quinta-feira, 23 de julho de 2015

Prelúdio para matar, de Dario Argento


Profondo Rosso, Itália, 1975

Eu sonho em vermelho. Meus pesadelos são banhados em vermelho... Vermelho é a cor da paixão, do prazer. Vermelho é a cor das viagens pelas profundezas escondidas do subconsciente. Mas acima de tudo: vermelho é a cor da raiva... e da violência.
Dario Argento
Uma imagem - uma apenas - interromperá os créditos de Prelúdio Para Matar: um plano de uma sala, com a câmera baixa enquadrando uma mesa, duas cadeiras, um abajur, a vitrola de onde sai uma melodia infantil e uma árvore de natal. Surgem duas sombras na parede, uma esfaqueando a outra. Escuta-se um berro. A sombra esfaqueada cai no chão, fora do plano. Dois pés calçados com pequenos sapatinhos - aparentemente uma criança - invadem o extremo direito do quadro. Uma faca suja de sangue é jogada à frente dos sapatinhos, e o plano se encerra nesta composição. Uma imagem. Voltamos aos créditos, novamente com a trilha dos Goblin.
Na cena seguinte estamos num conservatório musical. O CinemaScope voa por pilares e colunas, com todas as suas nuances utilizadas para chamar a atenção do espectador nestes primeiros planos para a cenografia, rústica e de moldes clássicos. Após uma pequena movimentação de grua na qual a câmera desce da direita para a esquerda, o grupo que está tocando a música a qual escutamos é reenquadrado. O inglês Marcus Daly (David Hemmings), professor de jazz, está no meio de sua aula. O jazz que está sendo tocado, por sua vez, parece remontar o trabalho de Ennio Morricone para outro filme de Argento, O Gato de Nove Caudas, no aspecto bastante tradicional de sua execução. Marcus interrompe seus alunos, não está satisfeito, diz que existe algo de errado, que seus alunos estão tocando muito bem, de maneira muito cuidadosa, formal, mas que esta música precisa ser "suja"; em outras palavras, que a beleza do tipo de música que estavam tocando reside justamente no que possui de grosseiro, inacabado, por conta em boa parte de ter nascido em bordéis e do apelo popular que possui. Esta é a primeira cena em que Argento estabelece regras pelas quais Prelúdio Para Matar se desenvolverá: o horror, o que existe de belo nele, é justamente aquilo que há de violento, de rude, do susto mais vagabundo ao assassinato mais sangrento, e é assim que devem ser os filmes do gênero segundo professor Dario.
Helga Ulman (Macha Méril) está prestes a realizar uma apresentação de seus poderes psíquicos no "Congresso Europeu de Parapsicologia". A dançante dolly de Argento nos encaminha pelos corredores do local onde as palestras estão ocorrendo, atravessando a cortina de entrada para o palco onde em poucos instantes sucederá uma apresentação. Esta cena obtém o trunfo de unir a beleza da mise en scène de Argento a uma praticidade raramente presente no seu trabalho, compondo um plano de apresentação e exploração do ambiente onde se passará a seqüência que inicia a narrativa de Prelúdio ao mesmo tempo em que serve ao jogo simbólico do diretor. No momento em que a câmera atravessa a cortina vermelha (o Rosso do título original) o espectador vê - através do uso da câmera subjetiva, sempre usada à perfeição por Argento - uma quase que exata reprodução do que poderia muito bem ser uma sala de cinema ou um teatro de ópera (com poltronas, espectadores e uma atração), e logo depois um zoom nos aproximará ao palco onde à frente de gigantescas cortinas vermelhas (novamente o Rosso) se encontram os professores Giordani (Glauco Mauri) e Bardi (Piero Mazzinghi) e a conferencista Helga. Argento chama a atenção do espectador para sua condição participativa nesta cena (nós "entramos" com a câmera e nos "unimos" ao público presente na palestra) ao mesmo tempo em que parece querer nos mostrar, com o uso bastante consciente de "vermelhos profundos", que algo importante está para acontecer.
O professor Giordani falará dos progressos e recentes descobertas sobre paranormalidade e tocará rapidamente no assunto da comunicação entre insetos (um tema que retorna em Phenomena) antes de introduzir a sensitiva lituana que reside a pouco tempo em Roma. É neste momento e não antes que Argento mostra o que para ele seria a função da câmera e como esta se relaciona com seu projeto cinematográfico: a médium avisa de imediato que suas capacidades nada têm a ver com "mágica, o esotérico ou previsão de futuro" e que consegue apenas e tão-somente pressentir pensamentos no instante em que se formam e jamais aqueles que estão por vir. Esta cena é filmada com os personagens de Giordani, Bardi e Helga de costas para a câmera - os dois homens ocupando cada extremo do widescreen e apenas ela ao centro - de tal maneira que podemos nos ver redimensionados no público comparecente à palestra, pela primeira