No
meio de um desfile de modas, uma das modelos precisa deixar o atelier para ir
visitar seu companheiro, que telefona avisando que está mal da saúde. Estamos
em Sei Donne per l'Assassino / Blood
And Black Lace de Mario Bava.
O espectador tem um privilégio de informação em relação à pobre moça: ele sabe
que por ela espera um assassino que deseja realizar uma morte do tipo
queima-de-arquivo (é como os assassinatos se seguem no filme). Quando a moça
entra no estúdio e as luzes se apagam, assistimos ao provavelmente mais
delirante e aberrante espetáculo de sombras e cores que a história do cinema
tem a oferecer num filme com personagens, histórias e veiculação comercial. Com
toda a tradição que surge dos primeiros filmes de Mario Bava, estamos diante de
uma escola – que, se pensarmos como escola, é nos últimos quarenta anos a única
do mundo – que deseja transformar um gênero cinematográfico reputado como menor
(ao contrário do noir e do melodrama, o horror é ainda hoje alvo dos narizes em
pé dos cinéfilos mais esnobes – e, adicionemos, cegos) num campo de pesquisa
plástica que é definitivamente experimental.
Observemos
bem Sei Donne per l'Assassino:
não é como no cinema americano um registro para causar medo através da história
nem como as produções britânicas da Hammer, que cativavam seus espectadores
pela criação de climas soturnos e de uma elegância incomparável. A trama tecida
pelo filme (e pela maioria das obras de Bava e de Argento, seu sucessor) não se
encaminha para nenhum desses dois lados canônicos do cinema de terror, mas em
direção a algo que só alguns dos grandes mestres conseguiram na história do
cinema: para o prazer do olho, que é conseguido através da mestria da direção
(enquadramento/luz/decupagem) e transforma um simples filme de ficção em
pesquisa conceitual. Pertencem a esse hall infame cineastas como Alfred
Hitchcock, Fritz Lang, Brian de Palma, Stanley Kubrick... A câmera desenha por
si própria um filme mais interessante que o filme que se vê acompanhando a história
e seguindo as motivações dos personagens.
No
filme de Bava, não sabemos profundamente das motivações da moça que procura seu
colega no estúdio, e tampouco nos questionamos por que os aposentos da casa são
de tal forma excessivos. A quebra da verossimilhança é abissal, mas eis que
estamos nós maravilhados e pedindo mais da inacreditável luz pisca-pisca que
ilumina com tons de azul e rosa (!) os elementos de cenário da seqüência do
filme, numa das cenas mais anti-naturalistas já filmadas dentro do esquema
longa-metragem-industrial-de-ficção. Podemos igualmente falar de toda a
seqüência inicial de Suspiria,
que compreende uma chuva no aeroporto, uma perseguição à noite na floresta e um
inigualável baile sangrento de montagem e cores que se termina com um objeto
plástico tão disparatado quanto um ready-made de Duchamp: um rosto fendido ao
meio por um vitral (David Lynch fará semelhante – homenagem? – em A Estrada Perdida). Pouco
importa o porquê de a menina estar lá ou ser perseguida: o que importa é o
resultado atingido, e atingido por meio dos meios de expressão do cinema, ou
seja, a visualidade.
Disso
deriva, talvez, a maior crítica que é feita a esses filmes: eles jamais se
tornariam clássicos porque, apesar de um ou dois momentos geniais, essas obras
não trariam histórias cativantes que prendessem o espectador, fazendo com que
os filmes fiquem inócuos ou masturbatórios. Nessa crítica, que de fato se
esquiva de entender a essência desse cinema, apenas um elemento a ser levado em
consideração: o aprofundamente e a inteligibilidade das histórias. Pois é toda
a natureza do giallo,
subgênero preferido entre os diretores do horror italiano: um estilo de narrar
uma intrincada história que entretanto dá muito mais atenção aos fluxos e aos
rituais de assassinato do que às explicações psicológicas e à pretensa
profundidade da alma humana (onde o maior exemplo seria o evidentemente
superestimado O Silêncio dos
Inocentes). Ao contrário, toda a graça do giallo reside na maneira como a
lógica e a psicologia são relegadas ao mínimo necessário para em compensação o
filme ganhar em clima, situações de terror e força de composição, de potência
visual. Obviamente, a crítica mais comum ao terror italiano já está toda
imbuída de uma visão preconcebida do cinema, e do cinema de terror americano
dos anos 80 em particular (logo esse, que bebeu, diluiu e idiotizou – em parte
– o cinema fantástico da Itália): verossimilhança, psicologismo funcional (o
espectador tem que acreditar nos motivos dos assassino e das sensações das
vítimas), fixação na fluidez narrativa e pouca atenção à plasticidade da imagem
(pensemos na série Sexta-Feira
13 ou nas continuações de Halloween).
