segunda-feira, 27 de maio de 2013

All That Jazz - O Show Deve Continuar, de Bob Fosse


All that jazz, EUA, 1979

Será que um filme indicado a nove Oscars (tendo ganhado quatro), e vencedor da Palma de Ouro em Cannes precisa realmente ser revisto? Há ainda o que se dizer depois de tamanho reconhecimento? No caso de All That Jazz a resposta não poderia ser mais positiva, e em especial pelas circunstâncias conjunturais e estruturais que o ligam a hoje, a 2002. Quais circunstâncias são essas? Estruturalmente falando, a história do cinema americano contemporâneo (e por definição do cinema mundial). Conjunturalmente o recente relançamento de Apocalypse Now, que trouxe aos cinemas um dos outros concorrentes, junto com o filme de Fosse, ao Oscar de melhor filme em 1979; além do ainda mais recente lançamento do Episódio 2. De que formas estas idéias se unem? É mais simples do que parece.
Na década de 70 o cinema americano viveu um de seus momentos centrais de definição, talvez como antes só tenha acontecido na década de 20/30 (que marca o início do domínio do mercado mundial e do estabelecimento de Hollywood como capital do reino do cinema). Na verdade os EUA como um todo viviam um momento central: saídos da ressaca do fim dos anos 60, com todas as suas revoluções (sexuais, políticas, raciais, sociais), viam os valores mais caros a si, tão prezados e louvados nas décadas de 40 e 50 com especial ênfase no cinema como forma de construção do imaginário do american way of life, passarem a ser frontalmente questionados. O cinema especialmente vivia uma crise ainda maior, com a popularização rapidíssima da televisão. A brecha aberta por essa crise, junto com a politização crescente e a chegada ao "poder" da primeira geração de cineastas criados nas universidades de cinema ou como "cinéfilos", assistindo e problematizando os clássicos de Hollywood e também os filmes estrangeiros que a eles chegavam, tudo isso permitia que houvesse um clima altamente favorável para a renovação das propostas do cinema americano dominante.
É neste momento (a partir do fim dos anos 60, mas com seu ápice decididamente nos anos 70) que surgem as primeiras obras de uma geração que une Martin Scorsese, Francis Ford Coppola, Woody Allen, Michael Cimino, Robert Altman, Terence Malick, Brian De Palma, Mike Nichols, ou ainda é quando fazem alguns de seus principais filmes John Cassavetes, John Schlesinger, Sidney Lumet. A liberdade que rondava a criação dos filmes em plena Hollywood só podia ser entendida dentro deste contexto de relativa crise de reavaliação, onde o questionamento era parte natural do momento. Tudo estava por ser posto em cheque: o país, o mundo, o ser humano, o cinema.
Só isso explica que, no mesmo ano, dois verdadeiros ensaios filosófico-audiovisuais, como eram Apocalypse Now e All That Jazz,não só fossem realizados por grandes estúdios, mas também lançados com sucesso e concorressem a tantos Oscars e ganhassem ambos a Palma de Ouro em Cannes. Claro que não convém aqui esquecer os detalhes específicos das dificuldades enfrentadas pelos diretores de ambos os filmes, não só no que tange a realização dos mesmos, como com relação ao relacionamento com os donos dos estúdios. Mas, ainda assim, os filmes foram feitos, lançados e vistos, e isso em si mesmo é um fenômeno.
Se poderia julgar pelo conjunto das obras e de tantos cineastas consagrados naquela década, que se apresentava ao cinema americano um novo caminho de contestação, reflexão e liberdade narrativa e estética como nunca antes visto. Mas, também não se pode ignorar que dos mesmos bancos universitários e cadeiras de cinéfilos, surgem nesta década outras duas figuras que ajudariam ainda mais a mudar o cinema americano do futuro: George Lucas e Steven Spielberg. Porque, se os diretores citados mais acima viveram, em sua maioria, o momento-ápice de suas carreiras naqueles anos 70, estes dois apenas estabeleceram os alicerces não só para seu domínio pessoal sobre o cinema americano de décadas seguintes (até hoje, como se pode ver pelo fato de ambos terem enormes sucessos de bilheteria recém-lançados no verão americano de 2002, enquanto a maioria dos outros citados está sem filmar, ou sem um grande sucesso há anos), mas também uma virada mais do que estética, e sim de direcionamento no cinema mundial. Principalmente com Guerra nas Estrelas e Tubarão os dois reinventaram o cinema americano, trazendo para ele o conceito do "filme de verão", da aventura e ficção científica como gêneros "nobres", do espectador-ideal não mais como o adulto mas sim o adolescente. Os anos 80 e 90 viram a pragmatização extrema destas noções, muito mais do que seus criadores podiam prever (façamos justiça, aliás, em dizer que ambos não estiveram à frente deste processo conscientemente, e que seus diluidores são infinitamente inferiores a eles), levando ao cinema que vemos hoje. Um cinema onde Brian De Palma e David Lynch precisam ir buscar financiamento na França, onde Coppola, Cimino e Nichols não têm lugar, onde Scorsese parece tentar manter-se vivo como pode, e onde Allen se repete a todo filme.
Foi muito em função do que aconteceu em Hollywood nos anos 70 que podemos entender o cinema americano que vemos hoje. Ali, claramente, o cinema pôde ver duas correntes distintas de suas potencialidades. Seria muito possível dizer que não eram excludentes, e que poderiam conviver pacificamente, mas não é o que a história mostrou. Uma das correntes foi praticamente sufocada pela outra, a possibilidade da arte e da experimentação pela indústria do lucro exacerbado (é claro que há inúmeras "exceções de regra", mas tratamos aqui, grosso modo, de um retrato macro da produção e seu sistema). Assim, Apocalypse Now e All That Jazz, que podiam ser lidos à época como o ápice da consolidação de uma liberdade de linguagem inédita no grande cinema americano, eram na verdade o canto do cisne de uma década. O que, aliás, se visto pelos temas e idéias trazidas em ambos os filmes, parece absolutamente adequado, e quase premonitório.
Para fechar esta idéia, nada melhor do que a história contada por Roy Scheider no comentário que acompanha o DVD do filme de Bob Fosse: Scheider, também ator de Tubarão, foi assistir a uma sessão de All That Jazz com Spielberg. Ao final, o diretor estava eufórico com o que tinha visto. Dias depois, Scheider recebe uma ligação de Bob Fosse, dizendo que Spielberg tinha ligado para ele. "Você sabe o que ele me disse?", perguntou Fosse. "Que eu devo estar louco de terminar um filme daquele jeito, que eu vou perder milhões de dólares de bilheteria por conta disso." Quem viu o filme sabe: não havia outro jeito de encerrar um filme que, afinal, trata de morte acima de tudo. Mas, o "novo cinema" que então engatinhava já tinha o seu ideólogo: deve-se trocar coerência por lucro, sempre. Aqui jaz.
* * *
Mas, vamos deixar de lado o fator histórico, tão relevante neste caso, e falar um pouquinho do filme em si. Afinal, o que torna All That Jazz uma obra tão admirável? Para começar, a coragem de seu autor (que de fato pode ser creditado como tal, por ser diretor, roteirista, coreógrafo) de fazer, basicamente, uma autobiografia no cinema. Mas, não apenas uma autobiografia congratulatória ou nostálgica, e sim a biografia de um homem que é tão destrutivo com os outros quanto consigo próprio por ser, basicamente, um viciado em viver ao máximo, o que o coloca muito perto de morrer. Nesta biografia Fosse tem a coragem de retratar o seu próprio processo clínico, que o levaria eventualmente à morte (e assim o filme pode ser considerado, mais uma vez, premonitório), assim como apresentar de forma absolutamente próxima do real uma série de pessoas que estavam ainda vivas e muito perto dele. Além de se mostrar um viciado, mulherengo, manipulador, perfeccionista, entre outras qualidades.
Somente esta coragem, porém, não levaria o filme a um patamar especial, pois poderia resultar em simples sensacionalismo ou na crítica ácida e ao mesmo tempo vazia e moralista de um sistema, de um "negócio" ou de uma forma de vida. Porém a esta coragem se somava uma dose ainda maior de generosidade e entrega à vida, que transborda de cada sequência do filme. Só assim Fosse consegue transformar a história de uma morte anunciada numa ode a estar vivo. Na época, ele foi muito criticado justamente por pintar um retrato final onde sua morte era gloriosa e ele era chamado de egocêntrico. Bom, todo artista é, a priori, um egocêntrico. No entanto, o que faltou enxergar é que a morte era gloriosa apesar de profundamente dolorida, e isso se dava por se tratar de um personagem que ao invés de se entregar a ela enfrentou-a não com um desafio tolo, mas como um complemento natural ao que se optou na vida.
É assim que o filme consegue fugir do moralismo barato reinante, segundo o qual um personagem sempre sofre por ter sido infiel, por ser viciado em drogas, alcoólatra, mau pai ou marido. O protagonista de Fosse sofre sim, e muito, em consequência disso tudo. Mas não se arrepende nem por um segundo porque suas "fraquezas" são o que o manteve vivo a cada dia, o que o fazia levantar da cama e querer viver para início de conversa. Quando todas as campanhas anti-drogas ou a favor dos valores familiares fracassam por tentarem retratar apenas o inferno destas situações, Fosse é realista: estas coisas matam sim, mas antes disso elas completam muitas vezes um ser humano, e fazem ele viver. Cabe a cada um decidir até onde está disposto a ir, mas que ninguém se prive do que precisa viver só porque isso "mata". Viver mata, e ainda assim nós insistimos em fazê-lo.
E o mais incrível: todas estas questões não estão num filme preto e branco, escuro e cheio de fog feito na Suécia, e sim num musical hollywoodiano. Assim como Coppola no Apocalypse Now, o que mais impressiona em All That Jazz é justamente que ele consegue tocar em todas estas notas e muitas outras, sem deixar de ser um autêntico exemplar do maravilhamento típico do cinemão americano mais popular. Onde Coppola virava as convenções do cinema de guerra e aventura de cabeça para baixo, e ao mesmo tempo que refletia sobre o vazio da existência criava um espetáculo audiovisual hipnotizante e deslumbrante, Fosse faz o mesmo com o estilo musical: reinventa as possibilidades e regras que regem o andamento dos números, a utilização dramática e/ou cômica da música, os momentos adequados a uma canção. Encanta e enlouquece, simultaneamente.
E, acima de tudo, filma bem demais. Cada sequência é uma aula de decupagem, de montagem, de ritmo. A câmera se integra com seus atores e bailarinos de forma quase hipnótica, os cortes antecipam ou interrompem ações. Há tantas sequências antológicas no filme, e ao mesmo tempo sem que cada uma queira simplesmente chamar atenção para si: todas estão completamente integradas a um projeto. Assim, são igualmente fenomenais os grandes números musicais (como o inicial, o final e o do ensaio da peça) e as pequenas cenas entre os atores. Atores, aliás, fantásticos, capitaneados por um Roy Scheider possuído. Mas, mais do que isso, atores que a câmera lê como poucas, sabendo onde está a inflexão mais importante, o momento mais significativo, a reação mais expressiva. Assim é que cenas de dois personagens como a de pai e filha dançando, ou a da ex-mulher com o ex-marido, ou a namorada na cama com o namorado, ou o produtor com o cineasta, ou em especial um pequeníssimo momento entre o personagem principal e uma mulher moribunda no hospital são tão completamente apaixonantes como os grandes números.
Da primeira à última sequência All That Jazz exala aquela que talvez seja a mais rara e necessária qualidade de um filme: a simples necessidade que seu autor tenha de que o filme exista. Cada fotograma é sentido, é vivo, é pulsante, é humano, é vital. Humano como são todas as tantas falhas de caráter deste personagem, que só o tornam mais e mais fascinante. All That Jazz é um filme para quem ama cinema, mas acima de tudo para quem ama a vida e tudo que faz parte dela, incluída aí a morte. Iguala vida e arte, como deve ser.

