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sábado, 9 de dezembro de 2017

SAM FULLER: NOS PASSOS DE MARLOWE

















por Luc Moullet

Os jovens cineastas americanos não têm nada a dizer, e Sam Fuller menos ainda que os outros. Há algo a ser feito e ele o faz, naturalmente, sem se forçar. Esse não é um pequeno elogio: detestamos os filósofos fracassados, que fazem cinema apesar do cinema, que reproduzem descobertas de outras artes, aqueles que querem exprimir um tema digno de interesse por meio de um certo estilo artístico. Se você tem alguma coisa a dizer, diga-a, escreva-a, pregue-a se quiser, mas nos deixe em paz.

Pode surpreender semelhante a priori a propósito de um cineasta que confessa ter grandes ambições, e é o autor completo de quase todos os seus filmes. Mas são justamente aqueles que o classificam de roteirista inteligente que não apreciam Capacete de Aço, ou que, em seu nome, rejeitam Renegando o Meu Sangue, que - outra possibilidade - defendem por razões totalmente gratuitas.

Da coesão. De quatorze filmes, Fuller, antigo jornalista, consagra um ao jornalismo; antigo repórter criminal, quatro ao melodrama policial; antigo soldado, cinco à guerra. Os quatro westernsaparentam-se ao gênero filme de guerra, pois é a perpétua luta contra os elementos, na qual o homem reconhece sua dignidade, que define a vida do pioneiro do século passado, luta esta prolongada em nossa época pela vida do soldado: é por isso que “a vida civil não me interessa” (Baionetas Caladas).

Em Dark Page, pequeno romance policial super acelerado, um jornalista arrivista bem-sucedido mata acidentalmente sua ex-amante; por desafio, jogo e necessidade profissional, ele coloca seu melhor repórter no caso, e se vê obrigado a cometer crime após crime para não ser descoberto. O problema: a descrição, e através desta o questionamento, do comportamento fascista, como em A Marca da Maldade. Mas aqui Quinlan e Vargas se estendem as mãos: a contribuição estética do primeiro - pois o fascismo é belo - e a contribuição moral do segundo - sozinho, ele tem a razão do seu lado - se nutrem mutuamente. Welles renega Quinlan, mas ele é Quinlan: eterna contradição cujas origens estão no final da Idade Média, no Renascimento italiano e no drama elizabetano, perfeitamente definida pela parábola do relógio cuco em O Terceiro Homem. Com Fuller, é diferente: abandonando o domínio do absoluto, ele nos propõe um compromisso entre a moral e a violência, cada uma necessária, contra seus próprios excessos. A esse compromisso corresponde a conduta de Adam Jones, o comandante de Tormenta Sob os Mares, o trabalho do soldado e do policial, e do cineasta também. Os valorosos soldados de Capacete de Aço matam com o mesmo prazer que os gângsteres de Anjo do Mal; apenas um certo aprendizado da relatividade poderá nos fazer entrever as mais elevadas esferas: daí a razão deste não-conformismo integral. Os canalhas tornam-se santos. Ninguém consegue se identificar com eles. É pelo amor de uma mulher que o covarde Bob Ford, a vergonha da saga do Oeste, mata Jesse James. É pelo amor de uma mulher que James Reavis, tornado barão de Arizona graças a um complô monstruoso que se estende por vinte anos, confessará tudo no momento em que já não tinha nada mais a temer, e permanecerá voluntariamente sete anos na prisão. É um covarde, um anti-militarista, Denno, que se tornará herói de guerra (Baionetas Caladas). É um batedor de carteiras, Skip (Anjo do Mal) que, graças ao amor de uma mulher, roubará dos espiões comunistas preciosos documentos os quais eles tinham interceptado, e através desse roubo se reabilitará. Charity Hacket, redatora chefe com hábitos de gangster, da rua Park Row, será finalmente conquistada pela tenacidade de seu concorrente democrata, Phineas Mitchell, que ela tentou ultrapassar de todas as maneiras; ela o salva da ruína e se casa com ele. Aqui, e em Baionetas Caladas, é abordado este tema wellesiano do duplo que constitui a ossatura de Casa de Bambu: a identidade do policial associado aos gangsteres só nos é revelada em plena metade do filme, e nada até então nos permitia distingui-lo dos outros. E é o próprio chefe da gangue que lhe estende a mão, que o salva da morte: “Paradoxalmente, Fuller, tão decidido, tão viril, é um mestre da ambigüidade”, disse Domarchi. Aqui, o estudo dos dois personagens dá um sentido profundo a esta justaposição que, num Welles, reflete os artifícios de uma má-consciência. Quinlan e Vargas não podem se comparar, pois são complementares, e formam em realidade um único ser, o ser do autor, enquanto que aqui Sandy e Eddie podem ser comparados. O que, pelo contrário, não impede Welles de ser incomensuravelmente maior que Fuller. Aposto inclusive que, se ele um dia for ver Renegando o Meu Sangue, exasperado, deixará a sala antes dos créditos.

Fuller acima da política

Pelo seu não-conformismo, Renegando o Meu Sangue bate todos os recordes: no dia seguinte à derrota, O’Meara, soldado sulista, vai de encontro aos Sioux para lutar contra o jugo nortista. Em parte convencido pelo capitão Clarke, o yankee liberal, que lhe mostra a inanidade de seu ódio, e instruído pelo infeliz exemplo do tenente Driscoll, o yankee fascista, ele retornará à sua pátria. Em julho de 1956, no New York Times, o próprio Fuller precisou o sentido da fábula, que explicaria as dificuldades do regime americano contemporâneo: os adversários políticos do governo, em qualquer época, buscam maturar seu ressentimento, aliando-se aos inimigos de seus países. Há aí várias interpretações possíveis, e Fuller deixa subentendido que a aliança com os Índios de então corresponde à aliança, a respeito da questão do Sul, com os elementos negros mais violentos. Contrariamente ao que se possa dizer de Fuller, não existe nele nenhum maniqueísmo, ainda menos que em Brooks, já que aqui encontramos dois tipos de Nortistas, dois tipos de Sulistas, e ainda quatro tipos de Indígenas. O Huma-Dimanche[1] mostrou-se perplexo diante de tal confusão: “Os Sulistas são anti-racistas, os Nortistas são racistas, os Indígenas pró-Americanos, e certos Americanos Pró-Indígenas”. Quando os renegados são obrigados a se contradizer, ou seja, a massacrarem seus concidadãos, eles dão meia-volta: “The end of this story could only be told by you”, ou, se assim preferirem, já que estamos em Julho de 1956, a vida dos Estados Unidos dependerá do voto que vocês depositarão nas urnas no próximo novembro. Eis aí, em aparência, um filme nacionalista, reacionário, nixoniano. Fuller seria então este fascista, este ultra-reacionário outrora denunciado pela imprensa comunista? Não o creio. Ele possui em demasia o dom da ambigüidade para pertencer exclusivamente a um único partido. Se o fascismo é o tema de sua obra, Fuller não se erige em juiz. É um fascismo interior que o preocupa, ao invés de suas conseqüências políticas. É por isso que os personagens de Meeker e Steiger são mais fortes que o de Michael Pate em Sangue Sobre a Terra: Brooks é excessivamente cuidadoso para ser implicado na questão, enquanto que Fuller se encontra em casa; ele fala do que conhece. E apenas o ponto de vista sobre o fascismo de alguém que fora tentado por este é digno de interesse.

Fascismo de gestos mais que de intenções. Pois não nos parece que Fuller seja exatamente um especialista em política. Se ele se proclama de extrema-direita, não seria para mascarar, sob uma fachada exterior mais convencional, um ponto de vista moral e estético pertencente a um domínio marginal pouco apreciado?

Fuller anti-comunista? Não precisamente. Pois Fuller confunde, em parte indubitavelmente por motivos comerciais, comunismo e gangsterismo, comunismo e nazismo. Ele imagina os representantes de Moscou, a respeito dos quais é completamente ignorante, a partir do que conhece, por sua própria experiência, dos nazistas e dos gângsteres. Não esqueçamos que Fuller só fala daquilo que conhece. Quando pinta o inimigo (e em Capacete de AçoBaionetas Caladas e Tormenta Sob os Mares, ele se arranja geralmente para passar silenciosamente por esse aspecto), é um inimigo muito abstrato, extremamente convencional. Apenas o diálogo se encarrega de meter os pingos nos is, e é lamentável que Anjo do Mal e No Umbral da China nos sejam verboten[2] por um motivo tão pouco fundamentado.

A moral é uma questão de travellings. Esses pequenos detalhes não derivam em nada do modo pelo qual são expressos, muito menos de sua qualidade de expressão, que aliás os desmente com freqüência. Seria totalmente estúpido tomar este filme tão rico por uma defesa pró-Indígena ou racista, assim como seria estúpido tomar Delmer Daves por um corajoso cineasta anti-racista só porque, a cada contrato assinado, uma cláusula estipula a presença em seus filmes de relações amorosas entre seres de raças diferentes. O público inadvertido não se deu conta de nada, e é sempre o público quem tem razão.