Das
escandalosas e estetizantes iluminações de Mario Bava ao gore sofisticado e
inventivo de Lucio Fulci passando pela exacerbação do giallo e pela loucura
visual de Dario Argento, o cinema fantástico italiano recupera e mantém-se como
o único gênero no mundo ainda a considerar o cinema como um suntuoso exercício
de estilo destinado a, puramente pelos olhos e pelos ouvidos, espantar e
maravilhar o espectador independente da história que se conta. Prazer
especificamente cinematográfico (os outros terrores podem muito bem ser
contados em livro) outrora disseminado na produção mundial – filme noir,
realismo poético francês – e hoje cada vez menor em prol de um cinema de gênero
puramente digestivo, ancorado nas vendas para a televisão e no todo-poderoso
roteiro, geralmente sem qualquer invenção ou preocupação visual (pensemos nos
três mais fortes gêneros de hoje, a comédia romântica, o terror e a comédia
adolescente). Com o fim cada vez mais próximo da indústria do terror italiano –
Argento é o único a filmar o gênero regularmente e aparentemente só há um
continuador, Michelle Soavi –, morre também a última escola de cineastas que se
educaram pela visualidade e pela criatividade na iamgem (a penúltima foi o
celeiro de Corman: Dante, De Palma, Scorsese, Coppola...) e crescem cineastas
que só se interessam pelo gênero enquanto algo camp, "trash" se se
quiser. O cinema de terror foge do gênero "fantástico" para entrar
nas raias de um cinema de suspense dependente demais dos roteiros. Enquanto
isso, o poder de evocação que provém da tela no cinema fantástico hoje ainda
pode ser encontrado em alguns diretores, como Carpenter ou Burton ou Amenábar,
mas parece em vias de extinção.
"Cinema
fantástico" na França tem um sinônimo: "féerique". Assim é
tratado desde Méliès, o primeiro homem que realizou truques especialmente para
a câmera. Feérico quer dizer relativo às fadas, aos contos de fadas. Logo, um
mergulho nas teias de imaginação dos relatos de encantamento da infância, na
liberdade de sonhar com palácios, inimigos monstruosos, heróis firmes e
mocinhas lindas, mas antes de tudo um poder de imantação que nos transporta
para um mundo outro, levemente diferente desse, mas onde ainda é possível
sonhar com figuras improváveis, leis físicas diferentes, desaparições
súbitas... Se há algo que unifique o cinema de, digamos, Georges Méliès, Jean
Cocteau, de um lado, e Bava, Argento e Fulci, de outro, é a capacidade de fazer
maravilhar através de um universo não pela verossimilhança e pela psicologia,
mas sim pelo poder que as imagens trazem dentro de si. Não de fazer um cinema da diversão,
mas de fazer com diversão um cinema do jogo. Uma
confiança absoluta na força do cinema, a escola de terror italiano deveria
muito honrosamente carregar solitária hoje esse brasão de uma criatividade
radical, beirando o infantil (e garantindo um prazer respectivo, o de uma
criança com seu brinquedo preferido), que acredita antes de tudo na pregnância
e na capacidade de evocação da imagem. Qual brasão? O de digna representante do
cinema feérico.
O medo
e o estupor
A
retrospectiva dedicada a Mario Bava (1914-1980) pela Cinemateca Francesa,
também co-editora de uma preciosa coletânea de textos sobre o mestre italiano,
permite hoje uma análise mais confiável. Como seus filmes saíam em Paris sempre
nas mesmas salas, todas associadas ao filme de terror – Atlas e Midi Minuit
incluídas –se poderia pensar que Bava, durante os vinte anos de sua carreira de
diretor (1960-1980), tivesse sempre realizado o mesmo filme, à exceção de
alguns westerns ruinzinhos, e que ele era homem de um só gênero...assim como
Matarazzo, Leone ou Jacopetti, que realmente só se sentiam à vontade no
melodrama, no western ou no documentário-espetáculo.
Na
verdade, colar uma só etiqueta na obra de Bava se revela coisa difícil, a marca
do Fantástico não se encaixando nem na Menina que Sabia Demais, nem em Banho de Sangue, que se situa
na realidade contemporânea, sem pegar emprestado nem ao passado, nem ao futuro,
nem ao sobrenatural. A marca do Terror, da qual fazem parte, de certa forma,
esses dois filmes, só podendo ser atribuída aPerigo: Diabolik,
reconstituição muito divertida de uma história em quadrinhos de sucesso, e nem
mesmo – por causa de seu título – à Terrore nelle spazzio, inteiramente marcado
pela frieza e especulações futuristas.
