por Miguel Haoni
Introdução: O cinema
de Dante Alighieri[1]
O presente artigo pretende, através de um
recorte bem específico de três filmes, traçar um comentário sobre o universo
estético do cinema de horror fantástico concebido na Itália como uma das
culminâncias da tradição milenar do grotesco na arte.
Desde a antiguidade romana, através da poesia
de Petrônio e seu Satíricon, passando
pela Commediadell’arte e seu jogo de
inversão de valores, esta tradição chegou ao seu momento de maior maturidade
com a confecção da Comédia de Dante
Alighieri[2], ainda na Idade Média.
A Comédia
– posteriormente adjetivada como ‘Divina’ por Giovanni Boccaccio – é um
capítulo central na cultura visual, principalmente no que tange à representação
do Mal. Diversos artistas do mundo inteiro e em diversos momentos da História,
ao pretenderem representar as encarnações do Mal e seu horror, recorriam às
imagens da cântica do Inferno[3], direta[4] ou indiretamente. Incluída
aqui está a geração de cineastas italianos que a partir dos anos 60 do século
XX recorrerão a esta tradição para conceber suas imagens.
A autoridade intelectual, política e
artística de Dante relacionou-se sobremaneira ao seu contexto. Dante era um
homem medieval, e sua Comédia
resultou das mudanças nos paradigmas culturais, políticos e religiosos advindos
da primeira onda de histeria coletiva em torno do fim do mundo, na virada para
o ano Mil. A mudança de milênio e a expectativa do Apocalipse acarretou
implicações catastróficas para o imaginário cristão europeu. A cultura do medo,
base para a produção artística e ideológica do período, atinge seu paroxismo
neste ponto de grande crise.
Soma-se a isso o fato de o poeta, em seu
ímpeto pedagógico, ter ousado compor em língua vulgar num contexto em que a
escrita só era concebida em Latim. Ao optar pelo estrato menor na hierarquia
cultural, Dante se alçou à posição de pai da literatura italiana.
O berço de Dante, Florença – pela qual nutria
sentimentos de amor e ódio – era uma das maiores e mais economicamente
desenvolvidas cidades européias. Testemunha da falência do modelo aristocrático
e da ascensão prematura dos valores burgueses, a cidade com a qual Dante inicia
seu turbulento diálogo era moderna antes da letra.
Isso tudo condicionou Dante a escrever sob
uma visão escatológica da humanidade, num contexto de degenerescência e
decadentismo. É o momento que lhe municia a conceber as imagens de um trajeto
em direção às trevas.
Tais dados nos permitiriam criar paralelos
com o ambiente da produção cinematográfica italiana a partir dos anos 60: com a
crise histérica do “fim do cinema” no contexto da decadência do modelo
hollywoodiano e da ascensão da televisão; com a escolha empreendida por
determinados artistas que queriam se “fazer ouvir” pela “língua vulgar” dos
filmes de horror, faroestes e pepluns[5]; e no espaço muito pouco
espiritual do studio system italiano.
Voltemos ao contexto de Dante.
Retroativamente a Idade Média foi concebida pelos Iluministas sob o epíteto de
“idade das trevas”, mas para o poeta e muitos de seus contemporâneos aquele era
um momento de verdadeira iluminação espiritual, ameaçado por um iminente
mundanismo destruidor. Até meados do século XIV, Deus era a verdade universal,
a medida última do movimento dos homens e da natureza. Em determinado momento
se opera uma transição e os pensadores se reapropriam da Razão, impondo o Homem
como centro do universo. É em resposta a este contexto que Dante elabora a sua
teopoética.
Sua maior contribuição para a cultura
imagética foi, entretanto, oferecer uma forma plena ao inferno, algo que até
então era uma agremiação de conceitos abstratos e tentativas de caracterização,
na instauração daquilo que podemos chamar de fenomenologia do Mal. O começo do
poema insere o personagem Dante[6] numa selva escura que já
carrega todos os traços daquilo que ele vai abordar na materialização deste
Mal. Este é um espaço vegetal, animal e, sobretudo irracional – traço elementar
para a criação poética nos filmes abordados mais adiante.
O passeio, guiado pelo poeta Virgílio,
através dos círculos infernais tem por motivos motores a aprendizagem
intelectual e o aperfeiçoamento espiritual, e exigem de Dante aquilo que os
diretores de filmes de horror exigirão de suas plateias: a fé. Sem ela não
existe possibilidade de imersão nos universos propostos. Estes artistas parecem
pedir um alto nível de integração à substância ficcional ou a audácia da adesão
às incoerências da sua criação.
