Sobre o cinema de Lucio Fulci
Todo
aquele que não consegue fazer frente à vida enquanto está vivo precisa de uma
das mãos para afastar parte do desespero que sente perante o seu destino - com
pouco êxito - mas com a outra ele pode anotar o que observa entre as ruínas,
porque é capaz de ver qualquer coisa de diferente (e muito mais) do que os
outros vêem; apesar de tudo, mesmo morto durante a vida, ele é o verdadeiro
sobrevivente.
Trecho de Diários de Franz
Kafka
Não é preciso ser um
morto-vivo para sentir o vazio da existência. Nos filmes do italiano
Lucio Fulci há essa mesma constatação niilista. Mas por se valer de
meios “antinaturais” – histórias de zumbis, portais malignos, possessões e serial
killers – para
edificar sua poética, Fulci é menos óbvio e, sobretudo, menos
"respeitável" que os demais. Geralmente associado ao cinema de
gênero, de traço popular (da comédia no início da carreira, aos filmes de
horror, passando pelos gialli e
faroestes), ele é famoso pela maneira gráfica como filma eviscerações e toda
sorte de mutilações. Porém, seu alcance é maior. Não apenas consolidou as bases
criativas do que se convencionou chamar de cinema gore, como adicionou a esse subgênero
rara inventividade e sofisticação. Pode parecer paradoxal que um cineasta capaz
de rodar um homem sendo partido ao meio (Demonia)
ou um jovem vomitando o próprio fígado (The
City of the Living Dead) seja, em algum momento, sofisticado. No
entanto, é. E, justamente, nas cenas mais extremas, tal o poder de fabulação de
suas imagens.
Ainda mais relevante
para sua poética niilista - e o que o torna um autor acima de tudo - é a sua
utilização do corpo. Se para Pier Paolo Pasolini, em sua trilogia da vida, o
corpo é o locus do
prazer, vestígio possível do sagrado entre os homens, que, mais tarde,
converte-se em objeto, fetiche mercantil, mercadoria do “prazer” alheio
(notadamente em Saló), para Fulci não
há nada além do corpo. Em oposição a Robert Bresson, por exemplo, para quem o
corpo é travessia, indício do invisível, do SOBREnatural, meio pelo qual se
manifesta a graça (na primeira metade de sua obra) ou o mal (na fase final);
para o diretor de The Beyond, o corpo é o
fim. Talvez por isso, a obsessão em filmar o corpo mutilado, vegetativo, sem
vida, a ponto de, num último grau de paroxismo, mostrar um corpo sendo
literalmente moído (The
Sweet House of Horrors). Em comum a todas essas imagens a falta de
transcendência. É como se Fulci perscrutasse se existe algo além do
corpo, quem sabe a alma...
Não por acaso, uma
imagem recorrente nos filmes do cineasta italiano é a de um olho – “a janela da
alma” – sendo perfurado. Ele filma o movimento até o fim, seja um graveto ou
uma furadeira perfurando o globo ocular, e não encontra nada além do orgânico.
É interessante observar como mesmo a presença do mal, a evocação do diabo ou de
outros fenômenos próprios dos filmes de terror sempre têm uma manifestação
corpórea nos filmes de Fulci. Na sua obra não existem espíritos ou
ectoplasmas, somente corpos - mesmo após a morte. É difícil imaginar algo mais
pessimista.
Para além das
imposições comerciais, os filmes de zumbis de Fulci são prodigiosos
em reforçar sua visão niilista, ao mostrar sem rumo, debatendo-se como moscas
contra a janela, esses corpos sem alma. E quando se chega ao fim da longa
estrada em The Beyond, só há o vazio
e corpos soterrados. Então, os dois protagonistas do filme, que escaparam às
mutilações durante a trama, são encerrados em seus próprios corpos – e,
novamente, são os olhos, que se acinzentam como barras de metal, a senha para a
danação final. Não há alma, apenas uma prisão intransponível (o corpo) da qual,
reforça Fulci, não é possível transcender. Metáfora da vida? Fulci,
que morreu em março de 1996, já deve ter a resposta.
(Texto original: http://www.contracampo.com.br/97/pgfulciadolfo.htm)
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