Eduardo Valente
(Texto original: 
http://www.contracampo.com.br/41/allthatjazz.htm)

sábado, 25 de maio de 2013

Cine Fap: "O Show Deve Continuar", de Bob Fosse



Relato semi-autobiográfico da vida do escritor, diretor e coreógrafo Bob Fosse. No filme, ele sofre um enfarte e, entre a vida e a morte, revê momentos de sua vida, transformando-os, em sua imaginação em números musicais.

Serviço:
dia 27/05 (segunda)
às 19h00
na Auditório Antonio Melillo
(Rua dos Funcionários, 1357, Cabral)
ENTRADA FRANCA

*Comentador convidado: Miguel Haoni (Coletivo Atalante)

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Cineclube Sesi: Cinema Experimental

Programação:
6/6 - Curtas de Hans Richter
(Rhythmus 21, Rhythmus 23, Filmstudie, Inflation, Vormittagsspuk, Rennsymphonie, Alles dreht sich, alles bewegt sich) 
13/6 - Curtas de Stan Brakhage
(Cat’s Cradle, Mothlight, Dog Star Man – Parte 3, Eye Myth, The Wold Shadow, Night Music, The Dante Quartet, I…Dreaming, Glaze of Cathexis, Stellar, Black Ice, Lovesong) 
20/6 - Curtas de Martin Arnold (Pièce Touchée, Passage à l’acte,  Alone. Life Wastes Andy Hardy)
27/6 - Curtas de Peter Tscherkassky
(Motion Picture, Manufraktur, L’arrivé, Outer Space, Dreamwork, Instructions for a Light & Sound Machine)  

Serviço:
Toda quinta de junho
19h30 
na Sala Multiartes do Centro Cultural do Sistema Fiep
(Av. Cândido de Abreu, 200, Centro Cívico)
ENTRADA FRANCA

Realização: Sesi 
Apoio: Atalante 

O Demônio das Onze Horas / A Chinesa, de Jean-Luc Godard


Pierrot Le fou, França, 1965, Cor

La Chinoise, França, 1967, Cor
Pierrot e Guillaume, meus amigos
Às vezes acontece da obra de um realizador ser incorporada por certos discursos que acabam ressignificando tudo aquilo que esse próprio realizador já construiu. No caso do cinema de Jean-Luc Godard, esses discursos se tornaram dominantes e insistem em nos dizer que o importante é a desconstrução da narrativa, a relação de amor e ódio com a linguagem dominante, o hermetismo, a multiplicidade de leituras, etc. Não que haja nessas leituras algo de explicitamente errado: pelo contrário, são cavalos de batalha importantes e que encontram sempre nos filmes de Godard combustível suficiente para a busca de novas linguagens, fuga do óbvio, imbricação do cinema com outras artes e a própria afirmação do cinema como "arte nobre". O que essas leituras, no entanto, não deixam entrever é como assistir a um filme de Jean-Luc Godard é mais do que um passatempo lógico ou um quebra-cabeças difícil de montar: qualquer um de seus filmes, do começo de carreira mais palatável à proliferação difusa de signos e citações dos filmes mais recentes, são experiências emocionais muito fortes e irredutíveis a qualquer intelectualismo que se queira associar a eles (mesmo que o jogo associativo seja legítimo e, no caso em questão, prolífico). Cineastas eruditos, há vários. Experimentadores de linguagem, diversos. No entanto, aquilo que faz com que o nome de Jean-Luc Godard permaneça entre os maiores artistas do cinema é a extrema sensibilidade com que ele lida com a matéria cinematográfica para cativar em seus espectadores sentimentos até então pouco vistos e experimentados. Não é que seus filmes sejam complicados demais para a maioria dos espectadores; na verdade, eles são complicadosde menos.
Tomemos O Demônio das Onze Horas, tradução um tanto sem graça para Pierrot le Fou (Pierrot, o Louco). Sua sinopse, tão pequena, dá conta de toda a intriga do filme, e não há nada de especificamente difícil nela. Acontece que muitos de nós, espectadores habituais que somos de ficção tradicional, nos acostumamos a acreditar que a maioria das atrações de um filme decorrem de sua intriga. Pressuposto dos mais bobos, uma vez que nos dispomos a "parar" de ver a intriga num filme musical quando entra um número de canto e dança. Em Pierrot le Fou há números musicais fascinantes (Anna Karina cantando "Ma Ligne de chance" ou "Jamais je ne t'ai dit que je t'aimerais toujours"), e deles nos dispomos francamente a fruir. Mas em Godard tudo é musical, ou ao menos todas as situações exigem que nos aproximemos delas de maneira "musical". Quando Marianne chama Ferdinand de Pierrot e ele responde que seu nome é Ferdinand, isso existe muito menos em função de um significado escondido (a possível esquizofrenia do personagem, por exemplo) do que de uma simples refrão que povoa o filme e que não tem sentido nenhum além de dar charme aos olhos do espectador à relação dos dois.
Em A Chinesa, por exemplo, muitos tentam ver no filme um pastiche ou a glorificação dos personagens marxistas-leninistas que se enfurnam durante as férias num apartamento burguês para aprender a fazer a revolução maoísta na França. Caso notório de tentar ressignificar conteúdos ao invés de tentar ver o que lá está: os personagens de A Chinesa, jovens em processo de encontrar seu lugar no mundo, tateiam no escuro à procura de verdades, mas o que Godard filma é justamente a verdade dessa procura. E essa verdade não é muito diferente da verdade musical de Pierrot le Fou: estamos no mundo tentando povoar nosso cotidiano de coisas que nos interessam, mas o sentido completo dessa experiência nos falta (nos dois filmes, isso acontece de maneira geral porque o resto do mundo está preocupado demais em ganhar seu quinhão ou interpretar de forma fria e automática os papéis sociais que lhes são previamente destinados).
Ferdinand e Guillaume, Marianne e Véronique são personagens que saem de seu meio social porque não conseguem viver dentro dele. Mantendo-se dentro do conjunto de valores da sociedade, não haveria a necessidade de procurar nada. Traçando um ponto de fuga, deve-se buscar uma arma para viver: nomadismo em Pierrot, a política em A Chinesa. É uma constante em Godard que a vida dentro da sociedade impede a lilberdade (talvez daí a grande força de resistência que assumem seus filmes): a partir dessa fuga, então, existe a obrigação de seus personagens em construir para si mesmos um terreno de liberdade, não mais submetidos às limitações dos valores de classe média, e com ela atingirem movimentos de prazer e sofrimento próprios (um não está dissociado do outro). Alguns conseguirão (os heróis de Alphaville), outros não.
Un film en train de se faire/Um filme em processo de composição. Esse é o subtítulo de A Chinesa, mas poderia ser atribuído indiscriminadamente a qualquer filme de Godard (e, mais além, à maioria das mais liberadoras obras de arte). Marianne e Ferdinand, depois da partida vertiginosa, precisam "compor" uma nova forma de vida; o grupo de jovens que namora fielmente a ortodoxia chinesa (frontalmente oposta ao comunismo oficial da Europa naquele momento, cabe dizer) idem. Não só os filmes como os próprios personagens estão em processo de construção. Não há modus operandi para fazer funcionar um filme ou uma vida, ambos são aquilo que é feito na contingência, aceitando alguns dos dados que vêm se adicionar e recusando outros.
Sim, há muitas referências nos filmes de Godard: pode-se tentar reconhecer algumas ou simplesmente considerá-las como um amálgama que faz sentido sozinho, sem necessidade de notas de pé de página. Guillaume Meister é um personagem de um romance de formação de Goethe, Kirilov saiu das páginas de Dostoiévski, assim como em Pierrot le Fou há Aragon e Shakespeare. Nada é gratuito (saber do livro de Goethe adiciona ao filme o caráter de "filme de formação", por exemplo), mas ninguém precisa ser doutor em literatura para ter prazer em presenciar os caminhos e descaminhos dos personagens. Godard, considerado como "autor dos autores" do cinema, trabalha sempre numa linha de indefinição da autoria (trabalha declaradamente em cima de citações de outros autores), indefinição essa que converge com a forma como vê o mundo e como se vê (e como vê seus personagens) no mundo. Em chave romântica, essa forma poderia ser definida por uma das canções que Anna Karina interpreta em Pierrot le Fou (autoria de Phillipe Katerine): "Jamais diga que você vai me amar pra sempre / jamais me prometa me adorar por toda a vida / jamais troquemos essas declarações, me conhecendo e te conhecendo / fiquemos com o sentimento que nosso amor, dia a dia / que nosso amor é um amor sem amanhã". Nessa incerteza do amanhã, nessa indefinição, a arte e a vida se fazem.