Um cinema moderno

A câmera se desloca pela esquerda, num plano baixo de um campo de milho com admiráveis tons de amarelos intensos, recoberto de cadáveres de soldados em uniformes sujos e escuros, alinhados nas mais curiosas posições; depois se eleva para enquadrar Meeker, adormecido em sua montaria, num estado lamentável. Sobre um fundo de fumaça negra extremamente densa, destaca-se Steiger, tão sujo quanto o outro, mas vestido de camponês. Ele atira em Meeker, vasculha sua vítima, descobre comida em seus bolsos, instala-se sobre o corpo para comer o que achara; percebendo que carrega um pouco de pão também, ele o pega; acende um cigarro. Meeker começa a reclamar incomodado, Steiger se afasta um pouco para longe. Close em Steiger, que masca e fuma. Então, em imensas letras vermelhas, se inscreve em sua fronte e sobre o seu queixo o título do filme. É a primeira vez que os créditos aparecem sobre o rosto de um homem, e de um homem prestes a comer. Esta seqüência, digna de uma antologia do cinema moderno, já revela algumas das qualidades mestras do nosso cineasta.

1º O senso poético do movimento de câmera. Em muitos cineastas ambiciosos, os movimentos de câmera dependem da composição dramática. Jamais isto se dá em Fuller, onde sua gratuidade é felizmente total: é em função do poder de emoção do movimento que se ordena a cena. Assim, ao final de Capacete de Aço, é o caso deste lento deslocamento da câmera no qual, sob o fogo ardente das descargas das metralhadoras, desabam, segundo um ritmo musical, os inimigos. Baionetas Caladas formiga de longuíssimos travellings circulares de 360°, e em igual medida de closes os quais, ao espocar de rosto em rosto, são impregnados de um ritmo fascinante.

2º Um humor fundado sobre a ambigüidade. Aqui, o contraste entre o corpo de Meeker agonizante e a impassibilidade de um Steiger esfomeado. Mais adiante, num impressionante close, veremos um camponês do Sul transbordar em canções a força do seu ódio contra os Yankees. Juntemos a isso algumas reflexões picantes sobre a Constituição dos Estados Unidos. Walking Coyote confessa que não buscou se tornar chefe de sua tribo, pois a política o enoja. Indignado com a possibilidade de que o enforquem, ele exclama: “Ah! que tempos! Na minha época, isto não era assim. Hoje, não há mais moral. Os jovens massacrem os velhos, matam, embriagam-se, estupram”. Réplica que poderia muito bem figurar em Os Trapaceiros ou em qualquer filme americano sociológico, mas que colocada na boca de um Sioux de 1865 nos mata de rir. Em cada diálogo, Fuller se diverte em nos desconcertar; ele dá a impressão de esposar todos os pontos de vista, e é isto que torna seu humor sublime. Cada cena de amor (a das sobrancelhas em Casa de Bambu, a da tatuagem e da bofetada em Tormenta Sob os Mares, onde encontramos também uma admirável paródia do poliglotismo do jargão comercial) enriquece um motivo extremamente banal por meio de um texto cheio de verve e de originalidade.

3º Uma recriação da vida que não possui nada em comum com a que nos é geralmente imposta na tela do cinema. Ao invés do civilizado Brooks, é a O Atalante que devemos nos reportar. Fuller é um personagem rude: tudo o que faz é incongruente. Uma centelha de loucura o habita. Mas temos necessidade dos loucos, pois o cinema é a mais realista das artes; e na evocação da existência, os cineastas sensatos permaneceram sob a influência das tradições estabelecidas desde séculos pela literatura e pintura, coagidos a esquecer a verdade mais superficial em nome do realismo, limitado visual e temporalmente. Apenas os loucos podem aspirar a criar um dia uma obra comparável ao modelo vivo, obra esta que, aliás, jamais chegará a possuir um décimo da verdade do original. Mas ninguém pode fazer melhor. Em Fuller, vemos tudo o que os outros omitem deliberadamente de seus filmes: a desordem, a escória, o inexplicável, a barba mal aparada, e uma espécie de fascinante feiúra do rosto do homem. É um traço de genialidade ter escolhido Rod Steiger, pobre coitado atarracado, desprovido de todo prestígio, cujo chapéu achatado oculta os traços ao menor dos plongés, mas a quem uma trajetória e um porte desgraciosos conferem a própria força da vida. Poderíamos inclusive assinalar a simpatia do diretor pelos corpulentos, pelos balofos: um Gene Evans é o astro em quatro de seus filmes. E - apliquemos aqui aos personagens a famosa e truffaudiana teoria dos autores - sua estima diminui na proporção do número de quilos. Estes heróis esbeltos de rosto anguloso, John Ireland, Vincent Price, Richard Basehart, Richard Kiley, Richard Widmark não possuem o peso suficiente necessário para resistir à baixeza. É que o homem pertence à ordem da terra, e deve a ela se assemelhar, em toda a sua acre beleza.

Fuller é um primitivo - mas um primitivo inteligente, o que traz para a sua obra ressonâncias singulares -; o espetáculo do mundo físico, o espetáculo da terra é seu melhor terreno de inspiração, e se ele se vincula ao ser, é apenas na medida em que este se vincula à terra. É por isso que a mulher é com freqüência ignorada (não em A Dama de PretoAnjo do Mal e Dragões da Violência, onde ela conserva as características do homem fulleriano; não em No Umbral da ChinaTormenta Sob os Mares e igualmente Dragões da Violência, onde Fuller evoca, com um talento demencial, o contraste entre a besta e o anjo, o que dissipa todo e qualquer equívoco). É por esse motivo que o corpo do homem lhe interessa particularmente - cem vezes Fuller é inspirado pelos corpos nus dos Índios, assim como pelos corpos nus dos marinheiros em Tormenta Sob os Mares; ao sair de uma sessão de Renegando, ficamos com a impressão de nunca até então termos visto verdadeiros Índios em um western - e a parte do corpo que lhe interessa ainda mais particularmente é esta que toca constantemente o solo: sem dúvida, Fuller é um podólatra. No primeiro plano, ao encontrar-se com Walking Coyote, a câmera arranha a terra, reenquadra os pés e apenas acidentalmente retoma a visão dos rostos. E esse estilo será radicalizado a ponto de fundar o simbolismo da obra: a corrida da flecha, pivô e título do filme, é a corrida de um homem calçado de mocassins perseguindo um homem de pés descalços (membro da Infantaria, que depois de ter encontrado um certo Walking Coyote, irá se casar com uma certa Yellow Mocassin). O melhor dentre estes será aquele que possuir os pés mais sólidos. Pés ensangüentados, pés fatigados, pés rudemente eficazes, pés ágeis, pés calçados de botas, com que virtuosismo Fuller, que, aliás, teve todo o tempo disponível para estudar esta questão quando de sua viagem ao Japão, retrata diferentes estilos de maratonistas! Quem melhor do que ele para filmar os Jogos Olímpicos em Roma, no ano seguinte? As nádegas são estrelas igualmente, pois ao menos 30 segundos do filme são consagrados a um estudo minucioso do problema relativo ao conforto da sela do cavaleiro.

Uma desordem à la Vigo

Cineasta terrestre, poeta do telúrico, ele se apaixona pelo instintivo. Adora mostrar o sofrimento de uma forma ainda mais sádica que a de DeMille: amputações (mesmo uma mão deliberadamente cortada em Tormenta Sob os Mares), dolorosas extrações de balas de seu próprio corpo (Baionetas Caladas) ou de outros corpos (Renegando o Meu Sangue), com fortes perdas de sangue. Uma criança indefesa é massacrada em uma esquina da Park Row. Nem o amor despreza os prazeres do sadismo (Anjo do Mal). Antes de ser nocauteado por repetidos golpes de martelo, o Japa de Tormenta Sob os Mares lamenta não ter sido espancado com mais força, como se isso fosse uma vergonha. Festival de crueldades e orgias; Renegando o Meu Sangue se encerra com este admirável plano no qual Meeker, prestes a ser esfolado vivo, recebe a graça de uma bala no meio da testa vermelha e suada.

Mais acima citei Vigo; esta semelhança mostra-se ainda mais evidente em Anjo do MalCapacete de Aço e sobretudo Baionetas Caladas: sobre um roteiro extremamente cadenciado e num plano premeditado, Fuller compõe ações sem referência a uma dramaturgia pré-fabricada. Faz-se não importa o que, e é bem difícil entender o que quer que seja. As relações dos soldados entre eles, relações morais e relações no plano, onde todos os rostos estão voltados para interesses diferentes, criam um labirinto de significações. Podemos aplicar a Fuller o que Rivette escreveu de Vigo: “Ele sugere uma constante improvisação do universo, uma perpétua, tranqüila e segura criação do mundo”.

