sexta-feira, 10 de maio de 2013

CRÔNICA DE UM VERÃO


Reflexo e invenção de seu próprio tempo

Uma das mulheres que interage com a câmera, ao final deCrônica de um Verão, verbaliza a problematização do filme: "Só somos verdadeiros quando estamos sozinhos e à beira da histeria". A citação é de lembrança, de uma única visão do filme, mas o sentido é aproximado. Talvez essas palavras exagerem um pouco, pois limitam o conceito de verdade a um ideal metafísico de um "eu essencial", mas, em linhas gerais, estão em sintonia com a proposta de Jean Rouch e Edgar Morin. A mulher em questão está reagindo, nesse momento citado, à sua própria imagem no filme. Fala depois de exibição promovida pelos diretores a seus entrevistados. Uns criticam a "interpretação" dos outros e acusam-se de estarem falsos no filme. A colocação da mulher citada aqui assume a auto-encenação para a câmera. A palavra chave de sua afirmação, porém, não é sozinho e sim a outra expressão, "à beira da histeria". Há na citação do estar quase histérico a constatação de que, ao contrário da suposição generalizada, a solidão em si não inibe a (auto)encenação. É preciso estar sem consciência de si mesmo. Essa é também uma retórica intuitivamente incumbida de constatar que, se sozinho o ser humano já encena para si mesmo um personagem, diante de uma câmera não há nada além de interpretação. Com o olhar de alguém sobre si, com a consciência da exposição pública da própria imagem, não há como não vestir um personagem. Não teríamos mais um número para a câmera nos momentos finais, compostos da própria (auto)crítica de Rouch e Morin? Um problematiza todos os conflitos não resolvidos no filme e no método de realização, o outro celebra esses conflitos como mobilizadores de uma continuidade do processo Morin afirma na frase final: "Estamos aqui para ter problemas". Sucinto. Encenações são pura problematização da imagem.

Nesse sentido, o cinema-verdade, oficialmente fundado por Rouch e Morin, estão em fina sintonia, na verdade muito ampla, com o cinema moderno. Temos nos dois casos uma disjunção dos elementos narrativos, a inserção de ruídos na produção de sentidos imediatos a partir da organização dos planos, o cinema se fazendo notar por meio da revelação do olho de quem dirige e, com essa articulação estilística, escancarando os artifícios ilusionistas para buscar outra forma de comunicação. O narrador onisciente é substituído pelo narrador em dúvida. No entanto, nesse paralelismo, em linhas gerais, há um paradoxo. Enquanto o cinema de ficção buscava a aproximação com a realidade, embora com outro estatuto, o cinema documental aproximava-se da ficção, mas sem querer organizar as atuações de seus atores, de modo a se extrair significações delas.

Crônica de um Verão coloca em crise o documentário clássico-idealista, simulador de apreensão ou síntese do real, e reiventa a não ficção como linguagem e como conceito. E não apenas por uma questão filosófica, a partir da impossibilidade de se encontrar uma essência em uma representação, mas por questão de metodologia. Porque na exibição para os entrevistados, quando uns falam das atuações dos outros, emerge outra problemática: o reconhecimento de si no recorte, gerado pela montagem, feita pelos realizadores. Temos duas camadas: a da representação de quem está diante da câmera e a da manipulação dessa representação pelos autores. Há a intervenção da câmera na filmagem e dos realizadores nos cortes das imagens-falas e na ordenação delas na estrutura narrativa. O documentário então assume-se como o registro da provocação de reações à câmera e como organização dessas reações para atender aos objetivos de quem faz o filme (seja quais forem). Simples assim. Complexo assim. Porque o objetivo de Jean Rouch e Edgar Morin, ao estimularem um grupo de pessoas a falar de si mesmos e de suas relações com o mundo ao redor, é a princípio filmar como vivem os franceses. Não se diz se buscam um padrão que relaciona uma vida com outra, de modo a se buscar naqueles indivíduos a parte de um grupo e nesse grupo a parte de uma sociedade, ou se pretendem captar modos de vida desconectados uns dos outros. Mostram cafés da manhã, reclamações sobre o trabalho, ideais hedonistas de felicidade, confissões de conflitos emocionais. Cada um dos entrevistados compõe personagens a partir da verbalização de pensamentos e sentimentos que tanto informam sobre o perfil psicológico deles como nos dão a visão de cada um sobre seu posicionamento na configuração social e política.