"Sobre Pierrot le Fou, todo o fim foi inventado na hora, ao passo que o começo foi todo pensado. É uma espécie de happening, mas controlado e dominado. Dito isso, é um filme completamente inconsciente. Dois dias antes de começar a filmar, eu jamais tinha estado tão inquieto. Eu não tinha nada, quase nada, só o livro (Obsession, de Lionel White). E um certo número de locações. Eu sabia que seria perto do mar. Tudo foi filmado, digamos, como no tempo de Mack Sennett. Talvez eu esteja me separando progressivamente do cinema que se faz hoje. Quando vemos os filmes antigos, não dá a impressão que as pessoas trabalham entediadas, sem dúvida porque o cinema era algo mais novo."
"É exatamente porque Véronique percebeu que foi tudo uma ilusão que ela poderá transformar sua experiência em algo real. Quando ela fala doce e calmamente, ela fala como uma chinesa. Na embaixada chinesa eu fiquei impressionado com o tom doce de voz deles. O tom dela é o de um relatório de final de ano. Ela percebeu que não deu um grande passo adiante; ela subiu alguns degraus, mas não foi realmente um passo arrojado."
"Se o filme (A Chinesa) se fechar completamente no cinema e não dialogar com os militantes, é porque o filme é ruim e reacionário."
"Fazer filmes e escrever críticas são duas coisas diferentes, mas ligadas. A crítica tem uma função útil que não deve ser negligenciada: ela tem uma virtude purificadora. É em relação a si mesmo, primeiramente, que se deve fazer crítica, e depois em relação ao cinema. Eu me considero fazendo sempre crítica, e ela me serve da mesma forma."

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Leitura e Prosa. 25 de maio


Sábado às 19:00
DCE UFPR
R. General Carneiro, 390 - Centro, Curitiba
Sarau destinado à leitura e discussão de textos literários autorais e não-autorais. Traga seus textos e sua bebida (vinho ou seja lá o que for).


Para quem ainda não nos conhece: o Leitura e Prosa é um sarau literário organizado pelo Coletivo Atalante que ocorre nos últimos sábados de cada mês desde dezembro de 2011. Nossos encontros giram em torno da leitura e discussão de textos literários, textos estes que, não raro, nos deixam perplexos, e discussões que variam entre o ameno e cordial ao eufórico e caloroso. O encontro é livre, sem mediação e sem vozes de com timbres professorais, a ideia é proporcionar um espaço de troca de impressões e perspectivas assim como, jamais podemos esquecer, fruição do texto literário e de seus mais inusitados desdobramentos. Contamos com sua presença e participação.

OBS.: O Leitura e Prosa anterior teve de ser cancelado devido a um sentimento generalizado de luto que abateu seus organizadores, aos que foram no mesmo e acabaram encontrando as portas fechadas pedimos o seu perdão e compreensão.

terça-feira, 21 de maio de 2013

Cineclube Sesi: "O Demônio das 11 Horas", de Jean-Luc Godard


Nesta quinta-feira dia 23/05 o Cineclube Sesi apresenta "O Demônio das 11 Horas", de Jean-Luc Godard encerrando o ciclo Nouvelle Vague. No dia 06/06 começa o ciclo Cinema Experimental com uma seleção de curtas de Hans Richter.
Sempre com entrada franca!

Cineclube Sesi: "O Demônio das 11 Horas", de Jean-Luc Godard

Sinopse:
Casado com uma italiana e entediado com sua vida na alta sociedade, o professor espanhol Ferdinand foge em direção ao sul com Marianne, após um cadáver ser encontrado na casa dela. Eles caem na estrada e deixa um rastro de roubos por onde passam.

Sobre o filme:Jean-luc Godard é um dos grandes pilares do cinema francês e de toda a história desta grande arte. Quando David Wark Griffith empunhou sua câmera, na primeira obra adulta do cinema, “Nascimento de Uma Nação”, em 1915, nascia ali uma arte genuína, que defendia sua linguagem, suas unidades e sua autonomia. Os irmãos Lumière deram ao mundo a máquina foto-reprodutora da realidade, mas foi o corajoso cineasta americano que desbravou o até então ‘filho’ do teatro e o elevou a condição de arte. Após 45 anos do amadurecimento do cinema, na França, uma turma sorvia todos os gens da filmografia americana, e também percorriam diversos caminhos por quais diretores autorais deixavam suas marcas, de diferentes nacionalidades - Dinamarca, Itália, Japão, União Soviética - mas que tinham uma coisa em comum: ‘o respeito e fidelidade para com o cinema’. Nascia as páginas amarelas da famosa e sublime “Cahiers Du Cinema”, que depois deu como fruto uma grande turma denominada por jornalistas de “Nouvelle Vague”. E nesse terreno múltiplo, estava Jean-luc Godard, junto com seus confrades de ‘trabalho’: Jacques Rivette, François Truffaut, Claude Chabrol e outros sonhadores. “Acossado”, o primeiro longa de Godard, nasceu em 1959, de um roteiro que Truffaut havia feito sobre um fato real. A obra mistura elementos de detetive, comédia e suspense, só que de um modo sincopado demais para os padrões da época. A barreira havia sido quebrada. A impressão Godardiana sobre os fatos não só do mundo, mas também, do cinema, estaria lançada. “Pierrot Le Fou”, 1965, é uma obra visceral, anárquica, experimental e carrega todos os emblemas que o diretor franco-suíço pregou em suas obras anteriores. Em “Pierrot Le Fou” temos o tom de liberdade anarquista, que fica difícil enxergar outro paralelo dentro da turma da “Nouvelle Vague”.
O autor de “Viver a Vida” nos presenteia com um sublime jogo de signos. Seu cinema levanta a questão do cinema, seus filmes falam sobre filmes. “Pierrot Le Fou” respira arte e propõe que o cinema pode andar de mãos dadas com as demais artes - pintura, literatura, quadrinhos, poesia visual - sem que estas clamem por alguma soberania. “Pierrot Le Fou” é uma obra de diálogos imagéticos e que lança o olhar de interrupção que norteia todo fragmento da narrativa ‘destruída’ - esta sim, de tom mais abrupto, pois Godard não tinha roteiro, tudo foi feito em função de um fluxo de linhas, “mal” riscadas, que o diretor tinha em seu caderno - e caminha perfeitamente com o embate de eixos: cinema de vanguarda e cinema clássico, cultura pop e cultura erudita, Samuel Fuller e Velasquez, vida e cinema, um não anda sem o outro e tudo é permitido no campo de batalhas de “Pierrot Le Fou”. Jean-Luc Godard disse certa vez: “Houve um tempo em que talvez o cinema podia melhorar a sociedade, esse tempo se perdeu”. Com meia dúzia de travellings sublimes, planos expressivos, diálogos, luzes filtradas cheias de cor, Godard deixa escapar, que em “Pierrot Le Fou”, esse tempo é sentido.
AERTON MARTINS – APJCC, 2008