O Anti-Tati

No plano formal, pela primeira vez descobrimos esse lado Fabrice em Waterloo[3], ressaltado tão freqüente e complacentemente a propósito de operetas menores. Esse bizarro fulleriano explica seu gosto pelos cenários exóticos - seis de seus filmes se situam no Extremo Oriente -, pagodas misteriosas (Capacete de Aço), estátuas, casas e mobiliários à moda nipônica (Casa de Bambu), que possuem o mesmo relevo, o mesmo poder de vida que o metrô, os becos dos imóveis de Chicago e suas casas sobre palafitas em Anjo. E sobretudo, quando se trata de evocar a complexidade da maquinaria moderna, Fuller se torna o maior metteur en scéne do mundo. Nele, o universo artificial e o natural apresentam as mesmas características: sabe admiravelmente reproduzir o caráter denso, maciço e misterioso das armas de fogo, de um depósito de munições (No Umbral da China), de um imóvel tinindo de novo (Casa de Bambu), do mecanismo de um submarino, onde as sucessivas variações de cenários de fundos coloridos intensificam o realismo e a originalidade, de uma usina atômica (Tormenta Sob os Mares). A natureza também constitui um cenário barroco: extraordinários cantões esfumaçados de Capacete de Aço e montanhas cobertas de neve em Baionetas Caladas.

Uma exceção entre os grandes coloristas, Fuller prefere, com Joseph MacDonald[4], os tons intermediários, marrons, ocres enegrecidos, violetas pálidos, brancos sujos, cores da terra, tão autênticas quanto as do arco-íris, que evocam contudo o parque de diversões em Casa de Bambu e a plasticidade de Renegando o Meu Sangue.

Um filme feito com seus pés

Se, a cada instante, Baionetas Caladas criava uma seqüência de relações originais entre os heróis e burilava os rostos com uma arte consumada, o mesmo não acontece em Renegando o Meu Sangue, onde somente por clarões encontramos estes confrontos de seres entre seres. O’Meara e Driscoll, Crazy Wolf e O’Meara, Driscoll e Crazy Wolf, através dos sorrisos de canto da boca, prefiguram os êxtases da competição ou, por meio de olhares enraivecidos, contém a custo sua raiva, quando em seu caminho se interpõem uma mulher ou um terceiro. O gosto pela luta, pela violência cria uma cumplicidade entre os adversários, em nome da qual um salva o outro, tema de Casa de Bamburetomado inúmeras vezes aqui. Mas isto apenas constitui uma ínfima parcela do todo. Por quê?

Na Fox, Fuller era obrigado a respeitar certas formas tradicionais de decupagem e de filmagem, e de trabalhar no interior destas formas. Deve lhe ter sido duro. Enquanto que, em sua produtora de denominação shakespeareana[5], a milhares de quilômetros de Hollywood, era livre como um pássaro. O roteiro é extremamente elaborado, com suas sutis correspondências, mas o filme sofre - e se beneficia - de um desequilíbrio constante. Como Fuller adora filmar, mais que tudo, uma seqüência de cenas que lhe dão prazer, livremente, ele negligencia o resto, todas essas ligações obrigatórias: ele as escamoteia na decupagem ou na filmagem - eis a razão desses múltiplos buracos nos filmes - ou se desinteressa - e aí a direção de atores torna-se praticamente nula. Baionetas era a desordem na ordem, perfeita síntese formal da moral fulleriana do compromisso. Era sua obra-prima na medida em que a loucura só pode realmente se exprimir com um acréscimo considerável de razão. Enquanto que Renegando é o triunfo da desenvoltura, da indolência, da preguiça. Talvez nenhum cineasta tenha ido tão longe no desleixo (com exceção do pobre Josef Shaftel com The Naked Hills). Quaisquer que sejam suas negligências, não deixamos de nos fascinar pela espontaneidade implicada por elas: Baionetas é ou será logo um clássico, enquanto Renegando permanecerá um filme de cabeceira. Fuller é um amador, um desleixado, já entendemos. Mas seu filme exprime o amadorismo e a preguiça, e isso já é muito.

Se o filme não arrecadou um centavo na América, foi porque Fuller, único responsável, só mandou para a RKO uma montagem de rushes que esta cortou, a Universal recortou e a Rank cortou ainda mais. Com razão, ninguém acreditava no sucesso de um filme que Sam Fuller realizou com seus pés, como o disse graciosamente Mrs. Sarita Mann: o porquê da distribuição ter sido sabotada. Mas os cortes não parecem ter tirado grande coisa ao valor de Renegando: o filme é isento do que não falta jamais às grandes produções em série, os sempiternos raccords improvisados e ridículos.

Filmar é fácil para ele

O que mais nos importa aqui é que este animal Fuller tenha livremente perambulado pelo Arizona por cerca de cinco longas semanas - uma de suas filmagens mais longas! -, com um orçamento de quatrocentos milhões - Deus sabe o que ele pode ter feito com isso! -, e para nos oferecer o quê? Cento e cinqüenta planos, que na projeção darão duzentos, encadeados por fusões impossíveis. E que planos! Seu estilo já não possui nada de ordinário (salvo no seu primeiro ensaio, desajeitadamente clássico): é um belo estilo de um bruto! Nele, o plano americano, figura perfeita do classicismo, ou é raro ou medíocre. Quando se interessa por vários personagens ou objetos, planos gerais; se é por um ou dois, closes. Fuller é o poeta do close, que, por seu caráter elíptico, é sempre rico em surpresas (a abertura de Capacete) e que dá um relevo insólito a rostos ou fiapos de grama, objetos habituados pelo cinema comercial a pouca reverência. Mas aqui, ele se esforça ainda menos: fala-se - muito, ou age-se - muito; quando alguém diz algo de interessante, ele não está interessado em artifícios de interpretação ou em multiplicar os ângulos para desteatralizar a cena. Cark tenta colocar O’Meara no bom caminho. Longo discurso. Contracampo? Ainda espero por este. Durante no mínimo quatro ou cinco minutos, assistimos aos dois, sentados imóveis um ao lado do outro, dando adeus ao A.B.C. idhecal[6].

Essa desenvoltura irrita, mas quantas riquezas surgem dali! É errado dizer que Fuller é inspirado, uma vez que isto pressuporia a possibilidade de que Fuller não fosse inspirado, quando na realidade filma ativamente. Instintivo, cineasta-nato, filmar é fácil para ele; basta-lhe permanecer idêntico a si mesmo a cada instante - o que poderíamos dizer a propósito de um Ray menor como Quem Foi Jesse James?. Seus esboços são insólitos, e mais fortes e reveladores que uma sólida construção. Ele pode se permitir a mistura de estilos: há de tudo em Fuller, um mundo neste deserto vivo, com seus bosques de árvores esféricas, até o delírio de O’Meara, perdido na fumaça, destas traquinices plásticas à la Eisenstein à composição rigorosa e fordiana dos planos mais gerais do ataque ao forte. Descobriríamos também Fritz Lang em Casa de Bambu, na organização geométrica da cena do assalto ou naquela da partida de bilhar, ou ainda em Anjo do Mal (a morte de Moe). De quê importa! Por uma espécie de homogeneidade poética, tudo isto permanece sempre Fuller, com sua força do instantâneo e do inacabado.

Marlowe e Shakespeare

Aceitamos com mais facilidade a cena - que para a reflexão possui valor simbólico - na qual um jovem Índio mudo vê-se preso na areia movediça e é salvo por um soldado nortista que, irritado com os acordes sincopados emitidos pelo jovem Índio através de uma gaita, salva-o ao preço de sua própria vida, precisamente por esta não ser integrada ao filme: assim as intenções são constantemente corrigidas pela mise en scène. Fuller, que parecia tão fiel às suas belas idéias a respeito da América e sobre a beleza da vida democrática, se contradiz a cada imagem: é evidente que os costumes dos Sioux lhe inspiram e agradam infinitamente mais que a perspectiva da vida tranqüila ao pé do fogo, que souberam tão magnificamente cantar um Brooks e um Hawks, como bem testemunham as múltiplas platitudes da mise en scène, neste sentido mise en scène de crítico, de político e de moralista.

É assim que, ao fim e ao cabo, Fuller segue no itinerário inverso ao de Welles, e pode-se dizer que há entre eles uma diferença - que se inscreve igualmente no domínio dos valores - da mesma ordem que aquela entre Marlowe e Shakespeare, com todas as conseqüências subentendidas por esta.

Embora a princípio sempre tenha negado isso, Welles tentou, através das diferentes formas de sua arte (que o revelam ao mesmo tempo como romântico e civilizado) produzir a síntese de suas aspirações físicas e morais; ao passo que Fuller, Faustiano em princípio e Prometéico de fato, embora consciente da necessidade de tal síntese e ativamente procurando por ela, é mais cedo ou mais tarde traído, quando totalmente entregue a si mesmo e não podendo portanto ser redimido pela benéfica intervenção de influências exteriores, devido à própria intransigência nas profundezas de seu caráter.

Notas:

[1] Huma-DimancheHumanité-Dimanche, revista francesa de orientação comunista [n.d.t.].

[2] Anjo do Mal foi banido na França por sua representação dos Comunistas, e No Umbral da China, que se passa na Guerra Vietnamita, por sua representação dos franceses; Proibido (1958) ainda não tinha sido visto na França. Quando Anjo do Mal foi finalmente liberado na França, em 1961, foi numa versão dublada chamada Le port de la drogue (literalmente O Porto da Droga) na qual toda história referente ao roubo de segredos de Estado Americanos por Comunistas tinha sido transformada em uma trama sobre o tráfico de drogas - uma alteração cuja facilidade com que se realizou foi tomada para validar o ponto de vista de Moullet sobre a representação ‘abstrata’ do inimigo. Anjo do Mal foi criticado por Moullet em Cahiers du Cinéma nº 121, Julho de 1961, e Proibido em Cahiers du Cinéma nº 108, Junho de 1960 [n.d.t.].

