quinta-feira, 9 de julho de 2015

Elogio de um cinema feérico


No meio de um desfile de modas, uma das modelos precisa deixar o atelier para ir visitar seu companheiro, que telefona avisando que está mal da saúde. Estamos em Sei Donne per l'Assassino / Blood And Black Lace de Mario Bava. O espectador tem um privilégio de informação em relação à pobre moça: ele sabe que por ela espera um assassino que deseja realizar uma morte do tipo queima-de-arquivo (é como os assassinatos se seguem no filme). Quando a moça entra no estúdio e as luzes se apagam, assistimos ao provavelmente mais delirante e aberrante espetáculo de sombras e cores que a história do cinema tem a oferecer num filme com personagens, histórias e veiculação comercial. Com toda a tradição que surge dos primeiros filmes de Mario Bava, estamos diante de uma escola – que, se pensarmos como escola, é nos últimos quarenta anos a única do mundo – que deseja transformar um gênero cinematográfico reputado como menor (ao contrário do noir e do melodrama, o horror é ainda hoje alvo dos narizes em pé dos cinéfilos mais esnobes – e, adicionemos, cegos) num campo de pesquisa plástica que é definitivamente experimental.
Observemos bem Sei Donne per l'Assassino: não é como no cinema americano um registro para causar medo através da história nem como as produções britânicas da Hammer, que cativavam seus espectadores pela criação de climas soturnos e de uma elegância incomparável. A trama tecida pelo filme (e pela maioria das obras de Bava e de Argento, seu sucessor) não se encaminha para nenhum desses dois lados canônicos do cinema de terror, mas em direção a algo que só alguns dos grandes mestres conseguiram na história do cinema: para o prazer do olho, que é conseguido através da mestria da direção (enquadramento/luz/decupagem) e transforma um simples filme de ficção em pesquisa conceitual. Pertencem a esse hall infame cineastas como Alfred Hitchcock, Fritz Lang, Brian de Palma, Stanley Kubrick... A câmera desenha por si própria um filme mais interessante que o filme que se vê acompanhando a história e seguindo as motivações dos personagens.
No filme de Bava, não sabemos profundamente das motivações da moça que procura seu colega no estúdio, e tampouco nos questionamos por que os aposentos da casa são de tal forma excessivos. A quebra da verossimilhança é abissal, mas eis que estamos nós maravilhados e pedindo mais da inacreditável luz pisca-pisca que ilumina com tons de azul e rosa (!) os elementos de cenário da seqüência do filme, numa das cenas mais anti-naturalistas já filmadas dentro do esquema longa-metragem-industrial-de-ficção. Podemos igualmente falar de toda a seqüência inicial de Suspiria, que compreende uma chuva no aeroporto, uma perseguição à noite na floresta e um inigualável baile sangrento de montagem e cores que se termina com um objeto plástico tão disparatado quanto um ready-made de Duchamp: um rosto fendido ao meio por um vitral (David Lynch fará semelhante – homenagem? – em A Estrada Perdida). Pouco importa o porquê de a menina estar lá ou ser perseguida: o que importa é o resultado atingido, e atingido por meio dos meios de expressão do cinema, ou seja, a visualidade.
Disso deriva, talvez, a maior crítica que é feita a esses filmes: eles jamais se tornariam clássicos porque, apesar de um ou dois momentos geniais, essas obras não trariam histórias cativantes que prendessem o espectador, fazendo com que os filmes fiquem inócuos ou masturbatórios. Nessa crítica, que de fato se esquiva de entender a essência desse cinema, apenas um elemento a ser levado em consideração: o aprofundamente e a inteligibilidade das histórias. Pois é toda a natureza do giallo, subgênero preferido entre os diretores do horror italiano: um estilo de narrar uma intrincada história que entretanto dá muito mais atenção aos fluxos e aos rituais de assassinato do que às explicações psicológicas e à pretensa