(Os Inúteis)
Toda a obra de Fellini é uma autobiografia. Fellini
como “objecto” e “matéria” de filmes não se limita a uma rememoração de
experiências e confissões. O autor expõe-se também nas suas rêveries, obsessões e nos caminhos não
percorridos, no desejo de ser outro, e na confluência de outros destinos com o
seu, onde projecta uma faceta grotesca. Mas esta biografia sonhada e sublimada,
de que a psicanálise é um dos instrumentos de leitura, só se manifesta a partir
de La Dolce Vitta e se afirma
definitivamente com Otto e Mezzo.
Até essa ruptura linguística e temática, a sua matéria é não o sonho mas a
experiência pessoal, não sem que se detectem já os sinais do “outro” Fellini,
pelo papel atribuído à função onírica já fundamental no final de I Vitelloni constrói-se de forma
semelhante, na que permanece ainda hoje como uma das mais belas sequências do
realizador: Moraldo (Franco Interlenghi) abandonando a terra natal no combóio,
cujo movimento é montado paralelamente com uma série de travellings para trás sobre os seus companheiros adormecidos, um
movimento que é tanto símbolo de ruptura com o passado da sua parte, como, no
sentido inverso, projecção dos desejos não materializados de evasão dos
companheiros. Ainda de forma “realista” Fellini lança as bases do seu cinema a
partir dos anos 60. E o personagem desencantado de Moraldo forma com o Marcello
de La Dolce Vitta e o Guido de Otto e Mezzo um corpo único onde
Fellini se “retrata” a si próprio. Numa carta a Angelo Solmi, Fellini dá conta
do que I Vitelloni tem de
autobiográfico, com a sua terra natal de Rimini servindo de modelo para a
cidadezinha de província onde os vitelloni
passeiam a sua mediocridade e embalam sonhos que não materializarão (será preciso
o reconhecimento internacional e vários óscares para Fellini, para que os seus
conterrâneos lhe perdoem o facto de não ter feito o filme em Rimini). E se é
Moraldo o personagem com mais traços autobiográficos, também os outros, como
diz Fellini na referida carta, projectam algo de si, embora inspirados em
amigos de infância. Para um dos personagens irá buscar o seu próprio irmão,
Riccardo Fellini. Em I Vitelloni
Fellini “imagina” o que poderia ser o futuro de todos eles.
Cinco homens, Fausto, Ricardo, Leopoldo, Alberto e
Moraldo, formam esse grupo de vitelloni,
gente desocupada, que arrasta uma apagada e triste existência entre o usufruto
do imediato e projectos que nunca chegam a concretizar, vivendo à custa dos
familiares, imaturos e fugindo às responsabilidades. Não deixa de ser
interessante verificar que os personagens têm o nome dos actores que os
interpretam, excepto o primeiro e o último, que são também aqueles a que o
realizador dá mais atenção, Fausto como uma espécie de personagem central dos vários
episódios do filme, Moraldo numa função de testemunha. Se na intriga ele é o
mais apagado (à excepção das belíssimas sequências com o garoto ferroviário),
está, porém, presente ao longo de todo o filme, vendo, observando,
testemunhando a mediocridade do meio e daquela vida. A sua fuga não é um acto
reflectido: é como a água que transborda de vaso. Atinge o limite do suportável
e desaparece sem objectivo. O jovem ferroviário (única testemunha da sua
partida) pergunta-lhe: “Onde vais?” e
Moraldo responde: “Não sei. Vou-me
embora” “Mas o que vais fazer?”, “Não sei. Preciso de partir. Vou-me
simplesmente embora”. A que se segue um olhar constrangido sobre a cidade
que a pouco e pouco vai desaparecendo com a montagem paralela atrás referida.
Cada episódio são gotas de água que vão fazer extravasar o cálice de Moraldo,
sendo o definitivo a tragi-comédia da busca da mulher de Fausto (irmã de
Moraldo). É Fausto o mais triste destes tristes heróis, sem sentido de moral,
procurando seduzir a mulher do patrão, tentando vender uma estátua roubada,
numa antecipação dos pobres diabos sem moral de Il Bidone. Se há redenção para os personagens de Fellini, é Moraldo
quem a representa neste filme. Mas apenas a esperança da partida, deixando o
resto em suspenso. Se a sorte lhe sorrir poderá ser um jornalista (Marcello, em
La Dolce Vitta) ou um realizador de
cinema (Guido, em Otto e Mezzo).
Fausto, o mais arrogante e ousado (O que mais sonha com a partida da cidade,
procurando aliciar Moraldo. Mas tal gesto não era mais do que uma fuga às
responsabilidades por ter engravidado Sandra), revelar-se-á o mais fraco.
Alberto será o primeiro a afirmá-lo. Moraldo tem há muito consciência disso,
mas recusa-se a admiti-lo, e só no final, com relutância, lhe lança o epíteto
de cobarde à cara. Para Alberto ficará a mais patética das sequências: a do
travesti, após a noite de carnaval, qual marioneta desarticulada e abandonada
no meio da rua, verdadeira premonição de um futuro sem horizontes.
Em I Vitelloni
já está todo o Fellini. O trabalho da memória obsessivamente retomado, os
personagens procurando o caminho entre o desespero e a graça. E uma forma de
mostrar que transcende os limites do “neo-realismo”, com as imagens
rigorosamente trabalhadas (a disposição dos personagens na profundidade de
campo nas sequências do cais, da praia e as suas deambulações nocturnas pelas
ruas), uma fotografia que sublinha o recorte psicológico.
Que I Vitelloni
se tenha tornado uma das obras mais citadas de Fellini, e um verdadeiro
filme-culto, não causa espanto. Não é apenas a memória de Fellini que nele se
manifesta, mas a de toda uma geração. I
Vitelloni representa para a que viveu esse início da década de 50 o mesmo
que The Big Chill (Os Amigos de Alex), de Lawrence Kasdan,
representa para a geração de 60.
Manuel Cintra Ferreira
(Folhas da Cinemateca Portuguesa)
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