[3] Fabricio Del Dongo, personagem da obra-prima de Sthendal, A Cartuxa de Parma. Fabricio, jovem romântico, cheio de entusiasmo por Napoleão, vai por conta própria para Waterloo lutar como voluntário em seus regimentos. O episódio é narrado de forma irônica; Fabricio passa mais tempo esperando pela ação do que realmente participando nesta, e quando ele de fato luta pela sua vida é em meio à retirada Francesa [n.d.t.].

[4] Joseph MacDonald. 1906-1968. Fotógrafo que trabalhou com Fuller em Anjo do Mal, 1953, e em cores em Tormenta Sob os Mares, 1954, e Casa de Bambu, 1955; MacDonald também era bem conhecido por Moullet e pelo restante dos Cahiers por seu trabalho com Nicholas Ray em Delírio de Loucura, 1956, e Quem Foi Jesse James?, 1957 [n.d.t.].

[5] A companhia produtora de Fuller chamava-se Globe Entreprises, e produziu Renegando o Meu Sangue e Proibido para a RKO; No Umbral da China e Dragões da Violência para a Fox; O Quimono Escarlate A Lei dos Marginais para a Columbia.

[6] Regras ditadas pelo Instituto de Altos Estudos Cinematográficos, comumente designado IDHEC [n.d.t.].

(Cahiers du Cinéma nº 93, março 1959, pp. 11-19. Republicado na compilação Cahiers du Cinéma: The 1950s - Neo-Realism, Hollywood, New Wave, editada por Jim Hillier, B.F.I., 1985, pp. 145-155. Traduzido por Luiz Soares Júnior e extraído de focorevistadecinema.com.br)

quinta-feira, 9 de julho de 2015

Elogio de um cinema feérico


No meio de um desfile de modas, uma das modelos precisa deixar o atelier para ir visitar seu companheiro, que telefona avisando que está mal da saúde. Estamos em Sei Donne per l'Assassino / Blood And Black Lace de Mario Bava. O espectador tem um privilégio de informação em relação à pobre moça: ele sabe que por ela espera um assassino que deseja realizar uma morte do tipo queima-de-arquivo (é como os assassinatos se seguem no filme). Quando a moça entra no estúdio e as luzes se apagam, assistimos ao provavelmente mais delirante e aberrante espetáculo de sombras e cores que a história do cinema tem a oferecer num filme com personagens, histórias e veiculação comercial. Com toda a tradição que surge dos primeiros filmes de Mario Bava, estamos diante de uma escola – que, se pensarmos como escola, é nos últimos quarenta anos a única do mundo – que deseja transformar um gênero cinematográfico reputado como menor (ao contrário do noir e do melodrama, o horror é ainda hoje alvo dos narizes em pé dos cinéfilos mais esnobes – e, adicionemos, cegos) num campo de pesquisa plástica que é definitivamente experimental.
Observemos bem Sei Donne per l'Assassino: não é como no cinema americano um registro para causar medo através da história nem como as produções britânicas da Hammer, que cativavam seus espectadores pela criação de climas soturnos e de uma elegância incomparável. A trama tecida pelo filme (e pela maioria das obras de Bava e de Argento, seu sucessor) não se encaminha para nenhum desses dois lados canônicos do cinema de terror, mas em direção a algo que só alguns dos grandes mestres conseguiram na história do cinema: para o prazer do olho, que é conseguido através da mestria da direção (enquadramento/luz/decupagem) e transforma um simples filme de ficção em pesquisa conceitual. Pertencem a esse hall infame cineastas como Alfred Hitchcock, Fritz Lang, Brian de Palma, Stanley Kubrick... A câmera desenha por si própria um filme mais interessante que o filme que se vê acompanhando a história e seguindo as motivações dos personagens.
No filme de Bava, não sabemos profundamente das motivações da moça que procura seu colega no estúdio, e tampouco nos questionamos por que os aposentos da casa são de tal forma excessivos. A quebra da verossimilhança é abissal, mas eis que estamos nós maravilhados e pedindo mais da inacreditável luz pisca-pisca que ilumina com tons de azul e rosa (!) os elementos de cenário da seqüência do filme, numa das cenas mais anti-naturalistas já filmadas dentro do esquema longa-metragem-industrial-de-ficção. Podemos igualmente falar de toda a seqüência inicial de Suspiria, que compreende uma chuva no aeroporto, uma perseguição à noite na floresta e um inigualável baile sangrento de montagem e cores que se termina com um objeto plástico tão disparatado quanto um ready-made de Duchamp: um rosto fendido ao meio por um vitral (David Lynch fará semelhante – homenagem? – em A Estrada Perdida). Pouco importa o porquê de a menina estar lá ou ser perseguida: o que importa é o resultado atingido, e atingido por meio dos meios de expressão do cinema, ou seja, a visualidade.
Disso deriva, talvez, a maior crítica que é feita a esses filmes: eles jamais se tornariam clássicos porque, apesar de um ou dois momentos geniais, essas obras não trariam histórias cativantes que prendessem o espectador, fazendo com que os filmes fiquem inócuos ou masturbatórios. Nessa crítica, que de fato se esquiva de entender a essência desse cinema, apenas um elemento a ser levado em consideração: o aprofundamente e a inteligibilidade das histórias. Pois é toda a natureza do giallo, subgênero preferido entre os diretores do horror italiano: um estilo de narrar uma intrincada história que entretanto dá muito mais atenção aos fluxos e aos rituais de assassinato do que às explicações psicológicas e à pretensa profundidade da alma humana (onde o maior exemplo seria o evidentemente superestimado O Silêncio dos Inocentes). Ao contrário, toda a graça do giallo reside na maneira como a lógica e a psicologia são relegadas ao mínimo necessário para em compensação o filme ganhar em clima, situações de terror e força de composição, de potência visual. Obviamente, a crítica mais comum ao terror italiano já está toda imbuída de uma visão preconcebida do cinema, e do cinema de terror americano dos anos 80 em particular (logo esse, que bebeu, diluiu e idiotizou – em parte – o cinema fantástico da Itália): verossimilhança, psicologismo funcional (o espectador tem que acreditar nos motivos dos assassino e das sensações das vítimas), fixação na fluidez narrativa e pouca atenção à plasticidade da imagem (pensemos na série Sexta-Feira 13 ou nas continuações de Halloween).
Das escandalosas e estetizantes iluminações de Mario Bava ao gore sofisticado e inventivo de Lucio Fulci passando pela exacerbação do giallo e pela loucura visual de Dario Argento, o cinema fantástico italiano recupera e mantém-se como o único gênero no mundo ainda a considerar o cinema como um suntuoso exercício de estilo destinado a, puramente pelos olhos e pelos ouvidos, espantar e maravilhar o espectador independente da história que se conta. Prazer especificamente cinematográfico (os outros terrores podem muito bem ser contados em livro) outrora disseminado na produção mundial – filme noir, realismo poético francês – e hoje cada vez menor em prol de um cinema de gênero puramente digestivo, ancorado nas vendas para a televisão e no todo-poderoso roteiro, geralmente sem qualquer invenção ou preocupação visual (pensemos nos três mais fortes gêneros de hoje, a comédia romântica, o terror e a comédia adolescente). Com o fim cada vez mais próximo da indústria do terror italiano – Argento é o único a filmar o gênero regularmente e aparentemente só há um continuador, Michelle Soavi –, morre também a última escola de cineastas que se educaram pela visualidade e pela criatividade na iamgem (a penúltima foi o celeiro de Corman: Dante, De Palma, Scorsese, Coppola...) e crescem cineastas que só se interessam pelo gênero enquanto algo camp, "trash" se se quiser. O cinema de terror foge do gênero "fantástico" para entrar nas raias de um cinema de suspense dependente demais dos roteiros. Enquanto isso, o poder de evocação que provém da tela no cinema fantástico hoje ainda pode ser encontrado em alguns diretores, como Carpenter ou Burton ou Amenábar, mas parece em vias de extinção.
"Cinema fantástico" na França tem um sinônimo: "féerique". Assim é tratado desde Méliès, o primeiro homem que realizou truques especialmente para a câmera. Feérico quer dizer relativo às fadas, aos contos de fadas. Logo, um mergulho nas teias de imaginação dos relatos de encantamento da infância, na liberdade de sonhar com palácios, inimigos monstruosos, heróis firmes e mocinhas lindas, mas antes de tudo um poder de imantação que nos transporta para um mundo outro, levemente diferente desse, mas onde ainda é possível sonhar com figuras improváveis, leis físicas diferentes, desaparições súbitas... Se há algo que unifique o cinema de, digamos, Georges Méliès, Jean Cocteau, de um lado, e Bava, Argento e Fulci, de outro, é a capacidade de fazer maravilhar através de um universo não pela verossimilhança e pela psicologia, mas sim pelo poder que as imagens trazem dentro de si. Não de fazer um cinema da diversão, mas de fazer com diversão um cinema do jogo. Uma confiança absoluta na força do cinema, a escola de terror italiano deveria muito honrosamente carregar solitária hoje esse brasão de uma criatividade radical, beirando o infantil (e garantindo um prazer respectivo, o de uma criança com seu brinquedo preferido), que acredita antes de tudo na pregnância e na capacidade de evocação da imagem. Qual brasão? O de digna representante do cinema feérico.