Não importa as respostas e afirmações se verdadeiras ou se invenções. Importa a crença nelas por parte de quem responde, a verdade na forma-resposta, a inventiva autenticidade de encenação. Importa a aparência, as evidências, a reação aos encontros, às intervenções. Até porque, vivendo em comunidade, sempre mediado pelo olhar do(s) outro(s) sobre suas palavras, gestos e posturas, o homem é ator. Tem de encontrar sua autenticidade na representação. E o conceito de cinema-verdade, estabelecido por Rouch, nisso difere do de cinema-direto (conceito de Ruspoli), no qual a intervenção, se existe, é tornada transparente (por meio da ausência de comentários, entrevistas, músicas, movimentos da câmera), ou, se não existe mesmo (câmera escondida), busca captar algo não captável caso a câmera se faça notar a seus filmados. Bill Nichols e Juliane Burton definiram o primeiro procedimento como "interativo" e o segundo como "observacional". O interativo partia da premissa, por parte dos franceses, de que a câmera viola intimidades e, sendo assim, implica em riscos e em uma ética. Sua proposta: assumir a intervenção e, a partir dela, provocar reações reveladoras. Buscar a verdade no "conflito" e nas trocas entre quem filma e quem é filmado. Assumir a invasão do cinema. A linha observacional perseguia a neutralidade, mais na forma-aparência que no conceito

Cabe aqui um paralelo com a mesma oposição na fotografia. O fotógrafo húngaro Georges Brassai (ou Gyula Halász) denunciou fotógrafos que, em nome da autenticidade, capturavam pessoas desprevenidas, sem elas terem consciências de estarem sendo fotografadas. Em seus ensaios sobre fotografia, publicados em 1977, Susan Sontag, em uma nota de pé de página, contrapôs-se a essa crença de Brassai. "No rosto das pessoas, quando ignoram que estão sendo observadas, existe algo que nunca aparece quando elas sabem disso", escreveu. O fotógrafo americano Walker Evans, na prática, também defendia o postulado da imagem roubada. Parte de seu trabalho é construído a partir da utilização de uma câmera oculta e em miniatura com a qual fotografa passageiros de metrô. Rouch estava além disso em termos estéticos. Havia virado a página da discussão sobre a maior ou menor autenticidade contida na imagem de quem não percebe a câmera. Queria essa autenticidade, que nem sempre acontece, diga-se logo, na reação à câmera. Em pelo menos dois segmentos de Crônica de um Verão, consegue essa proeza e atinge algo inominável. Primeiro na confissão dos conflitos psicológicos da mulher já citada nesse texto, que, pelo grau de exposição, provoca reações negativas entre outros entrevistados, acusada de mostrar demais as fragilidades. Segundo na cena em transe da judia que caminha pela rua em aparente suspensão da razão.

O MOMENTO HISTÓRICO

Estamos em 1960. É um momento de mudanças técnicas no cinema, que resultarem em mudanças estéticas, com a conciliação de circunstância com projeto artístico, como fez os diretores agrupados sob o guarda-chuva da Nouvelle Vague. Câmeras mais leves, som direto (gravador Nagra). Os meios determinam a forma e não apenas a produção. Michel Brault, o diretor de fotografia, vale-se das condições. Tem a possibilidade de filmar cenas mais longas e mover a câmera sem transferir peso aos movimentos. A platéia já estava se habituando com as imagens do telejornalismo e do cinejornalismo: uma imagem tremida, mal iluminada, pouco definida, editada com cortes bruscos e um som impuro - tudo contendo uma marca de autenticidade que contradizia o formalismo e a estilização característicos do documentário clássico. O som sincronizado com a imagem também ampliava a sensação de uma captação sem manipulação do real. Não era possível capturar a vida como ela é se não se podia exibir a fala na imagem, como escreveu o cinegrafista Richard Leacock, um dos patriarcas do cinema direto-observacional. Rouch irá pelo outro caminho, o do som direto produzindo vida com as câmeras leves, em vez de registrá-la como se a vida corresse alheia à presença da câmera. Uma pessoa fala para a câmera o que não falaria sem ela, age de uma forma como não agiria sozinha. Há na interpretação, portanto, uma experiência única. Jean-Louis Commoli enterraria em textos a transparência do documentário ao escrever que a câmera produz eventos, que o documento é fabricado pela técnica, formatado por opções estéticas, não existe em si e sem a intervenção do cinema.