Serviço:

dia 23/05 (quinta)
às 19h30
na Sala Multiartes do Centro Cultural do Sistema Fiep
(Av. Cândido de Abreu, 200, Centro Cívico)
ENTRADA FRANCA


Realização: Sesi
Apoio: Atalante


quinta-feira, 16 de maio de 2013

NASCIMENTO DE UMA NOVA VANGUARDA: A CAMÉRA-STYLO


por Alexandre Astruc

O que me interessa no cinema é a abstração.

Orson Welles
É impossível deixar de ver que algo está acontecendo no cinema. Corremos o risco de nos tornarmos cegos diante da produção corrente, que mostra todos os anos o mesmo rosto imóvel, onde o insólito não tem vez.

Ora, o cinema hoje tem um novo rosto. Como se vê isso? Basta reparar. É preciso ser crítico para não ver esta transformação espantosa do rosto, que acontece sob nossos olhos. Quais são as obras atravessadas por essa nova beleza? Precisamente aquelas que a crítica ignora. Não é por acaso que de A Regra do Jogo de Renoir aos filmes de Orson Welles, passando por As Damas do Bois de Boulogne, tudo aquilo que traceja as linhas de um novo futuro escapa a uma crítica da qual, de qualquer forma, não se poderia esperar outra coisa.

Mas é significativo que as obras que escapam às bênçãos da crítica sejam aquelas sobre as quais nós somos alguns a estar de acordo. Nós lhes atribuímos, se quiserem, um caráter anunciador. É por isso que eu falo de vanguarda. Há vanguarda toda vez que acontece algo de novo...

Precisemos. O cinema está a caminho de tão simplesmente tornar-se um meio de expressão, isso o que foram todas as artes antes dele, isso o que foram em particular a pintura e o romance. Após ter sido sucessivamente uma atração de feiras, uma diversão análoga ao teatro de boulevard, ou um meio de conservar imagens da época, ele se torna, pouco a pouco, uma linguagem. Uma linguagem, ou seja, uma forma na qual e pela qual um artista pode exprimir seu pensamento, por mais que este seja abstrato, ou traduzir suas obsessões do mesmo modo como hoje se faz com o ensaio ou o romance. É por isso que eu chamo a esta nova era do cinema a Caméra stylo. Essa imagem tem um sentido bastante preciso. Ela quer dizer que o cinema irá se desfazer pouco a pouco dessa tirania do visual, da imagem pela imagem, da narrativa imediata, do concreto, para se tornar um meio de expressão tão flexível e sutil como o da linguagem escrita. Esta arte, dotada de todas as possibilidades, porém prisioneira de todos os preconceitos, cessará de permanecer cavando eternamente o pequeno domínio do realismo e do fantástico social que lhe é acordada nos confins do romance popular quando deixarmos de fazer dela o domínio de eleição dos fotógrafos. Nenhum domínio lhe deve ser interdito. A meditação mais despojada, um ponto de vista sobre a produção humana, a psicologia, a metafísica, as idéias, as paixões são muito precisamente de seu interesse. Ou melhor, diremos que essas idéias e visões de mundo são tais que hoje somente o cinema pode dar conta delas; Maurice Nadeau dizia num artigo da Combat: “Se Descartes vivesse hoje, ele escreveria romances.” Eu peço desculpas a Nadeau, mas hoje já um Descartes se trancaria no seu quarto e com uma câmera 16 mm. e película escreveria o discurso do método em filme, pois seu Discurso do Método seria tal hoje em dia que somente o cinema poderia convenientemente o exprimir.

Deve-se compreender que o cinema até hoje foi apenas um espetáculo. O que se relaciona ao fato de que todos os filmes são projetados em salas. Contudo, com o desenvolvimento dos 16 mm. e da televisão, não está distante o dia em que cada pessoa terá em suas casas aparelhos de projeção e alugará, na livraria da esquina, filmes escritos sobre não importa que tema, não importa qual forma, sejam críticas literárias, romances, ensaios da matemática, história, variedades, etc. Por isso não é mais possível falar de um cinema. Haverá cinemas como hoje há literaturas, pois o cinema como a literatura, antes de ser uma arte particular, é uma arte que pode exprimir qualquer setor do pensamento.

Essa idéia de cinema exprimindo o pensamento talvez não seja nova. Feyder já dizia: “Eu posso fazer um filme sobre O Espírito das Leis”. Mas Feyder sonhava numa ilustração de O Espírito das Leis pela imagem tal como Eisenstein pensava numa ilustração d’O Capital (ou em uma imagérie). Nós dizíamos que o cinema está a caminho de encontrar uma forma onde ele se torne uma linguagem tão rigorosa que o pensamento possa ser escrito diretamente sobre a película, sem mesmo passar por aquelas pesadas associações de imagens que fizeram as delícias do cinema mudo. Em outros termos, para mostrar o tempo decorrido não é preciso mostrar a queda das folhas seguida do florescer dos pomares, e para indicar que o herói deseja fazer amor, há outras maneiras de proceder para além daquela que consiste em mostrar uma caçarola de leite a transbordar, como Clouzot fez em Crime em Paris.

A expressão do pensamento é o problema fundamental do cinema. A criação dessa linguagem preocupou todos os teóricos e autores de cinema desde Eisenstein, até os roteiristas e adaptadores do cinema sonoro. Mas nem o cinema mudo, por ser prisioneiro de uma concepção estática da imagem, nem o sonoro clássico, como existe ainda hoje, puderam resolver convenientemente o problema. O cinema mudo acreditara ter conseguido pela montagem e a associação de imagens. É conhecida a célebre declaração de Eisenstein: “A montagem é para mim o meio de dar movimento (isto é, a idéia) a duas imagens estáticas”. E quanto ao sonoro, ele se contentou em adaptar os procedimentos do teatro.

O evento fundamental destes últimos anos foi a tomada de consciência que está se concretizando sobre o caráter dinâmico, isto é, significativo, da imagem cinematográfica. Todo filme, por ser um filme em movimento, ou seja, que se desenrola num tempo, é um teorema. Ele é o ponto de passagem de uma lógica implacável, que vai de uma extremidade a outra dela mesma, ou melhor ainda, de uma dialética. Essa idéia, essas significações, que o cinema mudo tentou criar através de associações simbólicas, nós compreendemos que elas existem na imagem mesma, no desenrolar do filme, em cada gesto dos personagens, em suas palavras, nos movimentos de câmera que ligam os objetos e os personagens a estes. Todo pensamento, como todo sentimento, é uma relação entre um ser humano e um outro ser humano ou certos objetos que fazem parte do seu universo. É explicitando essas relações, desenhando as tangentes, que o cinema pode ser verdadeiramente o lugar de expressão de um pensamento. A partir de agora é possível dar ao cinema obras equivalentes, pela profundidade e pelas suas significações, aos romances de Faulkner, aos de Malraux, aos ensaios de Sartre ou de Camus. Aliás, temos sob os olhos um exemplo significativo: o de Espoir de Malraux, onde possivelmente pela primeira vez a linguagem cinematográfica dá um equivalente exato da linguagem literária.

Examinemos agora as concessões às falsas necessidades do cinema.

Os roteiristas que adaptam Balzac ou Dostoiévski desculpam-se pelo tratamento insensato que dão às obras a partir das quais eles fizeram seus roteiros, alegando certas impossibilidades do cinema em dar conta de conteúdos psicológicos ou metafísicos. Em suas mãos, Balzac vira uma coleção de gravuras, onde a moda tem mais importância, e Dostoiévski de repente se assemelha aos romances de Joseph Kessel, com a embriaguez russa nas boates noturnas e as corridas detroïka na neve. Ora, essas interdições devem somente à preguiça de espírito e à falta de imaginação. O cinema atual é capaz de dar conta de qualquer tipo de realidade. O que nos interessa no cinema hoje é a criação dessa linguagem. Não pretendemos refazer documentários poéticos ou filmes surrealistas toda vez que possamos escapar das necessidades comerciais. Entre o cinema puro dos anos 1920 e o teatro filmado, existe lugar para o cinema que se liberta.