Ruy Gardnier

O medo e o estupor

A retrospectiva dedicada a Mario Bava (1914-1980) pela Cinemateca Francesa, também co-editora de uma preciosa coletânea de textos sobre o mestre italiano, permite hoje uma análise mais confiável. Como seus filmes saíam em Paris sempre nas mesmas salas, todas associadas ao filme de terror – Atlas e Midi Minuit incluídas –se poderia pensar que Bava, durante os vinte anos de sua carreira de diretor (1960-1980), tivesse sempre realizado o mesmo filme, à exceção de alguns westerns ruinzinhos, e que ele era homem de um só gênero...assim como Matarazzo, Leone ou Jacopetti, que realmente só se sentiam à vontade no melodrama, no western ou no documentário-espetáculo.
Na verdade, colar uma só etiqueta na obra de Bava se revela coisa difícil, a marca do Fantástico não se encaixando nem na Menina que Sabia Demais, nem em Banho de Sangue, que se situa na realidade contemporânea, sem pegar emprestado nem ao passado, nem ao futuro, nem ao sobrenatural. A marca do Terror, da qual fazem parte, de certa forma, esses dois filmes, só podendo ser atribuída aPerigo: Diabolik, reconstituição muito divertida de uma história em quadrinhos de sucesso, e nem mesmo – por causa de seu título – à Terrore nelle spazzio, inteiramente marcado pela frieza e especulações futuristas.
Dois gêneros, portanto, são utilizados alternativamente, o fantástico e o terror.
Mas estará o medo, que faz figura de marca de fábrica (vejam esses títulos : I tre volti della paura, Operazzione paura ["as três faces do medo", "operação medo", traduzidos no Brasil como As Três Máscaras do Terror e Mata, Bebê, Mata, n.d.e.]), realmente no encontro? As ações se revelam inverossímeis demais. Personagens e atores são freqüentemente inexistentes1. Pode-se temer, então, pela vida de personagens inconsistentes, que deixam a identificação impossível, e que não se podem distinguir uns dos outros. Em O Planeta dos Vampiros, raramente se vêem os rostos e os corpos dos atores, dissimulados atrás de suas roupas de astronautas. O medo, se ele existe, aparece unicamente durante aqueles poucos segundos que passam entre a primeira visão da arma do crime – de preferência gilete ou canivete – e a visão realmente gore do corpo odiosamente mutilado. Dois filmes, no entanto, procuram uma angústia quase contínua: A Menina que Sabia Demais, por causa da protagonista perseguida permanentemente, situada no quadro realista, à qual não podemos nos identificar, e, principalmente, por causa da impossibilidade de não sabermos nem de onde, nem como, nem por que pode surgir o perigo. E também Banho de Sangue, pois a acumulação estupefaciente dos quinze assassinatos repartidos em todo o filme cria, além do medo pontual que mencionei (causado mais pela particularidade visual atroz da morte que pela morte em si, que sabemos inevitável, já que o hábito ajuda), uma impressão de mal-estar e de enjôo contínuos.
Pode parecer surpreendente que o humor seja consubstancial ao medo. Em Banho de Sangue, onde se ri a cada clímax sangrento, com mais intensidade ainda quando o crime é atroz. Tem nesse riso ao menos quatro razões:
1. Reação frente à inverossimilhança das situações.
2. Expressão de uma necessidade de recuo, de distanciamento em relação à acumulação macabra.
3. Presença de um humor que escorre do comportamento dos personagens: depois de ter visto o homem agonizante se arrastar longos minutos sobre o chão, a mulher o interroga: "Mas tu estás ferido?". Ou ainda, intrusão cômica de uma figura codificada estranha ao gênero do terror, a menina que vê emergir da baía o corpo de seu pai, com polpa no rosto: "Mas é meu pai..."
4. Apreciação admirativa de invenção refinada na escolha de armas mortíferas, a cada assassinato diferente uma das outras.
Banho de Sangue aparece, aliás, como a obra-prima de Bava. Ele impõe ao espectador uma dinâmica irremediável fundada no assassinato, e que releva o cinema mais puro, na medida que não deve nada, nem ao roteiro, nem as ações – nada compreensíveis, por sinal – nem ao sentido, nem aos personagens, nem aos atores. Um cinema, uma lógica que funciona unicamente por ela mesma, sem bengalas, da qual não se encontra equivalente na arte fílmica, e que mergulha o público no estupor admirativo.
O mesmo estupor é acentuado pela utilização do travelling ótico. Se fosse preciso encontrar um denominador comum ao cinema italiano posterior ao neo-realismo, seria a reflexão em cima do zoom, fundamental em cineastas tão diferentes quanto Rossellini (do qual Bava foi diretor de fotografia), Cottafavi e Bava. Com Rossellini, otravelling ótico constitui um apêndice ao movimento lateral da dolly, criador de vida, de respiração interna, de fluidez, de peso existencial, o oposto total da utilização essencialmente dramática que descobrimos nos outros dois mestres peninsulares. Curiosamente, Bava retoma freqüentemente a figura-mãe do zoomcottafaviano, o brusco movimento antes seguido illico de um movimento traseiro não menos rápido. Mas, enquanto que com Cottofavi, como por exemplo em Uma Donna Libera 2, o efeito é muito raro – o cineasta se permite de usá-lo não mais do que duas ou três vezes por filme – criando um clima excepcional chocante pela sua raridade e pela sua natureza contraditória, Bava, por sua vez, se serve dele até o abuso. O zoom é sua imagem de marca mais do que a escolha de um gênero.
Aqui, o zoom se revela criador, não de vida, mas de medo. Essa equivalência torna-se tão institucional que, logo que entra um zoom, ou um duplo zoom, ficamos com medo, mesmo que o objeto filmado não tenha nada de aterrorizante. É o procedimento técnico que, por ele mesmo, suscita medo, como um reflexo pavloviano...E Bava se diverte em nos enganar, em nos orientar com pistas falsas.
Eu detesto filmes que se apóiam no travelling ótico. Eu gosto quando tem um ou dois por filme, ainda assim justificados e eficazes. Porém, quanto mais eu avanço na carreira de Bava, mais os encontro, e mais percebo que funcionam. Eu não contei, mas deve ter mais de cem no estupefaciente Lisa e o Diabo, infinitamente mais apaixonante que as faixas da metade da década de sessenta, que tinham duas ou três vezes menos. É o meio-termo, a justa (a injusta) medida que não funciona. Chegamos a um delírio, a uma orgia, uma vertigem gratuita (lembrando o admirável O Arquivo Confidencial de Sidney Furie) que nos levam, ligados a todo um arsenal de artifícios formais que visam a confundir o verdadeiro com o falso, o ator e a boneca, o sonho e a realidade. Uma reavaliação do cinema 3, e ao mesmo tempo a sua afirmação lírica pela importância do movimento que anima o filme.
Mas tudo isso se encontra hoje ameaçado pelo tempo: raramente projetados, mostrados por difusores quebrados ou pouco exigentes, as cópias dos Bavas são reduzidas a uma dominante rosa ou liga de vinho em todos pontos contrárias ao negativo original. O enorme trabalho de Bava, que conseguia fazer esquecer a falta de recursos, se encontra hoje destruído pelo apodrecimento da cor, que deixa o resultado envelhecido, brega, pobre. Os italianos dedicam toda sua atividade em favor da preservação de obras acadêmicas que não interessam a ninguém, como as de Genina, Camerini, Gallone ou Bolognoni, que não tiveram a ocasião de trabalhar a cor ou nem tentaram. Enquanto que, no sentido de conservação e preservação, não existe no mundo tarefa mais urgente que a consideração pela obra de Bava, onde a cor é essencial, e que periga desaparecer insidiosamente da memória.

Luc Moullet
(publicado originalmente nos Cahiers du Cinéma a propósito de uma retrospectiva Mario Bava na Cinemateca Francesa, mencionada no início do texto)
tradução de Bolívar Torres

1. Eu suspeito que Bava procurava os maus roteiros e os atores impossíveis, como se ele quisesse se proteger do fracasso: o que eu poderia fazer com uma matéria-prima tão chinfrim? O desprezo pelo ator (e do personagem) corresponde a uma atitude assaz freqüente nos diretores de fotografia – função que Bava exerceu durante quarenta anos – para quem o intérprete não tem muito o que fazer, se tornando até um rival em matéria de interesse concedido pelo diretor à seus colaboradores. Esse desprezo deságua numa metafísica do diretor de fotografia, rebaixando o homem ao seu nível mais insignificante. 

2. Em 1954, talvez não fosse zoom, mas que parece, parece.
3. Em Il rosso segno della follia, Bava insere uma manchete de jornal francês carregada de erros de ortografia, e um plano de Paris ridículo, como se estivesse troçando de um produtor que lhe teria imposto referências francesas que o desagradasse. 

