O cinema se rejuvenesce quando Alejandro Jodorowski está por
perto. Com sua presença, o tempo, que é a matéria a ser esculpida, reencontra o
original e o inusitado; a surpresa e a vibração. Depois de 23 anos de ausência
– quase uma orfandade desde O
Ladrão do Arco-Íris(1990) – o retorno do diretor às telas não
poderia ter sido mais empolgante do que o encontrado em A Dança da Realidade.
Filmado na litorânea Tocopilla, Chile, cidade natal
de Jodorowski, o enredo do filme reconstrói a sua infância. Filho de imigrantes
judeus ucranianos e resultado indesejado do abuso da mãe pelo pai, o que se vê
nos primeiros anos de vida é a marca deixada pelo crescimento em meio à família
desestruturada, ao abuso de poder – tanto das relações pessoais quanto do
momento político – e ao preconceito pela condição de estrangeiro. Entretanto, o
farto material biográfico não se transforma em uma cinebiografia tradicional.
Nada em Jodorowski é tradicional. O que se tem aqui é o alcance dos melhores
momentos da sua produção nos anos 70, tanto em Fando y Lis (1968) quanto em El
Topo (1970) e A Montanha Sagrada (1973).
A Dança da Realidade é o trajeto do rompimento das
ilusões. A Casa Ukrania é uma mercearia na pequena cidade de Tocopilla. Sem
luxos, o emprego sustenta com qualidade a família Jodorowski, que desde a fuga
da Rússia, quando perseguida pelos cossacos, prefere esconder suas origens. A
figura do pequeno Jodorowski (interpretado com segurança pelo iniciante
Jeremias Herskovits) cresce entre o desejo da mãe, de que o filho seja a
reencarnação da alma iluminada do avô, e o desejo do pai, de que se torne
umhomem viril, digno de impor respeito aos demais. Os anseios conflitantes
moldam o jovem Alejandro, exposto frente à cruzada das ilusões, espaço da
pureza infantil, contra a realidade, símbolo do mundo adulto.
Para construir a cinebiografia, o diretor não abre
mão da estética surrealista. Jodorowski comparte a visão de mundo do movimento
de André Breton, que teve seus expoentes cinematográficos com O Cão Andaluz
(1929) e A Idade do Ouro (1930), ambos de Luis Buñuel. Talvez o único diretor
vivo ainda a pensar e produzir nesse registro, Jodorowski reconstrói sua
trajetória com o demarcado das cores primárias, com a trilha sonora intrusiva e
a mise-en-scène propositadamente operística. Por vezes, o resultado nos remete
à obra do diretor italiano Federico Fellini. No início, quando somos
apresentados ao circo do qual Jaime (BrontisJodorowski), pai de Alejandro, fez
parte, temos a sensação de estar revendo 8 1/2 (1963) em cores. A impressão,
porém, se desfaz. O cinema de Jodorowski é mais ousado e agressivo. O limite
surrealista foi testado – nunca achado.
O ato inicial de A Dança da Realidade se preocupa
em mostrar as agruras do jovem Alejandro. O mundo duro e cru se revelará pela
experiência: a dor da rejeição materna; o sofrimento físico advindo da sofrível
moralidade paterna; o sentimento de culpa pela morte de outra criança; a
sensação atroz da injustiça; o rechaço do judaísmo pelas outras crianças. A
infância é posta, então, como um sistema de aprendizados forçados, em todos os
casos traumático e inevitável. Este primeiro momento chega ao fim com a clara
tese panteísta do diretor, enunciada, inclusive, pela intromissão do próprio:
nada nos é novo; somos o que nos acontece, e o que nos acontece é o que somos
anteriormente.
O segundo ato tira o foco de Alejandro e o coloca
sobre Jaime. O pai, misto de Stalin e Pinochet, abre mão da família para
aniquilar Ibañez, ditador do país. A transição entre o primeiro e o segundo
momentos não é a melhor possível. Paira o sentimento de que o personagem de
Alejandro foi esquecido pelo filme. Algo no mínimo injusto, depois de tudo que
o vimos passar. Contudo, o que está em marcha é a vontade do diretor de
adicionar uma densa camada de crítica política. A atitude, coerente com a
filmografia de Jodorowski, possibilita construir uma sintética história do
totalitarismo no século XX. Originado na Europa, o mal se espraia sem
conhecimento de fronteiras. A vida se desarticulada em todos os lugares, por
mais longe que se esteja.
A cena das gaivotas e das sardinhas sugere que
desconhecemos o profundo oscilar da existência. A compreensão do ritmo não nos
pertence. O sofrimento e a felicidade não são independentes, mas substâncias
necessárias para um equilíbrio. A vida de ninguém acontece unicamente na
superfície. A indicação caminha em direção ao desfecho. No terceiro ato,
Alejandro e Jaime se reencontrarão: “sou covarde”, brada o pai. A covardia que
procurou exorcizar no filho salta-lhe à boca. Não querer falhar é falhar por
antecipação. É falsificar a vida. A união agora é mais do que física. Pai e
filho assumem e se reconhecem enquanto feitos da mesma substância. O ciclo se
completa no encontro do que somos com o que seremos. Sem julgamentos, a justiça
é possível.
A infância está perdida. A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.* O perdão não provém com o tempo. O que resulta dos
anos é o esquecimento. O perdão surge da compreensão. O fruto do esquecimento é
árido e pegajoso; o da compreensão, puro e sagrado, como a hóstia – como a
infância recuperada.
*Consolo na praia, de Carlos Drummond de Andrade.
Texto de Willian Silveira, disponível em:
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