profundidade da alma humana (onde o maior exemplo seria o evidentemente superestimado O Silêncio dos Inocentes). Ao contrário, toda a graça do giallo reside na maneira como a lógica e a psicologia são relegadas ao mínimo necessário para em compensação o filme ganhar em clima, situações de terror e força de composição, de potência visual. Obviamente, a crítica mais comum ao terror italiano já está toda imbuída de uma visão preconcebida do cinema, e do cinema de terror americano dos anos 80 em particular (logo esse, que bebeu, diluiu e idiotizou – em parte – o cinema fantástico da Itália): verossimilhança, psicologismo funcional (o espectador tem que acreditar nos motivos dos assassino e das sensações das vítimas), fixação na fluidez narrativa e pouca atenção à plasticidade da imagem (pensemos na série Sexta-Feira 13 ou nas continuações de Halloween).
Das escandalosas e estetizantes iluminações de Mario Bava ao gore sofisticado e inventivo de Lucio Fulci passando pela exacerbação do giallo e pela loucura visual de Dario Argento, o cinema fantástico italiano recupera e mantém-se como o único gênero no mundo ainda a considerar o cinema como um suntuoso exercício de estilo destinado a, puramente pelos olhos e pelos ouvidos, espantar e maravilhar o espectador independente da história que se conta. Prazer especificamente cinematográfico (os outros terrores podem muito bem ser contados em livro) outrora disseminado na produção mundial – filme noir, realismo poético francês – e hoje cada vez menor em prol de um cinema de gênero puramente digestivo, ancorado nas vendas para a televisão e no todo-poderoso roteiro, geralmente sem qualquer invenção ou preocupação visual (pensemos nos três mais fortes gêneros de hoje, a comédia romântica, o terror e a comédia adolescente). Com o fim cada vez mais próximo da indústria do terror italiano – Argento é o único a filmar o gênero regularmente e aparentemente só há um continuador, Michelle Soavi –, morre também a última escola de cineastas que se educaram pela visualidade e pela criatividade na iamgem (a penúltima foi o celeiro de Corman: Dante, De Palma, Scorsese, Coppola...) e crescem cineastas que só se interessam pelo gênero enquanto algo camp, "trash" se se quiser. O cinema de terror foge do gênero "fantástico" para entrar nas raias de um cinema de suspense dependente demais dos roteiros. Enquanto isso, o poder de evocação que provém da tela no cinema fantástico hoje ainda pode ser encontrado em alguns diretores, como Carpenter ou Burton ou Amenábar, mas parece em vias de extinção.
"Cinema fantástico" na França tem um sinônimo: "féerique". Assim é tratado desde Méliès, o primeiro homem que realizou truques especialmente para a câmera. Feérico quer dizer relativo às fadas, aos contos de fadas. Logo, um mergulho nas teias de imaginação dos relatos de encantamento da infância, na liberdade de sonhar com palácios, inimigos monstruosos, heróis firmes e mocinhas lindas, mas antes de tudo um poder de imantação que nos transporta para um mundo outro, levemente diferente desse, mas onde ainda é possível sonhar com figuras improváveis, leis físicas diferentes, desaparições súbitas... Se há algo que unifique o cinema de, digamos, Georges Méliès, Jean Cocteau, de um lado, e Bava, Argento e Fulci, de outro, é a capacidade de fazer maravilhar através de um universo não pela verossimilhança e pela psicologia, mas sim pelo poder que as imagens trazem dentro de si. Não de fazer um cinema da diversão, mas de fazer com diversão um cinema do jogo. Uma confiança absoluta na força do cinema, a escola de terror italiano deveria muito honrosamente carregar solitária hoje esse brasão de uma criatividade radical, beirando o infantil (e garantindo um prazer respectivo, o de uma criança com seu brinquedo preferido), que acredita antes de tudo na pregnância e na capacidade de evocação da imagem. Qual brasão? O de digna representante do cinema feérico.