Textos retirados do dossiê de terror italiano da Revista Contracampo: http://www.contracampo.com.br/41/frames.htm

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

SAM FULLER: NOS PASSOS DE MARLOWE (fragmento)


por Luc Moullet

Os jovens cineastas americanos não têm nada a dizer, e Sam Fuller menos ainda que os outros. Há algo a ser feito e ele o faz, naturalmente, sem se forçar. Esse não é um pequeno elogio: detestamos os filósofos fracassados, que fazem cinema apesar do cinema, que reproduzem descobertas de outras artes, aqueles que querem exprimir um tema digno de interesse por meio de um certo estilo artístico. Se você tem alguma coisa a dizer, diga-a, escreva-a, pregue-a se quiser, mas nos deixe em paz.

Pode surpreender semelhante a priori a propósito de um cineasta que confessa ter grandes ambições, e é o autor completo de quase todos os seus filmes. Mas são justamente aqueles que o classificam de roteirista inteligente que não apreciam Capacete de Aço, ou que, em seu nome, rejeitam Renegando o Meu Sangue, que - outra possibilidade - defendem por razões totalmente gratuitas.

Da coesão. De quatorze filmes, Fuller, antigo jornalista, consagra um ao jornalismo; antigo repórter criminal, quatro ao melodrama policial; antigo soldado, cinco à guerra. Os quatro westerns aparentam-se ao gênero filme de guerra, pois é a perpétua luta contra os elementos, na qual o homem reconhece sua dignidade, que define a vida do pioneiro do século passado, luta esta prolongada em nossa época pela vida do soldado: é por isso que “a vida civil não me interessa” (Baionetas Caladas).

Em Dark Page, pequeno romance policial super acelerado, um jornalista arrivista bem-sucedido mata acidentalmente sua ex-amante; por desafio, jogo e necessidade profissional, ele coloca seu melhor repórter no caso, e se vê obrigado a cometer crime após crime para não ser descoberto. O problema: a descrição, e através desta o questionamento, do comportamento fascista, como em A Marca da Maldade. Mas aqui Quinlan e Vargas se estendem as mãos: a contribuição estética do primeiro - pois o fascismo é belo - e a contribuição moral do segundo - sozinho, ele tem a razão do seu lado - se nutrem mutuamente. Welles renega Quinlan, mas ele é Quinlan: eterna contradição cujas origens estão no final da Idade Média, no Renascimento italiano e no drama elizabetano, perfeitamente definida pela parábola do relógio cuco em O Terceiro Homem. Com Fuller, é diferente: abandonando o domínio do absoluto, ele nos propõe um compromisso entre a moral e a violência, cada uma necessária, contra seus próprios excessos. A esse compromisso corresponde a conduta de Adam Jones, o comandante de Tormenta Sob os Mares, o trabalho do soldado e do policial, e do cineasta também. Os valorosos soldados de Capacete de Aço matam com o mesmo prazer que os gângsteres de Anjo do Mal; apenas um certoaprendizado da relatividade poderá nos fazer entrever as mais elevadas esferas: daí a razão deste não-conformismo integral. Os canalhas tornam-se santos. Ninguém consegue se identificar com eles. É pelo amor de uma mulher que o covarde Bob Ford, a vergonha da saga do Oeste, mata Jesse James. É pelo amor de uma mulher que James Reavis, tornado barão de Arizona graças a um complô monstruoso que se estende por vinte anos, confessará tudo no momento em que já não tinha nada mais a temer, e permanecerá voluntariamente sete anos na prisão. É um covarde, um anti-militarista, Denno, que se tornará herói de guerra (Baionetas Caladas). É um batedor de carteiras, Skip (Anjo do Mal) que, graças ao amor de uma mulher, roubará dos espiões comunistas preciosos documentos os quais eles tinham interceptado, e através desse roubo se reabilitará. Charity Hacket, redatora chefe com hábitos de gangster, da rua Park Row, será finalmente conquistada pela tenacidade de seu concorrente democrata, Phineas Mitchell, que ela tentou ultrapassar de todas as maneiras; ela o salva da ruína e se casa com ele. Aqui, e em Baionetas Caladas, é abordado este tema wellesiano do duplo que constitui a ossatura de Casa de Bambu: a identidade do policial associado aos gangsteres só nos é revelada em plena metade do filme, e nada até então nos permitia distingui-lo dos outros. E é o próprio chefe da gangue que lhe estende a mão, que o salva da morte: “Paradoxalmente, Fuller, tão decidido, tão viril, é um mestre da ambigüidade”, disse Domarchi. Aqui, o estudo dos dois personagens dá um sentido profundo a esta justaposição que, num Welles, reflete os artifícios de uma má-consciência. Quinlan e Vargas não podem se comparar, pois são complementares, e formam em realidade um único ser, o ser do autor, enquanto que aqui Sandy e Eddie podem ser comparados. O que, pelo contrário, não impede Welles de ser incomensuravelmente maior que Fuller. Aposto inclusive que, se ele um dia for ver Renegando o Meu Sangue, exasperado, deixará a sala antes dos créditos.

Fuller acima da política

Pelo seu não-conformismo, Renegando o Meu Sangue bate todos os recordes: no dia seguinte à derrota, O’Meara, soldado sulista, vai de encontro aos Sioux para lutar contra o jugo nortista. Em parte convencido pelo capitão Clarke, o yankee liberal, que lhe mostra a inanidade de seu ódio, e instruído pelo infeliz exemplo do tenente Driscoll, o yankee fascista, ele retornará à sua pátria. Em julho de 1956, no New York Times, o próprio Fuller precisou o sentido da fábula, que explicaria as dificuldades do regime americano contemporâneo: os adversários políticos do governo, em qualquer época, buscam maturar seu ressentimento, aliando-se aos inimigos de seus países. Há aí várias interpretações possíveis, e Fuller deixa subentendido que a aliança com os Índios de então corresponde à aliança, a respeito da questão do Sul, com os elementos negros mais violentos. Contrariamente ao que se possa dizer de Fuller, não existe nele nenhum maniqueísmo, ainda menos que em Brooks, já que aqui encontramos dois tipos de Nortistas, dois tipos de Sulistas, e ainda quatro tipos de Indígenas. O Huma-Dimanche[1] mostrou-se perplexo diante de tal confusão: “Os Sulistas são anti-racistas, os Nortistas são racistas, os Indígenas pró-Americanos, e certos Americanos Pró-Indígenas”. Quando os renegados são obrigados a se contradizer, ou seja, a massacrarem seus concidadãos, eles dão meia-volta: “The end of this story could only be told by you”, ou, se assim preferirem, já que estamos em Julho de 1956, a vida dos Estados Unidos dependerá do voto que vocês depositarão nas urnas no próximo novembro. Eis aí, em aparência, um filme nacionalista, reacionário, nixoniano. Fuller seria então este fascista, este ultra-reacionário outrora denunciado pela imprensa comunista? Não o creio. Ele possui em demasia o dom da ambigüidade para pertencer exclusivamente a um único partido. Se o fascismo é o tema de sua obra, Fuller não se erige em juiz. É um fascismo interior que o preocupa, ao invés de suas conseqüências políticas. É por isso que os personagens de Meeker e Steiger são mais fortes que o de Michael Pate em Sangue Sobre a Terra: Brooks é excessivamente cuidadoso para ser implicado na questão, enquanto que Fuller se encontra em casa; ele fala do que conhece. E apenas o ponto de vista sobre o fascismo de alguém que fora tentado por este é digno de interesse.

Fascismo de gestos mais que de intenções. Pois não nos parece que Fuller seja exatamente um especialista em política. Se ele se proclama de extrema-direita, não seria para mascarar, sob uma fachada exterior mais convencional, um ponto de vista moral e estético pertencente a um domínio marginal pouco apreciado?

Fuller anti-comunista? Não precisamente. Pois Fuller confunde, em parte indubitavelmente por motivos comerciais, comunismo e gangsterismo, comunismo e nazismo. Ele imagina os representantes de Moscou, a respeito dos quais é completamente ignorante, a partir do que conhece, por sua própria experiência, dos nazistas e dos gângsteres. Não esqueçamos que Fuller só fala daquilo que conhece. Quando pinta o inimigo (e em Capacete de AçoBaionetas Caladas e Tormenta Sob os Mares, ele se arranja geralmente para passar silenciosamente por esse aspecto), é um inimigo muito abstrato, extremamente convencional. Apenas o diálogo se encarrega de meter os pingos nos is, e é lamentável que Anjo do Mal e No Umbral da China nos sejam verboten[2] por um motivo tão pouco fundamentado.

A moral é uma questão de travellings. Esses pequenos detalhes não derivam em nada do modo pelo qual são expressos, muito menos de sua qualidade de expressão, que aliás os desmente com freqüência. Seria totalmente estúpido tomar este filme tão rico por uma defesa pró-Indígena ou racista, assim como seria estúpido tomar Delmer Daves por um corajoso cineasta anti-racista só porque, a cada contrato assinado, uma cláusula estipula a presença em seus filmes de relações amorosas entre seres de raças diferentes. O público inadvertido não se deu conta de nada, e é sempre o público quem tem razão.

