal numa arte que é toda ‘exterior’. Mas vi filmes em que todo mundo corre e que são lentos. Outros em que os personagens não se agitam e que são rápidos. Constatei que o ritmo das imagens não tem o poder de corrigir toda lentidão interior. Só os nós que atam e desatam no interior dos personagens conferem ao filme seu movimento, seu verdadeiro movimento. É esse movimento que eu me esforço a tornar aparente por alguma coisa ou alguma combinação de coisas – que não seja só um diálogo”. Outro depoimento de Bresson resgatado pelo crítico em seu estudo: “O cinema sonoro inventou o silêncio. Acho maravilhoso e cômodo um diálogo explicativo. Porém o ideal seria de preferência que o diálogo acompanhasse os personagens, como o guizo acompanha o cavalo, o zumbido, a abelha”. Uma frase do mestre francês do livro “Notas sobre o Cinematógrafo”: “É com o nítido e o preciso que você forçará a desatenção dos desatentos de olho e de ouvido”. 

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Para Bresson, o teatro é a exterioridade, enquanto a arte cinematográfica, ou melhor, o cinematógrafo, é a interioridade, o íntimo, a profundidade do ser. “As palavras devem ser usadas quando não podemos expressar as coisas através de imagens”, disse o cineasta no mesmo programa. “As palavras devem ser usadas quando queremos penetrar no coração das coisas”, ensinou, destacando que o som nos filmes engloba três tipos de modalidades: ruídos, música e diálogo. “Esses três elementos precisam do silêncio para existir e expressar algo”. E o diálogo era uma espécie de último recurso no cinema de Bresson.

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“É preciso dissociar o modelo da ação do filme para que coisas inesperadas aconteçam”, disse no mesmo programa na época do lançamento de “A Grande Testemunha”. Completamente diferente do gesto esculpido e das falas decoradas do teatro. “Como copiar a vida sem imitá-la?”, ele se pergunta no mesmo programa. “Se é uma imitação não pode ser real”, assegura, ressaltando que a câmera é um aparelho maravilhoso que registra até mesmo o que o olho não vê. Bresson jamais mostrava a seus modelos os copiões do dia anterior para que não ficassem pensando, para que não ficassem racionalizando o que fizeram, para que transitassem no set utilizando apenas a própria intuição. Ele somente trabalhava com um determinado modelo uma única vez, pois poderia correr o risco de se deparar com cacoetes e maneirismos no filme seguinte. A única exceção foi Jean-Claude Guilbert, que trabalhou duas vezes com o mestre francês: em “A Grande Testemunha” (1966) e “Mouchette” (1967).



O crítico (Jean Sémoulé) lembra que nesse filme (Mouchette, 1967) Bresson cria um paralelo entre os animais de caça e Mouchette: perdizes e lebres sendo mortas antes de Mouchette se matar. Segundo Sémolué, Bresson não detectouem Nadine Nortier, a menina que vive Mouchette, “a natureza de uma intérprete para fazê-la atuar, mas captou a natureza de um ser na sua disponibilidade nata”. Como Balthazar, de “A Grande Testemunha”, “Mouchette descobre a vida ao ser confrontada com diferentes vícios sucessivamente, antes de morrer, com ela, na natureza”, compara o crítico. “Mas Mouchette julga os homens. Pelo menos, fica revoltada”, ressalta. 

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Sémolué disseca as camadas dramatúrgicas do roteiro de “Mouchette”: “Fatos são apenas fatos, sem dúvida, mas por que eles se dão exatamente naquele exato instante? A mãe morre justamente quando a filha precisa dela mais do que nunca e vai lhe falar dessa necessidade. A mulher da mercearia, a mulher do guarda, a sacristã, sobretudo, aparece no caminho de ‘Mouchette’ para fazê-la dizer o necessário para levá-la ao suicídio, como três parcas tecendo o fio do seu destino, como as três bruxas empurrando Macbeth na sua queda. A velha que ‘gosta dos mortos’, a mais impressionante das três, parece a morte personificada: seca e encarquilhada. Com uma voz miúda e um olhar agudo, ela fala de aromatizantes e de mortalha. Estaria farejando em ‘Mouchette’ a morte se aproximando? A menina estaria enfeitiçada por essas estranhas palavras, por esse momento não menos estranho? Bresson não interpreta os fatos; ele se limita a mostrálos”. 

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Sémolué resgata uma frase de Espinoza ao se referir à maneira como Bresson compõe seus quadros com objetos: “São os objetos que fazem com que percebamos. Somos afetados em graus diferentes por cada um deles e conforme a proporção de repouso e de movimento de que eles se compõem”. Uma dica, diga-se de passagem, para qualquer diretor de arte. Como um pintor, Bresson pensava a tela de cinema como uma superfície a cobrir com volumes, texturas, linhas, movimentos e silêncios. “Construa seu filme sobre o branco, sobre o silêncio e sobre a imobilidade”, uma de suas frases mais clarividentes do livro “Notas sobre o Cinematógrafo”. Em 83, em entrevista a Le Nouvel Observateur, Bresson lembrou um de seus princípios: “Quanto ao som, ele fornece o espaço, o relevo. Ele chega e a tela se cava, abrindo a terceira dimensão. Enquanto a música aplaina a imagem, a torna uma superfície”. Para o mestre francês, o som é 3D em seu sentido mais pleno, mais linguístico, mais essencial. 

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O estilo de Bresson é único, irreproduzível. No cinema contemporâneo, em que a ficção propriamente dita parece precisar de muletas documentais para legitimar a “veracidade” das imagens que estão sendo criadas, Bresson está mais “moderno” que nunca, sobretudo a aparência documentária dos seus planos aplainados, condensados, sempre em estado de contenção, de espera e de reserva. Godard costuma dizer que o mestre está para o cinema francês como Dostoievski está para o romance russo e Mozart, para a música alemã. Para finalizar, algumas frases de Bresson extraídas do livro “Notas sobre o Cinematógrafo”: 

“Criar não é deformar ou inventar pessoas e coisas. É estabelecer entre pessoas e coisas que existem e tais como elas existem, novas relações”. 

“Sua imaginação vai mirar menos os eventos que os sentimentos, querendo esses últimos os mais documentais possíveis”. 

“O futuro do cinematógrafo pertence a uma raça nova de jovens solitários que filmarão com seu último centavo e sem se deixar enganar pelas rotinas materiais do ofício”. 

Texto na íntegra neste link: https://carmattos.com/2012/05/08/bresson-por-mocarzel/ acesso em 27 de junho de 2019.