Impossível não recorrer aqui ao início da
aventura de Dante quando Virgílio lhe interpela:
Portanto pra teu bem, penso e externo
que tu me sigas, e eu irei te guiando.
Levar-te-ei para lugar eterno
que tu me sigas, e eu irei te guiando.
Levar-te-ei para lugar eterno
de condenados que ouvirás bradando,
de antigas almas que verás, dolentes,
uma segunda morte em vão rogando;[7]
de antigas almas que verás, dolentes,
uma segunda morte em vão rogando;[7]
E
mais à frente, ao perceber a hesitação de Dante em iniciar a viagem:
é tibieza o que faz o teu tolhimento;
essa é o que o homem muita vez ensombra
e de uma honrosa empresa até o reverte,
como o animal que uma visão assombra.[8]
e de uma honrosa empresa até o reverte,
como o animal que uma visão assombra.[8]
Para entrarmos na aventura destas obras é
preciso que nos permitamos ser conduzidos ao reino movediço da criação
cinematográfica. É preciso o desprendimento, a fé e a coragem que Virgílio
insuflou em Dante para viajarmos por este Inferno audiovisual.
Na entrada do Inferno os poetas leem
inscrições que dizem:
VAI-SE POR MIM À CIDADE DOLENTE,
VAI-SE POR MIM À SEMPITERNA DOR,
VAI-SE POR MIM ENTRE A PERDIDA GENTE.
VAI-SE POR MIM À SEMPITERNA DOR,
VAI-SE POR MIM ENTRE A PERDIDA GENTE.
MOVEU JUSTIÇA O MEU ALTO FEITOR,
FEZ-ME A DIVINA POTESTADE, MAIS
O SUPREMO SABER E O PRIMO AMOR.
FEZ-ME A DIVINA POTESTADE, MAIS
O SUPREMO SABER E O PRIMO AMOR.
ANTES DE MIM NÃO FOI CRIADO MAIS
NADA SENÃO ETERNO, E ETERNA EU DURO.
DEIXAI TODA ESPERANÇA, Ó VÓS QUE ENTRAIS.[9]
NADA SENÃO ETERNO, E ETERNA EU DURO.
DEIXAI TODA ESPERANÇA, Ó VÓS QUE ENTRAIS.[9]
Tal advertência está intimamente ligada às
proposições dos cineastas aqui abordados. Seus filmes desenham um movimento em
direção ao pesadelo, ao enlouquecimento e para sorvê-los na sua plenitude
precisamos não apenas abandonar a esperança, mas nossas regras e padrões
racionalizadores, que na estrutura das narrativas serão por vezes, destruídos
ou ridicularizados.
Finalmente, podemos concluir, nesta leitura,
que Dante já antecipa uma concepção cinematográfica. O Inferno se cria, na
forma como o poeta lhe atribuiu, a partir da queda de Lúcifer do céu em direção
ao centro da terra. O movimento descendente do Anjo Decaído cava um cone no
qual se inscrevem os nove círculos infernais. O Inferno seria, portanto, a
materialização, o registro de um movimento – definição esta que muitos teóricos
atribuíram ao cinema.
Texto na íntegra publicado em GARCIA, Demian (org.) Cinemas de Horror. São José dos Pinhais: Editora Estronho, 2014.
[1]
Muito das ideias aqui apresentadas é produto da palestra do Professor Ernani
Fritoli sobre A Divina Comédia na
Universidade Federal do Paraná, dia 28 de setembro de 2013.
[2]
Aqui utilizamos a edição de A Divina
Comédia – Inferno/Dante Alighieri – Trad. Italo Eugenio Mauro. São
Paulo: Ed. 34, 1998.
[3]
A Comédia é dividida em três cânticas
(Inferno, Purgatório e Paraíso) com
33 cantos cada. Soma-se a esta estrutura triádica o primeiro canto do Inferno (que funciona como prólogo), num
total de 100 cantos.
[4]
Daqueles que ilustraram a Comédia
destacam-se o florentino Sandro Botticelli (1445-1510), o inglês William Blake
(1757-1827), o francês Gustave Doré (1832-1883) e o espanhol Salvador Dalí (1904-1989)
[5]
Filmes de sandália e espada, protagonizados por heróis como Hércules e Maciste,
numa mítica Antiguidade greco-romana, os peplums fixaram-se na história do
cinema comercial a partir da crise da indústria hollywoodiana dos anos 50 e
respondiam ao domínio da televisão oferecendo aventurasespetaculares em grandes
produções (numa espécie de pré-blockbuster)
como Ben-Hur (William Wyler, 1959), Quo Vadis (Mervyn Le Roy, 1951), Spartacus (Stanley Kubrick, 1960) entre
outros, que transformavam passagens bíblicas em filmes de ação.
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