O que implica, entenda-se bem, que o roteirista faça ele mesmo seus filmes. Ou melhor, que não existam mais roteiristas, pois num tal cinema essa distinção entre autor e roteirista não tem mais sentido. A mise en scène não é mais um meio de ilustrar ou de apresentar uma cena, mas uma verdadeira escritura. O autor escreve com a câmera como o escritor escreve com a caneta. Como é que nesta arte, em que a banda visual e sonora se desenrola, desenvolvendo-se através de uma história (ou sem história, isso pouco importa) e de uma certa forma, de uma concepção de mundo, poderíamos fazer diferença entre aquele que pensou a obra e aquele que a escreveu? Imagina-se um romance de Faulkner escrito por alguém senão Faulkner? E Cidadão Kane funcionaria noutra forma exceto aquela a qual Orson Welles lhe deu?

Eu sei bem que o termo “vanguarda” ainda fará pensar nos filmes surrealistas e nos filmes ditos abstratos do primeiro pós-Guerra. Mas essa vanguarda já é uma retaguarda. Ela procurava criar um domínio próprio para o cinema; nós procuramos, ao contrário, entendê-lo e fazer dele a linguagem mais vasta e mais transparente possível. Problemas como a tradução dos tempos dos verbos, como as ligações lógicas, interessam-nos muito mais do que a criação de uma arte visual e estática sonhada pelo surrealismo, que, aliás, não fazia mais do que adaptar para o cinema as pesquisas da pintura e da poesia.

Voilà. Não se trata de uma escola, nem mesmo de um movimento, talvez se trate simplesmente de uma tendência. De uma tomada de consciência, de uma certa transformação do cinema, de um futuro possível, e do desejo que nós temos de apressar esse futuro. Certamente nenhuma tendência pode se manifestar sem obras. Essas obras virão, elas verão o dia. As dificuldades econômicas e materiais do cinema criam esse paradoxo espantoso de poder falar do que ainda não existe, pois se nós sabemos o que nós queremos, nós não sabemos se, quando e como nós poderíamos fazê-lo. Contudo é impossível que o cinema não se desenvolva. Essa arte não pode viver com os olhos voltados para o passado, remoendo lembranças, nostalgias de uma época encerrada. Seu rosto já está voltado para o futuro e, tanto no cinema como fora dele, não há outra preocupação possível exceto o futuro.

(L’écran français n° 144, 30 de março de 1948. Traduzido por Matheus Cartaxo)

terça-feira, 14 de maio de 2013

Cineclube Sesi: "A Verdadeira História do Barba Azul" de Claude Chabrol

Nesta quinta-feira dia 16/05 o Cineclube Sesi apresenta "A Verdadeira História do Barba Azul", de Claude Chabrol dando continuidade ao ciclo Nouvelle Vague que se encerra com o "O Demônio das 11 Horas", de Jean-Luc Godard no dia 23.
Sempre com entrada franca!

Cineclube Sesi: "A Verdadeira História do Barba Azul" de Claude Chabrol

Inspirado por um golpe que tomou de seu chefe, o ex-soldado Henri Landru passou a aplicar golpes em viúvas até ser preso em 1900. Ao ser liberado em 1914, continuou com suas falcatruas, anunciando em jornais e focando seus esforços em esposas deixadas para trás pelos maridos que foram lutar na 1° Guerra Mundial. Seduzindo e forjando documentos para se apoderar de seus bens, Landru também as matava. A irmã de uma das vitimas desconfiou de Landru e começou a investigá-lo. Ela descobriu a ligação das mulheres desaparecidas com ele, e o golpista foi preso, depois de uma investigação na casa do homem abriu condições para que a policia o acusasse oficialmente. A imprensa o apelidou de Barba Azul, o mapa de sua casa que Landru entregou ao seu advogado em seu julgamento sugeria que as provas do crime foram queimadas no fogão. O ex-soldado foi condenado e perdeu a cabeça na guilhotina em 1922. 

Serviço:
dia 16/05 (quinta)
às 19h30
na Sala Multiartes do Centro Cultural do Sistema Fiep
(Av. Cândido de Abreu, 200, Centro Cívico)
ENTRADA FRANCA

Realização: Sesi
Apoio: Atalante

segunda-feira, 13 de maio de 2013

Exibição do curta: "Feliz Aniversário"


Hoje (14 de maio) às 20h00
Cinemateca de Curitiba
(Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174)
Estreia do curta-metragem "Feliz aniversário", dirigido por Felipe Aufiero Fonseca.

Apoio: Coletivo Atalante

Este filme foi contemplado no Edital 052/11 - Filme digital - categoria: Iniciante do Fundo Municipal da Cultura, Programa de apoio e incentivo à Cultura, Fundação Cultural de Curitiba e da Prefeitura Municipal de Curitiba.

Sinopse: 
A festa de aniversário de 26 anos de João começa. Seus amigos e familiares vêm chegando para a grande comemoração, cheia de alegrias, recordações do passado e muito amor. Tudo vai bem... até que o relógio marca meia-noite.

sexta-feira, 10 de maio de 2013

CRÔNICA DE UM VERÃO


Reflexo e invenção de seu próprio tempo

Uma das mulheres que interage com a câmera, ao final deCrônica de um Verão, verbaliza a problematização do filme: "Só somos verdadeiros quando estamos sozinhos e à beira da histeria". A citação é de lembrança, de uma única visão do filme, mas o sentido é aproximado. Talvez essas palavras exagerem um pouco, pois limitam o conceito de verdade a um ideal metafísico de um "eu essencial", mas, em linhas gerais, estão em sintonia com a proposta de Jean Rouch e Edgar Morin. A mulher em questão está reagindo, nesse momento citado, à sua própria imagem no filme. Fala depois de exibição promovida pelos diretores a seus entrevistados. Uns criticam a "interpretação" dos outros e acusam-se de estarem falsos no filme. A colocação da mulher citada aqui assume a auto-encenação para a câmera. A palavra chave de sua afirmação, porém, não é sozinho e sim a outra expressão, "à beira da histeria". Há na citação do estar quase histérico a constatação de que, ao contrário da suposição generalizada, a solidão em si não inibe a (auto)encenação. É preciso estar sem consciência de si mesmo. Essa é também uma retórica intuitivamente incumbida de constatar que, se sozinho o ser humano já encena para si mesmo um personagem, diante de uma câmera não há nada além de interpretação. Com o olhar de alguém sobre si, com a consciência da exposição pública da própria imagem, não há como não vestir um personagem. Não teríamos mais um número para a câmera nos momentos finais, compostos da própria (auto)crítica de Rouch e Morin? Um problematiza todos os conflitos não resolvidos no filme e no método de realização, o outro celebra esses conflitos como mobilizadores de uma continuidade do processo Morin afirma na frase final: "Estamos aqui para ter problemas". Sucinto. Encenações são pura problematização da imagem.

Nesse sentido, o cinema-verdade, oficialmente fundado por Rouch e Morin, estão em fina sintonia, na verdade muito ampla, com o cinema moderno. Temos nos dois casos uma disjunção dos elementos narrativos, a inserção de ruídos na produção de sentidos imediatos a partir da organização dos planos, o cinema se fazendo notar por meio da revelação do olho de quem dirige e, com essa articulação estilística, escancarando os artifícios ilusionistas para buscar outra forma de comunicação. O narrador onisciente é substituído pelo narrador em dúvida. No entanto, nesse paralelismo, em linhas gerais, há um paradoxo. Enquanto o cinema de ficção buscava a aproximação com a realidade, embora com outro estatuto, o cinema documental aproximava-se da ficção, mas sem querer organizar as atuações de seus atores, de modo a se extrair significações delas.

Crônica de um Verão coloca em crise o documentário clássico-idealista, simulador de apreensão ou síntese do real, e reiventa a não ficção como linguagem e como conceito. E não apenas por uma questão filosófica, a partir da impossibilidade de se encontrar uma essência em uma representação, mas por questão de metodologia. Porque na exibição para os entrevistados, quando uns falam das atuações dos outros, emerge outra problemática: o reconhecimento de si no recorte, gerado pela montagem, feita pelos realizadores. Temos duas camadas: a da representação de quem está diante da câmera e a da manipulação dessa representação pelos autores. Há a intervenção da câmera na filmagem e dos realizadores nos cortes das imagens-falas e na ordenação delas na estrutura narrativa. O documentário então assume-se como o registro da provocação de reações à câmera e como organização dessas reações para atender aos objetivos de quem faz o filme (seja quais forem). Simples assim. Complexo assim. Porque o objetivo de Jean Rouch e Edgar Morin, ao estimularem um grupo de pessoas a falar de si mesmos e de suas relações com o mundo ao redor, é a princípio filmar como vivem os franceses. Não se diz se buscam um padrão que relaciona uma vida com outra, de modo a se buscar naqueles indivíduos a parte de um grupo e nesse grupo a parte de uma sociedade, ou se pretendem captar modos de vida desconectados uns dos outros. Mostram cafés da manhã, reclamações sobre o trabalho, ideais hedonistas de felicidade, confissões de conflitos emocionais. Cada um dos entrevistados compõe personagens a partir da verbalização de pensamentos e sentimentos que tanto informam sobre o perfil psicológico deles como nos dão a visão de cada um sobre seu posicionamento na configuração social e política.