Ruy Gardnier

O medo e o estupor

A retrospectiva dedicada a Mario Bava (1914-1980) pela Cinemateca Francesa, também co-editora de uma preciosa coletânea de textos sobre o mestre italiano, permite hoje uma análise mais confiável. Como seus filmes saíam em Paris sempre nas mesmas salas, todas associadas ao filme de terror – Atlas e Midi Minuit incluídas –se poderia pensar que Bava, durante os vinte anos de sua carreira de diretor (1960-1980), tivesse sempre realizado o mesmo filme, à exceção de alguns westerns ruinzinhos, e que ele era homem de um só gênero...assim como Matarazzo, Leone ou Jacopetti, que realmente só se sentiam à vontade no melodrama, no western ou no documentário-espetáculo.
Na verdade, colar uma só etiqueta na obra de Bava se revela coisa difícil, a marca do Fantástico não se encaixando nem na Menina que Sabia Demais, nem em Banho de Sangue, que se situa na realidade contemporânea, sem pegar emprestado nem ao passado, nem ao futuro, nem ao sobrenatural. A marca do Terror, da qual fazem parte, de certa forma, esses dois filmes, só podendo ser atribuída aPerigo: Diabolik, reconstituição muito divertida de uma história em quadrinhos de sucesso, e nem mesmo – por causa de seu título – à Terrore nelle spazzio, inteiramente marcado pela frieza e especulações futuristas.
Dois gêneros, portanto, são utilizados alternativamente, o fantástico e o terror.
Mas estará o medo, que faz figura de marca de fábrica (vejam esses títulos : I tre volti della paura, Operazzione paura ["as três faces do medo", "operação medo", traduzidos no Brasil como As Três Máscaras do Terror e Mata, Bebê, Mata, n.d.e.]), realmente no encontro? As ações se revelam inverossímeis demais. Personagens e atores são freqüentemente inexistentes1. Pode-se temer, então, pela vida de personagens inconsistentes, que deixam a identificação impossível, e que não se podem distinguir uns dos outros. Em O Planeta dos Vampiros, raramente se vêem os rostos e os corpos dos atores, dissimulados atrás de suas roupas de astronautas. O medo, se ele existe, aparece unicamente durante aqueles poucos segundos que passam entre a primeira visão da arma do crime – de preferência gilete ou canivete – e a visão realmente gore do corpo odiosamente mutilado. Dois filmes, no entanto, procuram uma angústia quase contínua: A Menina que Sabia Demais, por causa da protagonista perseguida permanentemente, situada no quadro realista, à qual não podemos nos identificar, e, principalmente, por causa da impossibilidade de não sabermos nem de onde, nem como, nem por que pode surgir o perigo. E também Banho de Sangue, pois a acumulação estupefaciente dos quinze assassinatos repartidos em todo o filme cria, além do medo pontual que mencionei (causado mais pela particularidade visual atroz da morte que pela morte em si, que sabemos inevitável, já que o hábito ajuda), uma impressão de mal-estar e de enjôo contínuos.
Pode parecer surpreendente que o humor seja consubstancial ao medo. Em Banho de Sangue, onde se ri a cada clímax sangrento, com mais intensidade ainda quando o crime é atroz. Tem nesse riso ao menos quatro razões:
1. Reação frente à inverossimilhança das situações.
2. Expressão de uma necessidade de recuo, de distanciamento em relação à acumulação macabra.
3. Presença de um humor que escorre do comportamento dos personagens: depois de ter visto o homem agonizante se arrastar longos minutos sobre o chão, a mulher o interroga: "Mas tu estás ferido?". Ou ainda, intrusão cômica de uma figura codificada estranha ao gênero do terror, a menina que vê emergir da baía o corpo de seu pai, com polpa no rosto: "Mas é meu pai..."
4. Apreciação admirativa de invenção refinada na escolha de armas mortíferas, a cada assassinato diferente uma das outras.
Banho de Sangue aparece, aliás, como a obra-prima de Bava. Ele impõe ao espectador uma dinâmica irremediável fundada no assassinato, e que releva o cinema mais puro, na medida que não deve nada, nem ao roteiro, nem as ações – nada compreensíveis, por sinal – nem ao sentido, nem aos personagens, nem aos atores. Um cinema, uma lógica que funciona unicamente por ela mesma, sem bengalas, da qual não se encontra equivalente na arte fílmica, e que mergulha o público no estupor admirativo.