Dois
gêneros, portanto, são utilizados alternativamente, o fantástico e o terror.
Mas
estará o medo, que faz figura de marca de fábrica (vejam esses títulos : I tre volti della paura, Operazzione paura ["as três faces do medo",
"operação medo", traduzidos no Brasil como As Três Máscaras do Terror e Mata,
Bebê, Mata, n.d.e.]), realmente no encontro? As ações se revelam
inverossímeis demais. Personagens e atores são freqüentemente inexistentes1. Pode-se temer,
então, pela vida de personagens inconsistentes, que deixam a identificação
impossível, e que não se podem distinguir uns dos outros. Em O Planeta dos Vampiros,
raramente se vêem os rostos e os corpos dos atores, dissimulados atrás de suas
roupas de astronautas. O medo, se ele existe, aparece unicamente durante
aqueles poucos segundos que passam entre a primeira visão da arma do crime – de
preferência gilete ou canivete – e a visão realmente gore do corpo odiosamente mutilado. Dois
filmes, no entanto, procuram uma angústia quase contínua: A Menina que Sabia
Demais, por causa da protagonista perseguida permanentemente, situada no quadro
realista, à qual não podemos nos identificar, e, principalmente, por causa da
impossibilidade de não sabermos nem de onde, nem como, nem por que pode surgir
o perigo. E também Banho de
Sangue, pois a acumulação estupefaciente dos quinze assassinatos repartidos
em todo o filme cria, além do medo pontual que mencionei (causado mais pela
particularidade visual atroz da morte que pela morte em si, que sabemos
inevitável, já que o hábito ajuda), uma impressão de mal-estar e de enjôo
contínuos.
Pode
parecer surpreendente que o humor seja consubstancial ao medo. Em Banho de Sangue, onde se ri a
cada clímax sangrento, com mais intensidade ainda quando o crime é atroz. Tem
nesse riso ao menos quatro razões:
1.
Reação frente à inverossimilhança das situações.
2. Expressão de uma necessidade de recuo, de distanciamento em relação à acumulação macabra.
3. Presença de um humor que escorre do comportamento dos personagens: depois de ter visto o homem agonizante se arrastar longos minutos sobre o chão, a mulher o interroga: "Mas tu estás ferido?". Ou ainda, intrusão cômica de uma figura codificada estranha ao gênero do terror, a menina que vê emergir da baía o corpo de seu pai, com polpa no rosto: "Mas é meu pai..."
4. Apreciação admirativa de invenção refinada na escolha de armas mortíferas, a cada assassinato diferente uma das outras.
2. Expressão de uma necessidade de recuo, de distanciamento em relação à acumulação macabra.
3. Presença de um humor que escorre do comportamento dos personagens: depois de ter visto o homem agonizante se arrastar longos minutos sobre o chão, a mulher o interroga: "Mas tu estás ferido?". Ou ainda, intrusão cômica de uma figura codificada estranha ao gênero do terror, a menina que vê emergir da baía o corpo de seu pai, com polpa no rosto: "Mas é meu pai..."
4. Apreciação admirativa de invenção refinada na escolha de armas mortíferas, a cada assassinato diferente uma das outras.
Banho
de Sangue aparece, aliás, como
a obra-prima de Bava. Ele impõe ao espectador uma dinâmica irremediável fundada
no assassinato, e que releva o cinema mais puro, na medida que não deve nada,
nem ao roteiro, nem as ações – nada compreensíveis, por sinal – nem ao sentido,
nem aos personagens, nem aos atores. Um cinema, uma lógica que funciona
unicamente por ela mesma, sem bengalas, da qual não se encontra equivalente na
arte fílmica, e que mergulha o público no estupor admirativo.