Não importa as respostas e afirmações se verdadeiras ou se invenções. Importa a crença nelas por parte de quem responde, a verdade na forma-resposta, a inventiva autenticidade de encenação. Importa a aparência, as evidências, a reação aos encontros, às intervenções. Até porque, vivendo em comunidade, sempre mediado pelo olhar do(s) outro(s) sobre suas palavras, gestos e posturas, o homem é ator. Tem de encontrar sua autenticidade na representação. E o conceito de cinema-verdade, estabelecido por Rouch, nisso difere do de cinema-direto (conceito de Ruspoli), no qual a intervenção, se existe, é tornada transparente (por meio da ausência de comentários, entrevistas, músicas, movimentos da câmera), ou, se não existe mesmo (câmera escondida), busca captar algo não captável caso a câmera se faça notar a seus filmados. Bill Nichols e Juliane Burton definiram o primeiro procedimento como "interativo" e o segundo como "observacional". O interativo partia da premissa, por parte dos franceses, de que a câmera viola intimidades e, sendo assim, implica em riscos e em uma ética. Sua proposta: assumir a intervenção e, a partir dela, provocar reações reveladoras. Buscar a verdade no "conflito" e nas trocas entre quem filma e quem é filmado. Assumir a invasão do cinema. A linha observacional perseguia a neutralidade, mais na forma-aparência que no conceito

Cabe aqui um paralelo com a mesma oposição na fotografia. O fotógrafo húngaro Georges Brassai (ou Gyula Halász) denunciou fotógrafos que, em nome da autenticidade, capturavam pessoas desprevenidas, sem elas terem consciências de estarem sendo fotografadas. Em seus ensaios sobre fotografia, publicados em 1977, Susan Sontag, em uma nota de pé de página, contrapôs-se a essa crença de Brassai. "No rosto das pessoas, quando ignoram que estão sendo observadas, existe algo que nunca aparece quando elas sabem disso", escreveu. O fotógrafo americano Walker Evans, na prática, também defendia o postulado da imagem roubada. Parte de seu trabalho é construído a partir da utilização de uma câmera oculta e em miniatura com a qual fotografa passageiros de metrô. Rouch estava além disso em termos estéticos. Havia virado a página da discussão sobre a maior ou menor autenticidade contida na imagem de quem não percebe a câmera. Queria essa autenticidade, que nem sempre acontece, diga-se logo, na reação à câmera. Em pelo menos dois segmentos de Crônica de um Verão, consegue essa proeza e atinge algo inominável. Primeiro na confissão dos conflitos psicológicos da mulher já citada nesse texto, que, pelo grau de exposição, provoca reações negativas entre outros entrevistados, acusada de mostrar demais as fragilidades. Segundo na cena em transe da judia que caminha pela rua em aparente suspensão da razão.

O MOMENTO HISTÓRICO

Estamos em 1960. É um momento de mudanças técnicas no cinema, que resultarem em mudanças estéticas, com a conciliação de circunstância com projeto artístico, como fez os diretores agrupados sob o guarda-chuva da Nouvelle Vague. Câmeras mais leves, som direto (gravador Nagra). Os meios determinam a forma e não apenas a produção. Michel Brault, o diretor de fotografia, vale-se das condições. Tem a possibilidade de filmar cenas mais longas e mover a câmera sem transferir peso aos movimentos. A platéia já estava se habituando com as imagens do telejornalismo e do cinejornalismo: uma imagem tremida, mal iluminada, pouco definida, editada com cortes bruscos e um som impuro - tudo contendo uma marca de autenticidade que contradizia o formalismo e a estilização característicos do documentário clássico. O som sincronizado com a imagem também ampliava a sensação de uma captação sem manipulação do real. Não era possível capturar a vida como ela é se não se podia exibir a fala na imagem, como escreveu o cinegrafista Richard Leacock, um dos patriarcas do cinema direto-observacional. Rouch irá pelo outro caminho, o do som direto produzindo vida com as câmeras leves, em vez de registrá-la como se a vida corresse alheia à presença da câmera. Uma pessoa fala para a câmera o que não falaria sem ela, age de uma forma como não agiria sozinha. Há na interpretação, portanto, uma experiência única. Jean-Louis Commoli enterraria em textos a transparência do documentário ao escrever que a câmera produz eventos, que o documento é fabricado pela técnica, formatado por opções estéticas, não existe em si e sem a intervenção do cinema.

Não há novidade nisso hoje, quando nos habituamos ao cinema de encontros de Eduardo Coutinho e com a exibição de imagens dos personagens vendo suas imagens(Cabra Marcado para Morrer e Boca do Lixo, de Coutinho,À Margem da Imagem e As Parteiras, de Evaldo Mocarzel,A Alma do Osso, de Cao Guimarães, Nem Gravata Nem Honra, de Marcelo Masgão), mas, nos anos 50-60, um castelo começava a ruir. E outro, pela diluição posterior e neo-convenção, foi erguido. Não há como tentar transpor em palavras a experiência de um primeiro contato comCrônica de um Verão sem fazer uso da primeira pessoa e da subjetividade contida nesse encontro (meu com o filme). Mesmo com todas as referências históricas sobre sua importância, sobre seu marco e sobre as características inaugurais de seus procedimentos, a apreensão do filme se deu sobretudo pela força das imagens e de sua articulação. Nada ali podia ser considerado uma novidade, para quem já tinha visto a reprodução, diluição, derivação e multiplicação das opções empregadas, mas ainda assim elas pulsam com vitalidade, sobrepondo-se a todo o processo decorrente desde então nos filmes documentais (ou de não ficção, expressão também problemática, se formos averiguar a natureza da ficção, em toda amplitude). Crônica de um Verão, para quem o acaba de conhecer, não é apenas um documento histórico, que exige a transposição do olhar para quando foi feito, dentro do contexto de então. É um tremendo filme. Ponto.

Mas a jornada pelo tempo é necessária para se entender seu processo de existência, até porque toda invenção artística, mas principalmente as artes ancoradas na tecnologia, respondem a seus momentos históricos e valem-se de conquistas técnicas. Pois no caso estamos também em fase seminal de um segmento da sociologia que, adiante, iria romper com o conceito de indivíduo produzido unicamente pela classe social, libertando a construção do sujeito das paredes generalizantes e resultando no conceito de "ator social", segundo a definição de Alain Toraine, par intelectual de Morin, que por sua vez colocaria contra o muro a noção de sociedade como um tecido quase homogêneo em seus conflitos e contradições ("Não suportamos mais as construções intelectuais que explicam todas as nossas condutas por meio de nossa relação com o poder ou de nosso lugar na divisão do trabalho", Edgar Morin). Os personagens deCrônica de um Verão, embora vivam em uma mesma cidade, em um mesmo tempo histórico, em segmentos diferentes de uma mesma classe social, não podem ser vistos como sintomas de nada, ou não como sintomas sobretudo de suas redes. Cada um deles vive sua condição social, sim, mas reage a ela com marca própria. Vemos questões surgirem nas conversas, questões daquele momento e daquele lugar, mas sem virar sistematização. Talvez o indício mais evidente dessa falta de indícios generalizáveis seja um operário da Renault que desmistifica a figura clássica do proletariado ao ver os colegas como burgueses.

ETNOGRAFIA FÍLMICA

Não se pode entender as conquistas e progressos de Jean Rouch sem compreender conquistas e progressos da antropologia. A etnografia pré-câmera tinha como elemento mediador entre o observador e os observados a escrita. O antropólogo via e relatava em palavras. A memória era seu filtro entre o real e o texto, e sua bagagem teórica e ideológica preenchiam os hiatos, de modo a se criar um fio condutor linear e aparar as contradições. A entrada em cena da câmera conferiu ao observado fílmico uma referência epistemológica mais legítima. Trata-se, afinal, de evidência. Pode ser vista. No entanto, conforme o uso se ampliou, surgiram problemas. Pois documentar não tem caráter divino e onisciente. Exige enquadramento e escolhas. Direção, enfim. Mudou-se, consequentemente, a procura. O filme etnográfico continuou a ter como base a observação do real, mesmo se esse real for provocado pelo cineasta-etnógrafo (ou etnógrafo-cineasta). Claudine de France definiu comoantropologia fílmica em Cinema e Antropologia (1982, editora Unicamp) essa modalidade de "registrar em imagens o homem como ele é apreendido pelo filme, na unidade e na diversidade das maneiras como coloca em cena suas ações, seus pensamentos e seu meio ambiente" . Só se apreende algo do homem, afirma Claudine de France, se ele for provocado a mostrar-se. E só revelando algo de si pode revelar, por extensão, algo da sociedade contido em seus gestos e palavras.