Não há novidade nisso hoje, quando nos habituamos ao cinema de encontros de Eduardo Coutinho e com a exibição de imagens dos personagens vendo suas imagens(Cabra Marcado para Morrer e Boca do Lixo, de Coutinho,À Margem da Imagem e As Parteiras, de Evaldo Mocarzel,A Alma do Osso, de Cao Guimarães, Nem Gravata Nem Honra, de Marcelo Masgão), mas, nos anos 50-60, um castelo começava a ruir. E outro, pela diluição posterior e neo-convenção, foi erguido. Não há como tentar transpor em palavras a experiência de um primeiro contato comCrônica de um Verão sem fazer uso da primeira pessoa e da subjetividade contida nesse encontro (meu com o filme). Mesmo com todas as referências históricas sobre sua importância, sobre seu marco e sobre as características inaugurais de seus procedimentos, a apreensão do filme se deu sobretudo pela força das imagens e de sua articulação. Nada ali podia ser considerado uma novidade, para quem já tinha visto a reprodução, diluição, derivação e multiplicação das opções empregadas, mas ainda assim elas pulsam com vitalidade, sobrepondo-se a todo o processo decorrente desde então nos filmes documentais (ou de não ficção, expressão também problemática, se formos averiguar a natureza da ficção, em toda amplitude). Crônica de um Verão, para quem o acaba de conhecer, não é apenas um documento histórico, que exige a transposição do olhar para quando foi feito, dentro do contexto de então. É um tremendo filme. Ponto.

Mas a jornada pelo tempo é necessária para se entender seu processo de existência, até porque toda invenção artística, mas principalmente as artes ancoradas na tecnologia, respondem a seus momentos históricos e valem-se de conquistas técnicas. Pois no caso estamos também em fase seminal de um segmento da sociologia que, adiante, iria romper com o conceito de indivíduo produzido unicamente pela classe social, libertando a construção do sujeito das paredes generalizantes e resultando no conceito de "ator social", segundo a definição de Alain Toraine, par intelectual de Morin, que por sua vez colocaria contra o muro a noção de sociedade como um tecido quase homogêneo em seus conflitos e contradições ("Não suportamos mais as construções intelectuais que explicam todas as nossas condutas por meio de nossa relação com o poder ou de nosso lugar na divisão do trabalho", Edgar Morin). Os personagens deCrônica de um Verão, embora vivam em uma mesma cidade, em um mesmo tempo histórico, em segmentos diferentes de uma mesma classe social, não podem ser vistos como sintomas de nada, ou não como sintomas sobretudo de suas redes. Cada um deles vive sua condição social, sim, mas reage a ela com marca própria. Vemos questões surgirem nas conversas, questões daquele momento e daquele lugar, mas sem virar sistematização. Talvez o indício mais evidente dessa falta de indícios generalizáveis seja um operário da Renault que desmistifica a figura clássica do proletariado ao ver os colegas como burgueses.

ETNOGRAFIA FÍLMICA

Não se pode entender as conquistas e progressos de Jean Rouch sem compreender conquistas e progressos da antropologia. A etnografia pré-câmera tinha como elemento mediador entre o observador e os observados a escrita. O antropólogo via e relatava em palavras. A memória era seu filtro entre o real e o texto, e sua bagagem teórica e ideológica preenchiam os hiatos, de modo a se criar um fio condutor linear e aparar as contradições. A entrada em cena da câmera conferiu ao observado fílmico uma referência epistemológica mais legítima. Trata-se, afinal, de evidência. Pode ser vista. No entanto, conforme o uso se ampliou, surgiram problemas. Pois documentar não tem caráter divino e onisciente. Exige enquadramento e escolhas. Direção, enfim. Mudou-se, consequentemente, a procura. O filme etnográfico continuou a ter como base a observação do real, mesmo se esse real for provocado pelo cineasta-etnógrafo (ou etnógrafo-cineasta). Claudine de France definiu comoantropologia fílmica em Cinema e Antropologia (1982, editora Unicamp) essa modalidade de "registrar em imagens o homem como ele é apreendido pelo filme, na unidade e na diversidade das maneiras como coloca em cena suas ações, seus pensamentos e seu meio ambiente" . Só se apreende algo do homem, afirma Claudine de France, se ele for provocado a mostrar-se. E só revelando algo de si pode revelar, por extensão, algo da sociedade contido em seus gestos e palavras.

