segunda-feira, 27 de maio de 2013

All That Jazz - O Show Deve Continuar, de Bob Fosse


All that jazz, EUA, 1979

Será que um filme indicado a nove Oscars (tendo ganhado quatro), e vencedor da Palma de Ouro em Cannes precisa realmente ser revisto? Há ainda o que se dizer depois de tamanho reconhecimento? No caso de All That Jazz a resposta não poderia ser mais positiva, e em especial pelas circunstâncias conjunturais e estruturais que o ligam a hoje, a 2002. Quais circunstâncias são essas? Estruturalmente falando, a história do cinema americano contemporâneo (e por definição do cinema mundial). Conjunturalmente o recente relançamento de Apocalypse Now, que trouxe aos cinemas um dos outros concorrentes, junto com o filme de Fosse, ao Oscar de melhor filme em 1979; além do ainda mais recente lançamento do Episódio 2. De que formas estas idéias se unem? É mais simples do que parece.
Na década de 70 o cinema americano viveu um de seus momentos centrais de definição, talvez como antes só tenha acontecido na década de 20/30 (que marca o início do domínio do mercado mundial e do estabelecimento de Hollywood como capital do reino do cinema). Na verdade os EUA como um todo viviam um momento central: saídos da ressaca do fim dos anos 60, com todas as suas revoluções (sexuais, políticas, raciais, sociais), viam os valores mais caros a si, tão prezados e louvados nas décadas de 40 e 50 com especial ênfase no cinema como forma de construção do imaginário do american way of life, passarem a ser frontalmente questionados. O cinema especialmente vivia uma crise ainda maior, com a popularização rapidíssima da televisão. A brecha aberta por essa crise, junto com a politização crescente e a chegada ao "poder" da primeira geração de cineastas criados nas universidades de cinema ou como "cinéfilos", assistindo e problematizando os clássicos de Hollywood e também os filmes estrangeiros que a eles chegavam, tudo isso permitia que houvesse um clima altamente favorável para a renovação das propostas do cinema americano dominante.
É neste momento (a partir do fim dos anos 60, mas com seu ápice decididamente nos anos 70) que surgem as primeiras obras de uma geração que une Martin Scorsese, Francis Ford Coppola, Woody Allen, Michael Cimino, Robert Altman, Terence Malick, Brian De Palma, Mike Nichols, ou ainda é quando fazem alguns de seus principais filmes John Cassavetes, John Schlesinger, Sidney Lumet. A liberdade que rondava a criação dos filmes em plena Hollywood só podia ser entendida dentro deste contexto de relativa crise de reavaliação, onde o questionamento era parte natural do momento. Tudo estava por ser posto em cheque: o país, o mundo, o ser humano, o cinema.
Só isso explica que, no mesmo ano, dois verdadeiros ensaios filosófico-audiovisuais, como eram Apocalypse Now e All That Jazz,não só fossem realizados por grandes estúdios, mas também lançados com sucesso e concorressem a tantos Oscars e ganhassem ambos a Palma de Ouro em Cannes. Claro que não convém aqui esquecer os detalhes específicos das dificuldades enfrentadas pelos diretores de ambos os filmes, não só no que tange a realização dos mesmos, como com relação ao relacionamento com os donos dos estúdios. Mas, ainda assim, os filmes foram feitos, lançados e vistos, e isso em si mesmo é um fenômeno.
Se poderia julgar pelo conjunto das obras e de tantos cineastas consagrados naquela década, que se apresentava ao cinema americano um novo caminho de contestação, reflexão e liberdade narrativa e estética como nunca antes visto. Mas, também não se pode ignorar que dos mesmos bancos universitários e cadeiras de cinéfilos, surgem nesta década outras duas figuras que ajudariam ainda mais a mudar o cinema americano do futuro: George Lucas e Steven Spielberg. Porque, se os diretores citados mais acima viveram, em sua maioria, o momento-ápice de suas carreiras naqueles anos 70, estes dois apenas estabeleceram os alicerces não só para seu domínio pessoal sobre o cinema americano de décadas seguintes (até hoje, como se pode ver pelo fato de ambos terem enormes