Já em 1952, durante um congresso em Viena, Rouch declarou: "Quando os cineastas fazem filmes etnográficos, na verdade fazem filmes e não etnografia. Quando etnógrafos fazem filmes etnográficos, na verdade fazem etnográfica e não filmes" O objeto da antropologia fílmica tornou-se, com o uso mais freqüente da câmera, não só o homem como também o instrumento da disciplina, ou seja, o próprio filme. A metodologia e o processo de observar, a misè-en-scene em suma, passa a ser tematizada direta ou indiretamente. "O estudo do homem pelo filme não significa somente o estudo do homem, mas igualmente o homem filmado tal como aparece no filme" (Claudine France em Cinema e Antropologia). Esse cocneito é mais avançado que o de Margaret Mead, no início dos anos 70, para quem o homem só é apreendido em ações, nunca em palavras, como se as ações não fossem como as palavras reações do observado ao observador. Ela se apóia em títulos dos anos 30 aos 50, como Sous les Masques Noirs, de Marcel Griaule (referência primeira de Jean Rouch),Trance and Dance in Bali, da própria Marguerit Mead e Gregory Bateson, e The Hunters, de John Marshall, antes da sincronização de som e imagem. Interessava apenas o que era filmável, a ação do homem sobre seu ambiente. A sincronização, como afirma Claudine de France, descobriu o tempo do homem. A filmagem em planos-sequências permitia maior intimidade da câmera com as pessoas, além da expressão verbal de emoções e pensamentos.

Historicamente, o processo da sincronização do som, sem o qual não haveria Crônica de um Verão e seu conceito de cinema-verdade, é contemporâneo da descolonização, cuja conseqüência, no documentário etnográfico, foi levar as câmeras voltarem-se para as próprias sociedades de quem filma. O observador deixa de ter imagem imparcial e tematiza o próprio olhar, seus métodos, suas incertezas sobre seus métodos. Também são apontadas os procedimentos de misè-en-scene. Rouch liderou essa turma de cineastas das ciências humanas, composta também por David MacDougall, Marc Piault, Eliane de Latour.

No entanto, como acusava Margared Mead, a antropologia fílmica, assim como parte dos documentários, tornaram-se tagarelas e, assim, subestimaram a capacidade expressiva das imagens. Esse talvez seja hoje um dos raros debates formais sobre o documentário no Brasil: a ditadura do entrevistismo. Isso não deixa de ser herança da etnografia original, cuja metodologia apoiava-se na história oral, em como a oralidade expressa uma cultura, mais até que rituais ou comportamentos. A palavra no documentário, porém, é uma produção histórica, convertida em estética (com toda a problematização dela). Antes do cinema falado, os documentários recorriam, quando precisavam referir-se ao contexto das imagens, aos letreiros explicativos. Nannok do Norte, de Robert Flaherty, tem um porção deles, alguns bem longos, que interrompem o fluxo visual. Seguiu-se a hegemonia do documentário com narrador, que lia os textos escritos pelos diretores, um dado sonoro subestimado e importantíssimo para a fluência do filme. Com Crônica de um Verão, a voz chega ao "objeto", mas, como expõe Rouch, o discurso continua mediado, mas agora assumindo e problematizando a mediação, não para encontrar soluções para se filmar o homem tal qual ele é, mas para se criar permanentes problemas nessas supostas soluções. "Estamos aqui para ter problemas", conclui Morin. Tanto a arte como as ciências (não só humanas), quando conscientes de sua inserção na vida e despidas de ideais totalizantes-enganadores, têm compromisso com as dúvidas. Rouch revela-se, assim, grande artista e cientista. Um homem embebido de seu tempo, com toda a significação dessa relação.

Cléber Eduardo

terça-feira, 7 de maio de 2013

Cineclube Sesi: "Crônica de um Verão", de Edgar Morin e Jean Rouch

Nesta quinta-feira dia 09/05 o Cineclube Sesi apresenta "Crônica de um Verão", de Edgar Morin e Jean Rouch, dando continuidade ao ciclo Nouvelle Vague que contará ainda com "A Verdadeira História do Barba Azul", de Claude Chabrol (16/05) e "O Demônio das 11 Horas", de Jean-Luc Godard (23/05).
Sempre com entrada franca!

Cineclube Sesi: "Crônica de um Verão", de Edgar Morin e Jean Rouch

Paris, verão de 1960. O cineasta e etnólogo Jean Rouch, acompanhado do sociólogo Edgar Morin, leva a câmera às ruas para colher respostas à seguinte pergunta: “Você é feliz?” O que tem início como uma simples enquete logo se transforma num ambicioso e imprevisível retrato de um grupo heterogêneo de estudantes, operários e imigrantes que expõem seu cotidiano, suas dúvidas e angústias, suas concepções sobre a política e a vida. Em seguida, os realizadores registram as reações deles à projeção do material filmado, momento em que as fronteiras entre verdade e ficção são postas em crise. Unindo o método de Flaherty às teorias de Vertov, este filme-ensaio-manifesto inaugura o cinema-verdade.

Serviço:
dia 09/05 (quinta)
às 19h30
na Sala Multiartes do Centro Cultural do Sistema Fiep
(Av. Cândido de Abreu, 200, Centro Cívico)
ENTRADA FRANCA