Um cinema moderno

A câmera se desloca pela esquerda, num plano baixo de um campo de milho com admiráveis tons de amarelos intensos, recoberto de cadáveres de soldados em uniformes sujos e escuros, alinhados nas mais curiosas posições; depois se eleva para enquadrar Meeker, adormecido em sua montaria, num estado lamentável. Sobre um fundo de fumaça negra extremamente densa, destaca-se Steiger, tão sujo quanto o outro, mas vestido de camponês. Ele atira em Meeker, vasculha sua vítima, descobre comida em seus bolsos, instala-se sobre o corpo para comer o que achara; percebendo que carrega um pouco de pão também, ele o pega; acende um cigarro. Meeker começa a reclamar incomodado, Steiger se afasta um pouco para longe. Close em Steiger, que masca e fuma. Então, em imensas letras vermelhas, se inscreve em sua fronte e sobre o seu queixo o título do filme. É a primeira vez que os créditos aparecem sobre o rosto de um homem, e de um homem prestes a comer. Esta seqüência, digna de uma antologia do cinema moderno, já revela algumas das qualidades mestras do nosso cineasta.

1º O senso poético do movimento de câmera. Em muitos cineastas ambiciosos, os movimentos de câmera dependem da composição dramática. Jamais isto se dá em Fuller, onde sua gratuidade é felizmente total: é em função do poder de emoção do movimento que se ordena a cena. Assim, ao final de Capacete de Aço, é o caso deste lento deslocamento da câmera no qual, sob o fogo ardente das descargas das metralhadoras, desabam, segundo um ritmo musical, os inimigos. Baionetas Caladas formiga de longuíssimos travellings circulares de 360°, e em igual medida de closes os quais, ao espocar de rosto em rosto, são impregnados de um ritmo fascinante.

2º Um humor fundado sobre a ambigüidade. Aqui, o contraste entre o corpo de Meeker agonizante e a impassibilidade de um Steiger esfomeado. Mais adiante, num impressionante close, veremos um camponês do Sul transbordar em canções a força do seu ódio contra os Yankees. Juntemos a isso algumas reflexões picantes sobre a Constituição dos Estados Unidos. Walking Coyote confessa que não buscou se tornar chefe de sua tribo, pois a política o enoja. Indignado com a possibilidade de que o enforquem, ele exclama: “Ah! que tempos! Na minha época, isto não era assim. Hoje, não há mais moral. Os jovens massacrem os velhos, matam, embriagam-se, estupram”. Réplica que poderia muito bem figurar em Os Trapaceiros ou em qualquer filme americano sociológico, mas que colocada na boca de um Sioux de 1865 nos mata de rir. Em cada diálogo, Fuller se diverte em nos desconcertar; ele dá a impressão de esposar todos os pontos de vista, e é isto que torna seu humor sublime. Cada cena de amor (a das sobrancelhas em Casa de Bambu, a da tatuagem e da bofetada em Tormenta Sob os Mares, onde encontramos também uma admirável paródia do poliglotismo do jargão comercial) enriquece um motivo extremamente banal por meio de um texto cheio de verve e de originalidade.

3º Uma recriação da vida que não possui nada em comum com a que nos é geralmente imposta na tela do cinema. Ao invés do civilizado Brooks, é a O Atalante que devemos nos reportar. Fuller é um personagem rude: tudo o que faz é incongruente. Uma centelha de loucura o habita. Mas temos necessidade dos loucos, pois o cinema é a mais realista das artes; e na evocação da existência, os cineastas sensatos permaneceram sob a influência das tradições estabelecidas desde séculos pela literatura e pintura, coagidos a esquecer a verdade mais superficial em nome do realismo, limitado visual e temporalmente. Apenas os loucos podem aspirar a criar um dia uma obra comparável ao modelo vivo, obra esta que, aliás, jamais chegará a possuir um décimo da verdade do original. Mas ninguém pode fazer melhor. Em Fuller, vemos tudo o que os outros omitem deliberadamente de seus filmes: a desordem, a escória, o inexplicável, a barba mal aparada, e uma espécie de fascinante feiúra do rosto do homem. É um traço de genialidade ter escolhido Rod Steiger, pobre coitado atarracado, desprovido de todo prestígio, cujo chapéu achatado oculta os traços ao menor dos plongés, mas a quem uma trajetória e um porte desgraciosos conferem a própria força da vida. Poderíamos inclusive assinalar a simpatia do diretor pelos corpulentos, pelos balofos: um Gene Evans é o astro em quatro de seus filmes. E - apliquemos aqui aos personagens a famosa e truffaudiana teoria dos autores - sua estima diminui na proporção do número de quilos. Estes heróis esbeltos de rosto anguloso, John Ireland, Vincent Price, Richard Basehart, Richard Kiley, Richard Widmark não possuem o peso suficiente necessário para resistir à baixeza. É que o homem pertence à ordem da terra, e deve a ela se assemelhar, em toda a sua acre beleza.

Fuller é um primitivo - mas um primitivo inteligente, o que traz para a sua obra ressonâncias singulares -; o espetáculo do mundo físico, o espetáculo da terra é seu melhor terreno de inspiração, e se ele se vincula ao ser, é apenas na medida em que este se vincula à terra. É por isso que a mulher é com freqüência ignorada (não em A Dama de PretoAnjo do Mal e Dragões da Violência, onde ela conserva as características do homem fulleriano; não em No Umbral da ChinaTormenta Sob os Mares e igualmente Dragões da Violência, onde Fuller evoca, com um talento demencial, o contraste entre a besta e o anjo, o que dissipa todo e qualquer equívoco). É por esse motivo que o corpo do homem lhe interessa particularmente - cem vezes Fuller é inspirado pelos corpos nus dos Índios, assim como pelos corpos nus dos marinheiros em Tormenta Sob os Mares; ao sair de uma sessão deRenegando, ficamos com a impressão de nunca até então termos visto verdadeiros Índios em um western - e a parte do corpo que lhe interessa ainda mais particularmente é esta que toca constantemente o solo: sem dúvida, Fuller é um podólatra. No primeiro plano, ao encontrar-se com Walking Coyote, a câmera arranha a terra, reenquadra os pés e apenas acidentalmente retoma a visão dos rostos. E esse estilo será radicalizado a ponto de fundar o simbolismo da obra: a corrida da flecha, pivô e título do filme, é a corrida de um homem calçado de mocassins perseguindo um homem de pés descalços (membro da Infantaria, que depois de ter encontrado um certo Walking Coyote, irá se casar com uma certa Yellow Mocassin). O melhor dentre estes será aquele que possuir os pés mais sólidos. Pés ensangüentados, pés fatigados, pés rudemente eficazes, pés ágeis, pés calçados de botas, com que virtuosismo Fuller, que, aliás, teve todo o tempo disponível para estudar esta questão quando de sua viagem ao Japão, retrata diferentes estilos de maratonistas! Quem melhor do que ele para filmar os Jogos Olímpicos em Roma, no ano seguinte? As nádegas são estrelas igualmente, pois ao menos 30 segundos do filme são consagrados a um estudo minucioso do problema relativo ao conforto da sela do cavaleiro.

Uma desordem à la Vigo

Cineasta terrestre, poeta do telúrico, ele se apaixona pelo instintivo. Adora mostrar o sofrimento de uma forma ainda mais sádica que a de DeMille: amputações (mesmo uma mão deliberadamente cortada em Tormenta Sob os Mares), dolorosas extrações de balas de seu próprio corpo (Baionetas Caladas) ou de outros corpos (Renegando o Meu Sangue), com fortes perdas de sangue. Uma criança indefesa é massacrada em uma esquina da Park Row. Nem o amor despreza os prazeres do sadismo (Anjo do Mal). Antes de ser nocauteado por repetidos golpes de martelo, o Japa de Tormenta Sob os Mares lamenta não ter sido espancado com mais força, como se isso fosse uma vergonha. Festival de crueldades e orgias; Renegando o Meu Sangue se encerra com este admirável plano no qual Meeker, prestes a ser esfolado vivo, recebe a graça de uma bala no meio da testa vermelha e suada.

Mais acima citei Vigo; esta semelhança mostra-se ainda mais evidente em Anjo do MalCapacete de Aço e sobretudo Baionetas Caladas: sobre um roteiro extremamente cadenciado e num plano premeditado, Fuller compõe ações sem referência a uma dramaturgia pré-fabricada. Faz-se não importa o que, e é bem difícil entender o que quer que seja. As relações dos soldados entre eles, relações morais e relações no plano, onde todos os rostos estão voltados para interesses diferentes, criam um labirinto de significações. Podemos aplicar a Fuller o que Rivette escreveu de Vigo: “Ele sugere uma constante improvisação do universo, uma perpétua, tranqüila e segura criação do mundo”.

O Anti-Tati

No plano formal, pela primeira vez descobrimos esse lado Fabrice em Waterloo[3], ressaltado tão freqüente e complacentemente a propósito de operetas menores. Esse bizarro fulleriano explica seu gosto pelos cenários exóticos - seis de seus filmes se situam no Extremo Oriente -, pagodas misteriosas (Capacete de Aço), estátuas, casas e mobiliários à moda nipônica (Casa de Bambu), que possuem o mesmo relevo, o mesmo poder de vida que o metrô, os becos dos imóveis de Chicago e suas casas sobre palafitas em Anjo. E sobretudo, quando se trata de evocar a complexidade da maquinaria moderna, Fuller se torna o maior metteur en scéne do mundo. Nele, o universo artificial e o natural apresentam as mesmas características: sabe admiravelmente reproduzir o caráter denso, maciço e misterioso das armas de fogo, de um depósito de munições (No Umbral da China), de um imóvel tinindo de novo (Casa de Bambu), do mecanismo de um submarino, onde as sucessivas variações de cenários de fundos coloridos intensificam o realismo e a originalidade, de uma usina atômica (Tormenta Sob os Mares). A natureza também constitui um cenário barroco: extraordinários cantões esfumaçados de Capacete de Aço e montanhas cobertas de neve em Baionetas Caladas.