O
mesmo estupor é acentuado pela utilização do travelling ótico. Se fosse preciso encontrar um
denominador comum ao cinema italiano posterior ao neo-realismo, seria a
reflexão em cima do zoom,
fundamental em cineastas tão diferentes quanto Rossellini (do qual Bava foi
diretor de fotografia), Cottafavi e Bava. Com Rossellini, otravelling ótico constitui um apêndice ao
movimento lateral da dolly,
criador de vida, de respiração interna, de fluidez, de peso existencial, o
oposto total da utilização essencialmente dramática que descobrimos nos outros
dois mestres peninsulares. Curiosamente, Bava retoma freqüentemente a
figura-mãe do zoomcottafaviano,
o brusco movimento antes seguido illico de um movimento traseiro não menos
rápido. Mas, enquanto que com Cottofavi, como por exemplo em Uma Donna Libera 2, o efeito é muito
raro – o cineasta se permite de usá-lo não mais do que duas ou três vezes por
filme – criando um clima excepcional chocante pela sua raridade e pela sua
natureza contraditória, Bava, por sua vez, se serve dele até o abuso. O zoom é sua imagem de marca mais do que
a escolha de um gênero.
Aqui,
o zoom se revela criador, não de vida,
mas de medo. Essa equivalência torna-se tão institucional que, logo que entra
um zoom, ou um duplo zoom, ficamos com medo, mesmo
que o objeto filmado não tenha nada de aterrorizante. É o procedimento técnico
que, por ele mesmo, suscita medo, como um reflexo pavloviano...E Bava se
diverte em nos enganar, em nos orientar com pistas falsas.
Eu
detesto filmes que se apóiam no travelling ótico. Eu gosto quando tem um ou
dois por filme, ainda assim justificados e eficazes. Porém, quanto mais eu
avanço na carreira de Bava, mais os encontro, e mais percebo que funcionam. Eu
não contei, mas deve ter mais de cem no estupefaciente Lisa e o Diabo, infinitamente
mais apaixonante que as faixas da metade da década de sessenta, que tinham duas
ou três vezes menos. É o meio-termo, a justa (a injusta) medida que não
funciona. Chegamos a um delírio, a uma orgia, uma vertigem gratuita (lembrando
o admirável O Arquivo
Confidencial de Sidney Furie)
que nos levam, ligados a todo um arsenal de artifícios formais que visam a
confundir o verdadeiro com o falso, o ator e a boneca, o sonho e a realidade.
Uma reavaliação do cinema 3, e ao mesmo tempo a
sua afirmação lírica pela importância do movimento que anima o filme.
Mas
tudo isso se encontra hoje ameaçado pelo tempo: raramente projetados, mostrados
por difusores quebrados ou pouco exigentes, as cópias dos Bavas são reduzidas a
uma dominante rosa ou liga de vinho em todos pontos contrárias ao negativo
original. O enorme trabalho de Bava, que conseguia fazer esquecer a falta de
recursos, se encontra hoje destruído pelo apodrecimento da cor, que deixa o
resultado envelhecido, brega, pobre. Os italianos dedicam toda sua atividade em
favor da preservação de obras acadêmicas que não interessam a ninguém, como as
de Genina, Camerini, Gallone ou Bolognoni, que não tiveram a ocasião de
trabalhar a cor ou nem tentaram. Enquanto que, no sentido de conservação e
preservação, não existe no mundo tarefa mais urgente que a consideração pela
obra de Bava, onde a cor é essencial, e que periga desaparecer insidiosamente
da memória.
Luc
Moullet
(publicado originalmente nos Cahiers du Cinéma a propósito de uma retrospectiva Mario Bava na Cinemateca Francesa, mencionada no início do texto)
tradução de Bolívar Torres
(publicado originalmente nos Cahiers du Cinéma a propósito de uma retrospectiva Mario Bava na Cinemateca Francesa, mencionada no início do texto)
tradução de Bolívar Torres
1. Eu suspeito que Bava procurava os
maus roteiros e os atores impossíveis, como se ele quisesse se proteger do
fracasso: o que eu poderia fazer com uma matéria-prima tão chinfrim? O desprezo
pelo ator (e do personagem) corresponde a uma atitude assaz freqüente nos
diretores de fotografia – função que Bava exerceu durante quarenta anos – para
quem o intérprete não tem muito o que fazer, se tornando até um rival em
matéria de interesse concedido pelo diretor à seus colaboradores. Esse desprezo
deságua numa metafísica do diretor de fotografia, rebaixando o homem ao seu
nível mais insignificante.
2. Em 1954, talvez não fosse zoom, mas que parece, parece.
3. Em Il rosso segno della follia,
Bava insere uma manchete de jornal francês carregada de erros de ortografia, e
um plano de Paris ridículo, como se estivesse troçando de um produtor que lhe
teria imposto referências francesas que o desagradasse. 2. Em 1954, talvez não fosse zoom, mas que parece, parece.
Textos retirados do dossiê de terror italiano da Revista Contracampo: http://www.contracampo.com.br/41/frames.htm
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