(2010,
Manoel de Oliveira)
Em
seu belo texto sobre Manoel de Oliveira, “Uma
nova aventura lusitana”, Inácio Araújo afirma, referindo-se às culturas do
passado que retornam e se presentificam ao longo de toda a filmografia do diretor,
que em seus filmes “o tempo não existe, não o tempo cronológico (…) o tempo se
concentra, tende à inexistência ou mesmo a um certo tipo de insignificância”. O
Estranho caso de Angélica não
é exceção. E o que volta do passado aqui é certo imaginário ou sensibilidade
desenvolvidos à época do Romantismo. Como em tantos outros filmes de Oliveira,
parece que estamos, em Angélica, em pleno século
XIX (uma espécie de interesse constante do diretor), embora seja um século XIX
com automóveis modernos e uma máquina fotográfica perfeitamente a cores – o
tempo cronológico não importa, afinal.
Ora,
não seria Isaac, o fotógrafo e leitor de filosofia recluso em seu quarto, uma
espécie ou variante de Werther? Se lembrarmos bem, este apaixonado suicida só
deixava de lado o mergulho em suas leituras e o quarto da estalagem onde estava
hospedado para olhar a natureza e desenhar suas singularidades (até conhecer
Lotte, claro). Eram desenhos rápidos, à mão, que tentavam captar o instante do
sol batendo na grama, segurar a marcha atroz do tempo, etc… fotografias, enfim. A comparação é importante, porque é
justamente este personagem, Isaac,
que poderá – ou estará apto ou predisposto – a enxergar como viva uma mulher
que acabou de falecer. Como se sabe, a grande revolução do Romantismo contra as
hierarquias da beleza clássica foi estabelecer que “tudo fala”: uma mera pedra,
uma árvore, uma pequena casa vulgar, um defunto, tudo faz parte da opacidade
misteriosa e imanente das coisas do mundo e tudo pode ser elevado a objeto da arte,
tudo esbanja significados inimagináveis, todos os objetos podem ser portas para
uma transcendência sublime. O que estas coisas nos escondem? Que verdade
essencial há em seu mistério? A condição melancólica do romântico era olhar o
mundo a partir dessa dúvida permanente. E é o que acontece com Issac, que lança
olhares tristes para o lado de fora da janela (como nas pinturas de Friedrich)
e que, como ele mesmo afirma, se interessa pelas coisas que estão prestes a
desaparecer, como um grupo remanescente de trabalhadores rurais que logo serão
substituídos por máquinas e que ele fotografa.
Oliveira
precisa desse personagem – o retorno a esta “vertente
romântica” se justifica porque o cineasta português faz parte, junto com tantos
outros diretores que estão no topo do debate cinéfilo contemporâneo, de uma
busca justamente pela transcendência que as coisas opacas e misteriosas do
mundo podem dar a vislumbrar, através da imagem. Ora, essa é a “verdade” (que
alguns chamam de “real”), fugaz como um raio, que tanto persegue os personagens
(de diferentes épocas) de Non, ou a vã glória de mandar,
que tanto inquieta Leonor Silveira (que, sempre ótima, interpreta a mãe de
Angélica neste último Oliveira) em Espelho mágico; é ela que
paira no trágico passeio pelas “civilizações” de Um
filme falado, é ela que permeia os passos de Michel Picolli (e seu
caminhar na escada no último e devastador plano do filme) em Je
rentre la maison, etc,
etc. É essa busca utópica e “sublime” do cinema – portanto em certo sentido
modernista – de Oliveira que faz com que aqueles que tanto comemoraram a
vitória de Apichatpong em Cannes repitam que ele, com 102 anos, é mais jovem e
interessante que tantos outros cineastas por aí.
Tal
busca, em Angélica, é empreendida
através do entrelaçamento de dois caminhos, ou duas camadas que o filme traz:
há em primeiro lugar a “historinha” que o roteiro desenvolve – como sempre em
Oliveira de maneira distanciada, paródica, cínica e humorada, através das
interpretações graciosamente afetadas dos atores, do pastiche com a
“ingenuidade” do primeiro cinema, etc – ; e há, em segundo lugar, quando a
imagem apresenta a materialidade das coisas em sua plena singularidade opaca e
ininteligível para nós. É aí que esse filme sobre fotografia cria um certo
“efeito-fotografia” na imagem cinematográfica (em movimento): o espectador deve
aí enfrentar todo o mistério do passar irrefreável do tempo (ou, como diria
Inácio, sua “não existência”), daquilo que as coisas às vezes, rápido como um
relâmpago, podem, ou não, nos revelar; deve esboçar, talvez, um punctum (se lembrarmos do Barthes de Câmara
clara). Criar esse “efeito-fotografia” – também através de uma
decupagem que transforma o olhar de Isaac mesmo em uma câmera fotográfica
através da persistência de planos subjetivos dele (lembrar de sua entrada na
casa de Angélica, quando capta todos os detalhes da sala) – tem seus riscos: o
espectador pode permanecer apenas na primeira camada, na “historinha”, e
enxergar o filme como algo completamente banal.
Contudo, nosso caminho é preparado: do mesmo
modo que Isaac, e apenas Isaac (que tem em seu oposto completo a simples,
simpática e funcional dona de estalagem), muda de postura com relação ao mundo
por causa da imersão em suas leituras, o roteiro de Oliveira, os poemas e
citações que o fotógrafo declama (“ó, tempo, detêm-te!”, etc), a conversa à
mesa do café (uma das melhores sequencias do filme e oliveiriana por excelência
– notar o brilhante Luis Miguel Cintra, de cabelos brancos) sobre a fantástica
natureza da matéria – referência clara a Epstein, como o nome da loja de
fotografia do primeiro plano, “Foto Genia” – tudo isso como que nos “ensina” a
olhar as outras imagens do filme de outro modo. Eis que o que fica em nossas
cabeças forte e persistentemente não é a imagem de Angélica – um cadáver
sarcasticamente sorridente e sem nenhuma aura – mas o sol batendo nos
trabalhadores que levantam poeira ao cavar, o gato que olha entretido para o
passarinho voando na gaiola, o plano geral da cidade que Isaac olha detidamente
pela janela, o som misterioso do caminhão que passa toda manhã pela frente da
estalagem (, pouco antes de morrer, ele apenas os escuta, sem vê-los). Nesse
sentido, a sequencia mais incrível do filme – um travelling mostrando a sequencia de fotos (em que
se alternam Angélica morta e os trabalhadores rurais) penduradas no varal de
Isaac – pode resumi-lo: o que acontece quando se justapõem – quando se monta – uma linda jovem morta e alguns
trabalhadores rurais cuja atividade está prestes a se extinguir, que
significados eles, em todo seu agressivo mistério, podem permitir que surjam?
Não coincidentemente, voltamos à pergunta que está presente na diegese e na mise-en-scéne de Tio Boonmee: que vida é
possível se ter depois da morte?André Antônio
(Texto original e imagens: http://www.filmologia.com.br/?page_id=2309)
Quero registrar meu profundo agradecimento ao Coletivo Atalante, ao Cineclube da Cinemateca e ao Miguel Haoni, pela Mostra Manoel de Oliveira.
ResponderExcluirFoi um grande prazer entrar em contato com a obra desse ilustre lusitano: emocionou, fez pensar e deixou um gosto de quero mais.
Parabéns pela iniciativa!
Vera Lúcia de Oliveira e Silva