O mesmo estupor é acentuado pela utilização do travelling ótico. Se fosse preciso encontrar um denominador comum ao cinema italiano posterior ao neo-realismo, seria a reflexão em cima do zoom, fundamental em cineastas tão diferentes quanto Rossellini (do qual Bava foi diretor de fotografia), Cottafavi e Bava. Com Rossellini, otravelling ótico constitui um apêndice ao movimento lateral da dolly, criador de vida, de respiração interna, de fluidez, de peso existencial, o oposto total da utilização essencialmente dramática que descobrimos nos outros dois mestres peninsulares. Curiosamente, Bava retoma freqüentemente a figura-mãe do zoomcottafaviano, o brusco movimento antes seguido illico de um movimento traseiro não menos rápido. Mas, enquanto que com Cottofavi, como por exemplo em Uma Donna Libera 2, o efeito é muito raro – o cineasta se permite de usá-lo não mais do que duas ou três vezes por filme – criando um clima excepcional chocante pela sua raridade e pela sua natureza contraditória, Bava, por sua vez, se serve dele até o abuso. O zoom é sua imagem de marca mais do que a escolha de um gênero.
Aqui, o zoom se revela criador, não de vida, mas de medo. Essa equivalência torna-se tão institucional que, logo que entra um zoom, ou um duplo zoom, ficamos com medo, mesmo que o objeto filmado não tenha nada de aterrorizante. É o procedimento técnico que, por ele mesmo, suscita medo, como um reflexo pavloviano...E Bava se diverte em nos enganar, em nos orientar com pistas falsas.
Eu detesto filmes que se apóiam no travelling ótico. Eu gosto quando tem um ou dois por filme, ainda assim justificados e eficazes. Porém, quanto mais eu avanço na carreira de Bava, mais os encontro, e mais percebo que funcionam. Eu não contei, mas deve ter mais de cem no estupefaciente Lisa e o Diabo, infinitamente mais apaixonante que as faixas da metade da década de sessenta, que tinham duas ou três vezes menos. É o meio-termo, a justa (a injusta) medida que não funciona. Chegamos a um delírio, a uma orgia, uma vertigem gratuita (lembrando o admirável O Arquivo Confidencial de Sidney Furie) que nos levam, ligados a todo um arsenal de artifícios formais que visam a confundir o verdadeiro com o falso, o ator e a boneca, o sonho e a realidade. Uma reavaliação do cinema 3, e ao mesmo tempo a sua afirmação lírica pela importância do movimento que anima o filme.
Mas tudo isso se encontra hoje ameaçado pelo tempo: raramente projetados, mostrados por difusores quebrados ou pouco exigentes, as cópias dos Bavas são reduzidas a uma dominante rosa ou liga de vinho em todos pontos contrárias ao negativo original. O enorme trabalho de Bava, que conseguia fazer esquecer a falta de recursos, se encontra hoje destruído pelo apodrecimento da cor, que deixa o resultado envelhecido, brega, pobre. Os italianos dedicam toda sua atividade em favor da preservação de obras acadêmicas que não interessam a ninguém, como as de Genina, Camerini, Gallone ou Bolognoni, que não tiveram a ocasião de trabalhar a cor ou nem tentaram. Enquanto que, no sentido de conservação e preservação, não existe no mundo tarefa mais urgente que a consideração pela obra de Bava, onde a cor é essencial, e que periga desaparecer insidiosamente da memória.

Luc Moullet
(publicado originalmente nos Cahiers du Cinéma a propósito de uma retrospectiva Mario Bava na Cinemateca Francesa, mencionada no início do texto)
tradução de Bolívar Torres

1. Eu suspeito que Bava procurava os maus roteiros e os atores impossíveis, como se ele quisesse se proteger do fracasso: o que eu poderia fazer com uma matéria-prima tão chinfrim? O desprezo pelo ator (e do personagem) corresponde a uma atitude assaz freqüente nos diretores de fotografia – função que Bava exerceu durante quarenta anos – para quem o intérprete não tem muito o que fazer, se tornando até um rival em matéria de interesse concedido pelo diretor à seus colaboradores. Esse desprezo deságua numa metafísica do diretor de fotografia, rebaixando o homem ao seu nível mais insignificante. 

2. Em 1954, talvez não fosse zoom, mas que parece, parece.
3. Em Il rosso segno della follia, Bava insere uma manchete de jornal francês carregada de erros de ortografia, e um plano de Paris ridículo, como se estivesse troçando de um produtor que lhe teria imposto referências francesas que o desagradasse. 

Textos retirados do dossiê de terror italiano da Revista Contracampo: http://www.contracampo.com.br/41/frames.htm

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