sucessos de bilheteria recém-lançados no verão americano de 2002, enquanto a maioria dos outros citados está sem filmar, ou sem um grande sucesso há anos), mas também uma virada mais do que estética, e sim de direcionamento no cinema mundial. Principalmente com Guerra nas Estrelas e Tubarão os dois reinventaram o cinema americano, trazendo para ele o conceito do "filme de verão", da aventura e ficção científica como gêneros "nobres", do espectador-ideal não mais como o adulto mas sim o adolescente. Os anos 80 e 90 viram a pragmatização extrema destas noções, muito mais do que seus criadores podiam prever (façamos justiça, aliás, em dizer que ambos não estiveram à frente deste processo conscientemente, e que seus diluidores são infinitamente inferiores a eles), levando ao cinema que vemos hoje. Um cinema onde Brian De Palma e David Lynch precisam ir buscar financiamento na França, onde Coppola, Cimino e Nichols não têm lugar, onde Scorsese parece tentar manter-se vivo como pode, e onde Allen se repete a todo filme.
Foi muito em função do que aconteceu em Hollywood nos anos 70 que podemos entender o cinema americano que vemos hoje. Ali, claramente, o cinema pôde ver duas correntes distintas de suas potencialidades. Seria muito possível dizer que não eram excludentes, e que poderiam conviver pacificamente, mas não é o que a história mostrou. Uma das correntes foi praticamente sufocada pela outra, a possibilidade da arte e da experimentação pela indústria do lucro exacerbado (é claro que há inúmeras "exceções de regra", mas tratamos aqui, grosso modo, de um retrato macro da produção e seu sistema). Assim, Apocalypse Now e All That Jazz, que podiam ser lidos à época como o ápice da consolidação de uma liberdade de linguagem inédita no grande cinema americano, eram na verdade o canto do cisne de uma década. O que, aliás, se visto pelos temas e idéias trazidas em ambos os filmes, parece absolutamente adequado, e quase premonitório.
Para fechar esta idéia, nada melhor do que a história contada por Roy Scheider no comentário que acompanha o DVD do filme de Bob Fosse: Scheider, também ator de Tubarão, foi assistir a uma sessão de All That Jazz com Spielberg. Ao final, o diretor estava eufórico com o que tinha visto. Dias depois, Scheider recebe uma ligação de Bob Fosse, dizendo que Spielberg tinha ligado para ele. "Você sabe o que ele me disse?", perguntou Fosse. "Que eu devo estar louco de terminar um filme daquele jeito, que eu vou perder milhões de dólares de bilheteria por conta disso." Quem viu o filme sabe: não havia outro jeito de encerrar um filme que, afinal, trata de morte acima de tudo. Mas, o "novo cinema" que então engatinhava já tinha o seu ideólogo: deve-se trocar coerência por lucro, sempre. Aqui jaz.
* * *
Mas, vamos deixar de lado o fator histórico, tão relevante neste caso, e falar um pouquinho do filme em si. Afinal, o que torna All That Jazz uma obra tão admirável? Para começar, a coragem de seu autor (que de fato pode ser creditado como tal, por ser diretor, roteirista, coreógrafo) de fazer, basicamente, uma autobiografia no cinema. Mas, não apenas uma autobiografia congratulatória ou nostálgica, e sim a biografia de um homem que é tão destrutivo com os outros quanto consigo próprio por ser, basicamente, um viciado em viver ao máximo, o que o coloca muito perto de morrer. Nesta biografia Fosse tem a coragem de retratar o seu próprio processo clínico, que o levaria eventualmente à morte (e assim o filme pode ser considerado, mais uma vez, premonitório), assim como apresentar de forma absolutamente próxima do real uma série de pessoas que estavam ainda vivas e muito perto dele. Além de se mostrar um viciado, mulherengo, manipulador, perfeccionista, entre outras qualidades.