vez plenamente emoldurado num plano. No momento em que a paranormal começa a descrever suas aptidões um zoom nos aproxima de seu cabelo loiro, abandonando os outros dois especialistas presentes e culminando num maravilhoso painel simbólico onde seu crânio - servindo para Argento como a câmera cinematográfica o serve, ou seja, detendo e registrando apenas o que sucede no momento, no instante, a evidência do presente quepode ser a sombra de um passado - é posto em oposição ao teatro onde ocorre a conferência - que remonta por sua vez o cinema do quadro New York Movie mas também uma casa de ópera, reflexo dos interesses estéticos de Argento transformados aqui em espaço cênico e material. O que segue é o primeiro momento em que um retorno abrupto de eventos passados é acontecimento motivador dos desequilíbrios e dos distúrbios que permeiam e redefinem as narrativas de todos os filmes de Argento: algo invade grosseiramente a percepção de Helga durante a demonstração de seus poderes, uma presença que transmite "pensamentos pervertidos, assassinos", obviamente alguém da platéia que, segundo a médium, "Já matou... E matará de novo". Bardi passa um copo d'água para acalmar a alterada Helga enquanto ela discorre sobre uma cantiga infantil numa casa, uma morte e a presença de sangue - "nosso sangue". Neste momento uma pessoa se levanta (sabemos disso novamente através do uso da subjetiva) e abandona a palestra enquanto é repetida a frase "Esquecer... para sempre" pela sensitiva.
Após o fim da palestra Helga fala a Giordani um pouco sobre os pensamentos que irromperam sua mente, "ao mesmo tempo cruéis e infantis". Fala também que não pôde expressar todas as sensações que a afetaram naquela hora, mas que sabe quem é o assassino. Pouco após descobrirmos que este ainda se encontra no local da palestra (novamente denunciado pelo uso da câmera subjetiva) e que escondido escuta a conversa entre a médium e o professor, Argento nos brinda com uma das mais belas cenas de sua carreira: num formidável plano-seqüência passeamos por cima e pelos lados de bolinhas de gude, desenhos infantis sobre assassinatos, um boneco de pano vermelho espetado por diversas agulhas e outros brinquedos bizarros até o momento em que Argento mobiliza sua câmera para culminar em duas facas, seguindo este último percurso de seu plano com o corte para um superclose dos olhos do assassino sendo pintados. Esta seqüência dá o tom que distancia Prelúdio Para Matar dos primeiros trabalhos de Argento, pois elementos como a câmera acrobática (O Pássaro das Plumas de Cristal), a obsessão pelo corte repentino (O Gato de Nove Caudas, onde há também o uso de closes dos olhos do assassino) e a trilha sonora rock'n'roll (Quatro Moscas no Veludo Cinza) só serão utilizados e unificados para fins bastante específicos à empreitada do diretor aqui. Se há uma palavra capaz de descrever a função que Prelúdio Para Matar teve à sua época na obra de Argento, esta seria "depuração".
Das três propostas de início para o filme - a primeira imagem que surge ainda durante os créditos; a apresentação de Marcus e a sugestão de uma diferente proposta de música aos seus alunos; e a longa seqüência no "Congresso Europeu de Parapsicologia" - apenas duas serão desenvolvidas no plano narrativo. Argento abandona rapidamente a auto-reflexão de sua obra que a cena no conservatório musical dá a impressão de sugerir, preferindo desenvolver na abordagem e nas inovações de sua direção este aspecto que, como o tema da comunicação entre insetos, será plenamente trabalhado em outro filme (Tenebre). O enredo será portanto resultado do choque entre a primeira cena e a reação de Helga ao tê-la "transmitida" à sua mente, descobrindo quem é o assassino e trazendo ao filme este relevo, o surgimento de algo que já estava enterrado e "esquecido para sempre". A fatalidade é que este "algo" foi fatal o bastante para uma primeira vítima e assim o será para a médium, assassinada a machadadas no mesmo momento em que o pianista Marcus, seu vizinho, testemunha o acontecimento.
É na troca de protagonistas que terá início uma investigação, verdadeira raison d'être da obra de Argento, e apesar de várias e constantes alusões a Hitchcock certamente a referência fundamental aqui é Antonioni. Se existem ecos de Marnie - Confissões de uma Ladra nos traumas psicanalíticos que invadem de quando em quando a narrativa, Psicose no desaparecimento de Helga que nos deixa como protagonista Marcus e Festim Diabólicona presença de um cadáver escondido cuja presença é importantíssima à trama, é Blowup que figura de maneira intensa na investigação realizada pelo pianista com a ajuda da repórter Gianna Brezzi (Daria Nicolodi). Com a certeza que presenciou algo quando atravessou o corredor que conduz ao quarto