Já em 1952, durante um congresso em Viena, Rouch declarou: "Quando os cineastas fazem filmes etnográficos, na verdade fazem filmes e não etnografia. Quando etnógrafos fazem filmes etnográficos, na verdade fazem etnográfica e não filmes" O objeto da antropologia fílmica tornou-se, com o uso mais freqüente da câmera, não só o homem como também o instrumento da disciplina, ou seja, o próprio filme. A metodologia e o processo de observar, a misè-en-scene em suma, passa a ser tematizada direta ou indiretamente. "O estudo do homem pelo filme não significa somente o estudo do homem, mas igualmente o homem filmado tal como aparece no filme" (Claudine France em Cinema e Antropologia). Esse cocneito é mais avançado que o de Margaret Mead, no início dos anos 70, para quem o homem só é apreendido em ações, nunca em palavras, como se as ações não fossem como as palavras reações do observado ao observador. Ela se apóia em títulos dos anos 30 aos 50, como Sous les Masques Noirs, de Marcel Griaule (referência primeira de Jean Rouch),Trance and Dance in Bali, da própria Marguerit Mead e Gregory Bateson, e The Hunters, de John Marshall, antes da sincronização de som e imagem. Interessava apenas o que era filmável, a ação do homem sobre seu ambiente. A sincronização, como afirma Claudine de France, descobriu o tempo do homem. A filmagem em planos-sequências permitia maior intimidade da câmera com as pessoas, além da expressão verbal de emoções e pensamentos.

Historicamente, o processo da sincronização do som, sem o qual não haveria Crônica de um Verão e seu conceito de cinema-verdade, é contemporâneo da descolonização, cuja conseqüência, no documentário etnográfico, foi levar as câmeras voltarem-se para as próprias sociedades de quem filma. O observador deixa de ter imagem imparcial e tematiza o próprio olhar, seus métodos, suas incertezas sobre seus métodos. Também são apontadas os procedimentos de misè-en-scene. Rouch liderou essa turma de cineastas das ciências humanas, composta também por David MacDougall, Marc Piault, Eliane de Latour.

No entanto, como acusava Margared Mead, a antropologia fílmica, assim como parte dos documentários, tornaram-se tagarelas e, assim, subestimaram a capacidade expressiva das imagens. Esse talvez seja hoje um dos raros debates formais sobre o documentário no Brasil: a ditadura do entrevistismo. Isso não deixa de ser herança da etnografia original, cuja metodologia apoiava-se na história oral, em como a oralidade expressa uma cultura, mais até que rituais ou comportamentos. A palavra no documentário, porém, é uma produção histórica, convertida em estética (com toda a problematização dela). Antes do cinema falado, os documentários recorriam, quando precisavam referir-se ao contexto das imagens, aos letreiros explicativos. Nannok do Norte, de Robert Flaherty, tem um porção deles, alguns bem longos, que interrompem o fluxo visual. Seguiu-se a hegemonia do documentário com narrador, que lia os textos escritos pelos diretores, um dado sonoro subestimado e importantíssimo para a fluência do filme. Com Crônica de um Verão, a voz chega ao "objeto", mas, como expõe Rouch, o discurso continua mediado, mas agora assumindo e problematizando a mediação, não para encontrar soluções para se filmar o homem tal qual ele é, mas para se criar permanentes problemas nessas supostas soluções. "Estamos aqui para ter problemas", conclui Morin. Tanto a arte como as ciências (não só humanas), quando conscientes de sua inserção na vida e despidas de ideais totalizantes-enganadores, têm compromisso com as dúvidas. Rouch revela-se, assim, grande artista e cientista. Um homem embebido de seu tempo, com toda a significação dessa relação.

Cléber Eduardo

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