Somente esta coragem, porém, não levaria o filme a um patamar especial, pois poderia resultar em simples sensacionalismo ou na crítica ácida e ao mesmo tempo vazia e moralista de um sistema, de um "negócio" ou de uma forma de vida. Porém a esta coragem se somava uma dose ainda maior de generosidade e entrega à vida, que transborda de cada sequência do filme. Só assim Fosse consegue transformar a história de uma morte anunciada numa ode a estar vivo. Na época, ele foi muito criticado justamente por pintar um retrato final onde sua morte era gloriosa e ele era chamado de egocêntrico. Bom, todo artista é, a priori, um egocêntrico. No entanto, o que faltou enxergar é que a morte era gloriosa apesar de profundamente dolorida, e isso se dava por se tratar de um personagem que ao invés de se entregar a ela enfrentou-a não com um desafio tolo, mas como um complemento natural ao que se optou na vida.
É assim que o filme consegue fugir do moralismo barato reinante, segundo o qual um personagem sempre sofre por ter sido infiel, por ser viciado em drogas, alcoólatra, mau pai ou marido. O protagonista de Fosse sofre sim, e muito, em consequência disso tudo. Mas não se arrepende nem por um segundo porque suas "fraquezas" são o que o manteve vivo a cada dia, o que o fazia levantar da cama e querer viver para início de conversa. Quando todas as campanhas anti-drogas ou a favor dos valores familiares fracassam por tentarem retratar apenas o inferno destas situações, Fosse é realista: estas coisas matam sim, mas antes disso elas completam muitas vezes um ser humano, e fazem ele viver. Cabe a cada um decidir até onde está disposto a ir, mas que ninguém se prive do que precisa viver só porque isso "mata". Viver mata, e ainda assim nós insistimos em fazê-lo.
E o mais incrível: todas estas questões não estão num filme preto e branco, escuro e cheio de fog feito na Suécia, e sim num musical hollywoodiano. Assim como Coppola no Apocalypse Now, o que mais impressiona em All That Jazz é justamente que ele consegue tocar em todas estas notas e muitas outras, sem deixar de ser um autêntico exemplar do maravilhamento típico do cinemão americano mais popular. Onde Coppola virava as convenções do cinema de guerra e aventura de cabeça para baixo, e ao mesmo tempo que refletia sobre o vazio da existência criava um espetáculo audiovisual hipnotizante e deslumbrante, Fosse faz o mesmo com o estilo musical: reinventa as possibilidades e regras que regem o andamento dos números, a utilização dramática e/ou cômica da música, os momentos adequados a uma canção. Encanta e enlouquece, simultaneamente.
E, acima de tudo, filma bem demais. Cada sequência é uma aula de decupagem, de montagem, de ritmo. A câmera se integra com seus atores e bailarinos de forma quase hipnótica, os cortes antecipam ou interrompem ações. Há tantas sequências antológicas no filme, e ao mesmo tempo sem que cada uma queira simplesmente chamar atenção para si: todas estão completamente integradas a um projeto. Assim, são igualmente fenomenais os grandes números musicais (como o inicial, o final e o do ensaio da peça) e as pequenas cenas entre os atores. Atores, aliás, fantásticos, capitaneados por um Roy Scheider possuído. Mas, mais do que isso, atores que a câmera lê como poucas, sabendo onde está a inflexão mais importante, o momento mais significativo, a reação mais expressiva. Assim é que cenas de dois personagens como a de pai e filha dançando, ou a da ex-mulher com o ex-marido, ou a namorada na cama com o namorado, ou o produtor com o cineasta, ou em especial um pequeníssimo momento entre o personagem principal e uma mulher moribunda no hospital são tão completamente apaixonantes como os grandes números.
Da primeira à última sequência All That Jazz exala aquela que talvez seja a mais rara e necessária qualidade de um filme: a simples necessidade que seu autor tenha de que o filme exista. Cada fotograma é sentido, é vivo, é pulsante, é humano, é vital. Humano como são todas as tantas falhas de caráter deste personagem, que só o tornam mais e mais fascinante. All That Jazz é um filme para quem ama cinema, mas acima de tudo para quem ama a vida e tudo que faz parte dela, incluída aí a morte. Iguala vida e arte, como deve ser.

Eduardo Valente
(Texto original: 
http://www.contracampo.com.br/41/allthatjazz.htm)

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