de Helga que pode ou não ter importância às suas inquirições, o pianista terá primeiro que realizar uma série de pesquisas que o levam a uma villa abandonada onde aparentemente um assassinato ocorreu muitos anos antes. Argento leva sua câmera ao imenso casarão e dele explora as imensas potencialidades de seu aspecto fantasmagórico - terreno de Corman e Tourneur, o da "casa mal-assombrada" - e também diversos joguetes de sombras e luzes, sempre belas e de grande impacto. A busca que o protagonista e Argento realizam por fragmentos de um passado, a única alternativa de resposta para os assassinatos, prefigura o momento mais importante desta seqüência (e possivelmente do filme): olhando atentamente a parede de uma das salas da villa, Marcus percebe que há algo pintado por detrásdela. Intrigado, aproxima-se e percebe uma faca banhada em sangue despontando no que obviamente se trata de um desenho pintado numa superfície e ocultado por uma fina e falsa parede. Por ser pequeno o defeito que possibilita ver o diminuto fragmento do desenho, Marcus pega um pedaço de vidro e risca a camada de concreto que o esconde. Argento trabalhará ao mesmo tempo nesta cena suas impressões sobre representação visual e a capacidade de síntese oferecida pela montagem cinematográfica - uma imagem que se revela aos poucos, que é montada aos poucos por Marcus e que ao final é recriada a partir de impressões única e exclusivamente narrativas (tudo o que foi descoberto pelo pianista até o momento). É esta cena, mais do que qualquer outra, que revela como para Argento tudo pode ser cinema, que qualquer discussão sobre crença na imagem (e para crer é necessário questionar) só se torna válida quando desta idéia surge outra, a de crença no mundo, de forma que ambas se tornam intrínseca e inexoravelmente inseparáveis. Como o cineasta aceita este credo com muita força é capaz também de problematizá-lo: pois o pianista descobrirá sim um desenho que muito esclarece sobre o que pode ser o caso que investiga, mas um pedaço do desenho, justamente o mais importante, não lhe será revelado pois o que se afigurou - umoutro desenho - respondeu suas equivocadas impressões.
Se já tivemos muito de Blowup até aqui - e a presença do ator inglês David Hemmings só reforça a impressão de um verdadeiro tributo ao filme de Antonioni -, é apenas na seqüência final que Argento subverte e trespassa seu ponto de partida e molde inicial. A pessoa que segundo o desenho descoberto por Marcus seria o assassino será morta num acidente. Retornando para sua casa após o ocorrido, o pianista se lembra da ocasião em que testemunhou o assassinato de Helga, especificamente de quando passou pelo corredor do apartamento dela. De volta ao cenário do crime, Marcus passa lentamente pelo corredor, desta vez com o olhar distanciado de um investigador, analisando detalhe por detalhe. De imediato a presença de vários quadros presentes nas paredes do corredor chamam a atenção do pianista, mas é um espelho - um espelho posto à frente de um destes quadros - que revelará onde falhou na sua busca: o assassino se encontrava à frente de um destes quadros, seu rosto se misturando com os outros rostos presentes na pintura e refletido no espelho. O aspecto unidimensional do espelho - e uma tela de cinema não se faz muito diferente - não possibilitou ao pianista naquele momento perceber que se tratava do assassino, e será apenas após um processo de reensino do olhar (a investigação para ele, o filme para nós) que Marcus poderá voltar ao ponto inicial (o apartamento de Helga) do percurso que teve de traçar. Capacidade incrível esta de Argento de confundir nossas expectativas sobre o que é e o que deixa de ser cinema a cada cena, a cada quadro.
Obviamente o assassino se encontra no apartamento, pronto para aniquilar o pianista, e é durante sua confissão (sim, há uma confissão) que retornamos à primeira imagem do filme. Apenas com o ressurgimento desta cena - agora com sua função de flashbackesclarecida e especificada - Argento pode dar prosseguimento ao último ato de Prelúdio Para Matar (último ato em todos os seus filmes): a punição do assassino com sua morte, o fim de um passado que não pode e não tem como resistir ao presente. Após atingir Marcus com uma machadada no ombro, o psicopata leva um chute do pianista e tem seu colar preso ao mecanismo de um elevador pouco antes deste ser acionado e degolá-lo. No "vermelho profundo" do sangue daquele responsável pelas mortes, Marcus observa seu reflexo - ele próprio agora um assassino. Não se sai impune de um filme, lembra Argento, e não deixa de ser também nosso o reflexo contido nesta última cena.

Bruno Andrade

Texto original: http://www.contracampo.com.br/41/profondorosso.htm)

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