Uma exceção entre os grandes coloristas, Fuller prefere, com Joseph MacDonald[4], os tons intermediários, marrons, ocres enegrecidos, violetas pálidos, brancos sujos, cores da terra, tão autênticas quanto as do arco-íris, que evocam contudo o parque de diversões em Casa de Bambu e a plasticidade de Renegando o Meu Sangue.

Um filme feito com seus pés

Se, a cada instante, Baionetas Caladas criava uma seqüência de relações originais entre os heróis e burilava os rostos com uma arte consumada, o mesmo não acontece em Renegando o Meu Sangue, onde somente por clarões encontramos estes confrontos de seres entre seres. O’Meara e Driscoll, Crazy Wolf e O’Meara, Driscoll e Crazy Wolf, através dos sorrisos de canto da boca, prefiguram os êxtases da competição ou, por meio de olhares enraivecidos, contém a custo sua raiva, quando em seu caminho se interpõem uma mulher ou um terceiro. O gosto pela luta, pela violência cria uma cumplicidade entre os adversários, em nome da qual um salva o outro, tema de Casa de Bambu retomado inúmeras vezes aqui. Mas isto apenas constitui uma ínfima parcela do todo. Por quê?

Na Fox, Fuller era obrigado a respeitar certas formas tradicionais de decupagem e de filmagem, e de trabalhar no interior destas formas. Deve lhe ter sido duro. Enquanto que, em sua produtora de denominação shakespeareana[5], a milhares de quilômetros de Hollywood, era livre como um pássaro. O roteiro é extremamente elaborado, com suas sutis correspondências, mas o filme sofre - e se beneficia - de um desequilíbrio constante. Como Fuller adora filmar, mais que tudo, uma seqüência de cenas que lhe dão prazer, livremente, ele negligencia o resto, todas essas ligações obrigatórias: ele as escamoteia na decupagem ou na filmagem - eis a razão desses múltiplos buracos nos filmes - ou se desinteressa - e aí a direção de atores torna-se praticamente nula. Baionetas era a desordem na ordem, perfeita síntese formal da moral fulleriana do compromisso. Era sua obra-prima na medida em que a loucura só pode realmente se exprimir com um acréscimo considerável de razão. Enquanto que Renegando é o triunfo da desenvoltura, da indolência, da preguiça. Talvez nenhum cineasta tenha ido tão longe no desleixo (com exceção do pobre Josef Shaftel com The Naked Hills). Quaisquer que sejam suas negligências, não deixamos de nos fascinar pela espontaneidade implicada por elas:Baionetas é ou será logo um clássico, enquanto Renegando permanecerá um filme de cabeceira. Fuller é um amador, um desleixado, já entendemos. Mas seu filme exprime o amadorismo e a preguiça, e isso já é muito.

Se o filme não arrecadou um centavo na América, foi porque Fuller, único responsável, só mandou para a RKO uma montagem de rushes que esta cortou, a Universal recortou e a Rank cortou ainda mais. Com razão, ninguém acreditava no sucesso de um filme que Sam Fuller realizou com seus pés, como o disse graciosamente Mrs. Sarita Mann: o porquê da distribuição ter sido sabotada. Mas os cortes não parecem ter tirado grande coisa ao valor deRenegando: o filme é isento do que não falta jamais às grandes produções em série, os sempiternos raccordsimprovisados e ridículos.

Filmar é fácil para ele

O que mais nos importa aqui é que este animal Fuller tenha livremente perambulado pelo Arizona por cerca de cinco longas semanas - uma de suas filmagens mais longas! -, com um orçamento de quatrocentos milhões - Deus sabe o que ele pode ter feito com isso! -, e para nos oferecer o quê? Cento e cinqüenta planos, que na projeção darão duzentos, encadeados por fusões impossíveis. E que planos! Seu estilo já não possui nada de ordinário (salvo no seu primeiro ensaio, desajeitadamente clássico): é um belo estilo de um bruto! Nele, o plano americano, figura perfeita do classicismo, ou é raro ou medíocre. Quando se interessa por vários personagens ou objetos, planos gerais; se é por um ou dois, closes. Fuller é o poeta do close, que, por seu caráter elíptico, é sempre rico em surpresas (a abertura de Capacete) e que dá um relevo insólito a rostos ou fiapos de grama, objetos habituados pelo cinema comercial a pouca reverência. Mas aqui, ele se esforça ainda menos: fala-se - muito, ou age-se - muito; quando alguém diz algo de interessante, ele não está interessado em artifícios de interpretação ou em multiplicar os ângulos para desteatralizar a cena. Cark tenta colocar O’Meara no bom caminho. Longo discurso. Contracampo? Ainda espero por este. Durante no mínimo quatro ou cinco minutos, assistimos aos dois, sentados imóveis um ao lado do outro, dando adeus ao A.B.C. idhecal[6].

Essa desenvoltura irrita, mas quantas riquezas surgem dali! É errado dizer que Fuller é inspirado, uma vez que isto pressuporia a possibilidade de que Fuller não fosse inspirado, quando na realidade filma ativamente. Instintivo, cineasta-nato, filmar é fácil para ele; basta-lhe permanecer idêntico a si mesmo a cada instante - o que poderíamos dizer a propósito de um Ray menor como Quem Foi Jesse James?. Seus esboços são insólitos, e mais fortes e reveladores que uma sólida construção. Ele pode se permitir a mistura de estilos: há de tudo em Fuller, um mundo neste deserto vivo, com seus bosques de árvores esféricas, até o delírio de O’Meara, perdido na fumaça, destas traquinices plásticas à la Eisenstein à composição rigorosa e fordiana dos planos mais gerais do ataque ao forte. Descobriríamos também Fritz Lang em Casa de Bambu, na organização geométrica da cena do assalto ou naquela da partida de bilhar, ou ainda em Anjo do Mal (a morte de Moe). De quê importa! Por uma espécie de homogeneidade poética, tudo isto permanece sempre Fuller, com sua força do instantâneo e do inacabado.

Notas:

[1] Huma-DimancheHumanité-Dimanche, revista francesa de orientação comunista [n.d.t.].

[2] Anjo do Mal foi banido na França por sua representação dos Comunistas, e No Umbral da China, que se passa na Guerra Vietnamita, por sua representação dos franceses; Proibido (1958) ainda não tinha sido visto na França. Quando Anjo do Mal foi finalmente liberado na França, em 1961, foi numa versão dublada chamada Le port de la drogue (literalmente O Porto da Droga) na qual toda história referente ao roubo de segredos de Estado Americanos por Comunistas tinha sido transformada em uma trama sobre o tráfico de drogas - uma alteração cuja facilidade com que se realizou foi tomada para validar o ponto de vista de Moullet sobre a representação ‘abstrata’ do inimigo. Anjo do Mal foi criticado por Moullet em Cahiers du Cinéma nº 121, Julho de 1961, eProibido em Cahiers du Cinéma nº 108, Junho de 1960 [n.d.t.].

[3] Fabricio Del Dongo, personagem da obra-prima de Sthendal, A Cartuxa de Parma. Fabricio, jovem romântico, cheio de entusiasmo por Napoleão, vai por conta própria para Waterloo lutar como voluntário em seus regimentos. O episódio é narrado de forma irônica; Fabricio passa mais tempo esperando pela ação do que realmente participando nesta, e quando ele de fato luta pela sua vida é em meio à retirada Francesa [n.d.t.].

[4] Joseph MacDonald. 1906-1968. Fotógrafo que trabalhou com Fuller em Anjo do Mal, 1953, e em cores emTormenta Sob os Mares, 1954, e Casa de Bambu, 1955; MacDonald também era bem conhecido por Moullet e pelo restante dos Cahiers por seu trabalho com Nicholas Ray em Delírio de Loucura, 1956, e Quem Foi Jesse James?, 1957 [n.d.t.].

[5] A companhia produtora de Fuller chamava-se Globe Entreprises, e produziu Renegando o Meu Sangue eProibido para a RKO; No Umbral da China e Dragões da Violência para a Fox; O Quimono Escarlate A Lei dos Marginais para a Columbia.

[6] Regras ditadas pelo Instituto de Altos Estudos Cinematográficos, comumente designado IDHEC [n.d.t.].

(Cahiers du Cinéma nº 93, março 1959, pp. 11-19. Republicado na compilação Cahiers du Cinéma: The 1950s - Neo-Realism, Hollywood, New Wave, editada por Jim Hillier, B.F.I., 1985, pp. 145-155. Traduzido por Luiz Soares Júnior)

Texto na íntegra:
http://www.focorevistadecinema.com.br/FOCO1/moullet-marlowe.htm