Realização: Sesi
Apoio: Atalante

segunda-feira, 6 de maio de 2013

O show tem que continuar



Se o século XX é o século das imagens e se o século XX é o século dos EUA, não é difícil entender porque os EUA e a sociedade das imagens estão tão diretamente conectados. Sociedade midiática acima de todas as outras, os EUA dominaram como nenhum outro país o conceito de "espetáculo". O "espetáculo" é uma das noções que ajuda a explicar, por exemplo, o domínio mundial do cinema americano dos corações e mentes de pessoas de lugares tão diferentes e peculiares. A grande descoberta americana (e o cinema está longe de ser o único local para isso, mas sem dúvida é dos mais particularmente suscetíveis) foi a de que a vida, se tornada espetáculo, é muito mais vida do que a rotina do dia a dia, ou pelo menos é assim que se prefere vê-la. Essa mistura das noções de vida e espetáculo nos ajuda a entender desde a cobertura de guerras pela TV até o conceito de espetáculo esportivo (completamente diferente nos EUA do resto do mundo), até o onipresente fenômeno dos "reality shows" e das celebridades instantâneas.
O cinema americano, que tem outra de suas mais espetaculares capacidades em conseguir tematizar-se enquanto se faz, lidou com a noção do espetáculo e sua mistura com a vida (até, muitas vezes, tornarem-se um só) muitas vezes ao longo do século, mas em especial no cinema mais recente, onde a TV passa a ter a força e a onipresença que adquiriu recentemente. Não por acaso a TV, seu processo de realização e, mais do que tudo, o poder sobre o espectador, está presente em filmes tão diferentes quanto 15 Minutos e A Hora do Show, ou nos filmes que lidam mais diretamente com conceitos sobre a questão do reality show, desdeO Show de Truman a O Sobrevivente, passando por ed tv ouShowtime. Mas, talvez, a característica mais interessante que une estes filmes seja menos uma possível reflexão sobre mistura entre vida e espetáculo, e mais a constatação de que todos (seja em chave cômica-despretensiosa, seja num olhar mais sério) tomam para si um olhar crítico sobre o fenômeno desta mistura, e acima de tudo, sobre a TV em si. No entanto, nunca questionam a sua própria produção, a sua própria espetacularização da vida, a sua própria e muito mais profunda "ilusão de realidade", que faz as pessoas querendo viver "vida de cinema". Talvez o exemplo mais clássico seja mesmo Assassinos por Natureza onde Oliver Stone liga uma metralhadora giratória que atira para todos os lados, mas nunca completa o 360º e se volta para si mesmo. O que Hollywood parece tentar é muito parecido com a cobertura que as empresas jornalísticas costumam fazer quando cobrem crises econômicas ou negociatas: se auto-impõem o papel de defensoras do povo e da Humanidade, enquanto invariavelmente escamoteiam os problemas que dizem respeito a si mesmas ou a empresas do ramo, co-irmãs. Cria-se uma suspensão da realidade segundo a qual uma tal quarta parede deste jogo teatral nunca pode ser quebrada. Podemos criticar, mas fazendo força para que não olhem para mim.
Mas, nem sempre foi assim no cinema americano. Houve alguns cineastas que, nos anos 70 e início dos 80, se dedicaram a reflexões sobre o estado de espetáculo que seu meio criava com as pessoas, de forma bem menos complacente consigo mesmos (é importante que lembremos aqui que a expressão "estado de teatro" se refere classicamente à corte francesa do século 17, então não é nenhuma novidade pós-moderna). Tendo variado do olhar mais lírico (e ainda assim profundamente crítico) de Coppola em O Fundo do Coração à amargura de Martin Scorsese em O Rei da Comédia, o que se via era uma tematização de uma vida que parava de fazer sentido frente ao espetacular que era vendido o tempo todo para as pessoas como algo a se aspirar como objetivo de completude. Você não é ninguém se não está vivendo um sonho de constante e espetacular proporções.
Mas, nenhum cineasta tematizou tão obsessivamente estas relações e perdas de fronteiras quanto Bob Fosse, talvez um dos menos reconhecidos gênios do cinema contemporâneo. Se olhada em conjunto, sua obra (de apenas cinco longas) impressiona pela absoluta coerência. Em todos os filmes, o protagonista é um "entertainer" de algum tipo. Mas, se seus filmes lidam com o mesmo ambiente, ninguém pode chamá-lo de monotemático: ele discute desde questões afetivas e familiares (All That Jazz, Lenny), ao encontro com a morte (All That Jazz), drogas e liberdade de expressão (Lenny), bissexualidade, tolerância e ascensão nazista (Cabaret) até a emancipação sexual da mulher (Cabaret, Star 80). O que ele tem de coerente (e não de repetitivo) são algumas mesmas preocupações essenciais constantes: o ser humano ainda consegue diferenciar vida de espetáculo? Será que há diferenciação possível, mesmo se desejada?
A grande sacada de ver Fosse se dedicar a isso na sua carreira é justamente que sua origem seja como dançarino e coreógrafo, trabalhando naquele que é o mais espetacular dos meios artísticos recentes: os musicais da Broadway. Daí para os musicais no cinema, que são por definição os filmes de gênero mais sonhadores e descolados da realidade direta. Por isso tudo, o mais interessante em ver Fosse trabalhar estes conceitos é que ele não o faz a frio, distanciadamente, e sim enquanto manipula os mesmos objetos que questiona constantemente. Essa relação intrínseca entra forma de viver, objeto de trabalho e reflexão, encontra sua maior expressão na obra-prima de seu trabalho que é All That Jazz (que ganhou no Brasil o raro adequado subtítulo de O Show tem que Continuar). Neste, Fosse faz o derradeiro movimento na sua coerente trajetória: o de tornar sua própria vida (e, pasmem, morte) um espetáculo. Não é possível mistura semelhante de homem/criador de arte/objetivos como artista.
Mas se All That Jazz é um ápice, no primeiro filme de Fosse a mesma preocupação já estava presente. Charity Meu Amor, um musical pós-68 (na verdade, ele é de 68, mas a sensação é de estar à frente), Fosse encena a vida de uma dançarina de nightclub que sonha em viver a vida perfeita com um amor impossível ("just like in the movies", ela diz). Baseado em Noites de Cabíria (e já diz muito da sociedade americana e sua relação com o espetáculo que alguém possa ver o filme de Fellini e sair de lá com a certeza de que aquilo daria um musical!), o filme tem uma personagem de força bastante semelhante ao de Giuletta Masina (e uma Shirley MacLaine de poesia bastante próxima), onde melancolia e um otimismo muito próximo da demência se misturam criando uma personagem que é típico produto desta mistura da "busca do sonho de algo melhor" com os sonhos construídos pelo mesmo cinema clássico do qual o filme faz parte. Uma fala especialmente impressionante se dá quando Charity consegue entrar num bar de ricos e famosos e afirma "ser a única pessoa aqui de que eu nunca ouvi falar". Conhece-se mais o outro do que a si mesmo.
O final do filme surpreende pela sua tristeza, ou melhor, pela sua negação ao "happy ending". Ele não chega a ser triste por completo simplesmente porque sua personagem vive de ilusão, então não aceita que o final é ali. Mas, se este final surpreende pelo fato deCharity parecer se encaminhar para um clássico desfecho de musical romântico, em retrospecto é impossível que alguém que conheça a obra de Fosse se surpreenda. Seus outros quatro filmes terminam com: um suicídio, um assassinato seguido de suicídio pelo assassino, a morte dele mesmo, e a ascensão do nazismo. Uau, that's entertainment!
E é justamente esta corda bamba entre o mais declarado "entretenimento" e as reflexões mais profundas e tristes que fazem de Fosse um cineasta surpreendente. Como coreógrafo não é diferente, como podemos ver pelos filmes musicais: seus números nunca são banais, os movimentos dos bailarinos são cheios de estranhezas, ritmos sincopados e inesperados, movimentos muito pouco clássicos. Mas, principalmente: o Fosse cineasta nunca deixa de encenar seus números para a câmera. Para a câmera e para a moviola, aliás. Com completo domínio da linguagem do cinema, não faz com que tudo pare enquanto se dança e canta. Dança e cinema são uma arte só em seus filmes.
Mesmo seus filmes não-musicais têm um trabalho bastante elaborado de linguagem, como se vê na estrutura narrativa de Lennye Star 80, que misturam encenações de entrevistas (ambos são baseados em histórias reais), presente, passado, projeções. As semelhanças entre os filmes, aliás, são grandes porque seus protagonistas (Lenny Bruce e Paul Snider) são ambos personagens que perderam a briga com a sociedade de espetáculo: tentaram usá-la e acabaram completamente destruídos por ela (ambos se matam, sendo que Snider após assassinar sua mulher). Claro que o tipo de uso que tentam fazer é muito diferente (Snider sonha em ser "famoso" e usa a beleza da mulher para isso, através da revista Playboy, enquanto Bruce se torna famoso quase contra a vontade quando descobre que simplesmente ser "verdadeiro" numa sociedade hipócrita o tornava uma atração), mas os resultados são os mesmos: há algo de muito mais forte do que eles em ação.
Este limite ligeiro entre ter controle de sua vida e torná-la um espetáculo conscientemente, e perder o controle dele é a fronteira tênue onde passeiam todos os seus personagens. Em Lenny, All That Jazz e Cabaret montagens paralelas constantemente contrapõem a vida dos personagens com performances musicais (ou cômicas, no caso de Lenny), onde uma comenta a outra, a outra explica a uma, ao ponto de, mais uma vez, se perder o controle do que começa aqui e termina ali. Neste quesito o filme mais complexo talvez seja mesmo Cabaret, outro filme bem perto da perfeição. A cena em que uma simples cantoria no interior da Alemanha nos faz entender todo processo de ascensão do nazismo é uma dessas fronteiras quebradas que nos surpreendem completamente. O que parecia um simples número musical vira uma análise sócio-política, sem nunca deixar de lado seu caráter de "entertainment". O mesmo se dá mais adiante com o número entre o Mestre de Cerimônias (Joel Grey tem uma das mais antológicas atuações do cinema americano) e uma mulher vestida de gorila, que começa em chave cômica e se mostra um comentário surpreendente sobre a intolerância racial. Fosse controla plenamente (como Lenny Bruce não conseguiu fazer, como vemos pelo final do filme) a fronteira entre entreter e contestar.
Nesse ponto é que é quase irresistível colocar Chicago na discussão porque, embora não seja de forma alguma um filme de Fosse, é completamente baseado numa conceituação sua (que sonhava em filmar o musical quando morreu). Esta conceituação é menos a do filme que está na tela do que nos temas que ele levanta, que estão todos espalhados por toda a obra de Fosse. Chicago talvez seja o único caso de "filme de autor morto" na História do cinema. Mas o fato é que entre "Life is a cabaret", "we live in a should-be world instead of a what-is world" ("vivemos num mundo de deveria ser, ao invés de um mundo de é assim" - frase de Lenny Bruce) e "razzle dazzle", não há a menor diferença. São todas encarnações diferentes de um mesmo artista e suas preocupações. Preocupações que, como fica claro no próprio Chicago ou em All That Jazz, não o impedem de criar ou viver ou morrer (ao contrário de Lenny Bruce), mas não o podem permitir continuar vivendo na ingenuidade (como Charity), fingindo não conhecer as engrenagens que fazem rodar não apenas o mundo ("money makes the world go around"), mas especialmente o seu mundo - o mundo da Broadway, o mundo de Hollywood, os Estados Unidos da América. Bob Fosse fez, do primeiro ao último filme (ao filme que nunca conseguiu fazer) uma das mais subversivas obras do cinema americano, ao mesmo tempo que uma das mais autenticamente americanas. O show, afinal, tem que continuar.

Eduardo Valente.
(Texto original:  
http://www.contracampo.com.br/49/fosse.htm)