A
Partida
"Que
culpa temos nós dessa planta da infância, de sua sedução, de seu
viço e constância?" (Jorge de Lima)
1
Os
olhos no teto, a nudez dentro do quarto; róseo, azul ou violáceo, o
quarto é inviolável; o quarto é individual, é um mundo, quarto
catedral, onde, nos intervalos da angústia, se colhe, de um áspero
caule, na palma da mão, a rosa branca do desespero, pois entre os
objetos que o quarto consagra estão primeiro os objetos do corpo; eu
estava deitado no assoalho do meu quarto, numa velha pensão
interiorana, quando meu irmão chegou pra me levar de volta; minha
mão, pouco antes dinâmica e em dura disciplina, percorria vagarosa
a pele molhada do meu corpo, as pontas dos meus dedos tocavam cheias
de veneno a penugem incipiente do meu peito ainda quente; minha
cabeça rolava entorpecida enquanto meus cabelos se deslocavam em
grossas ondas sobre a curva úmida da fronte; deitei uma das faces
contra o chão, mas meus olhos pouco apreenderam, sequer perderam a
imobilidade ante o voo fugaz dos cílios; o ruído das batidas na
porta vinha macio, aconchegava-se despojado de sentido, o floco de
paina insinuava-se entre as curvas sinuosas da orelha onde por
instantes adormecia; e o ruído se repetindo, sempre macio e manso,
não me perturbava a doce embriaguez, nem minha sonolência, nem o
disperso e esparso torvelinho sem acolhimento; meus olhos depois
viram a maçaneta que girava, mas ela em movimento se esquecia na
retina como um objeto sem vida, um som sem vibração, ou um sopro
escuro no porão da memória; foram pancadas num momento que puseram
em sobressalto e desespero as coisas letárgicas do meu quarto; num
salto leve e silencioso, me pus de pé, me curvando pra pegar a
toalha estendida no chão; apertei os olhos enquanto enxugava a mão,
agitei em seguida a cabeça pra agitar meus olhos, apanhei a camisa
jogada na cadeira, escondi na calça meu sexo roxo e obscuro, dei
logo uns passos e abri uma das folhas me recuando atrás dela: era
meu irmão mais velho que estava na porta; assim que ele entrou,
ficamos de frente um para o outro, nossos olhos parados, era um
espaço de terra seca que nos separava, tinha susto e espanto nesse
pó, mas não era uma descoberta, nem sei o que era, e não nos
dizíamos nada, até que ele estendeu os braços e fechou em silêncio
as mãos fortes nos meus ombros e nós nos olhamos e num momento
preciso nossas memórias nos assaltaram os olhos em atropelo, e eu vi
de repente seus olhos se molharem, e foi então que ele me abraçou,
e eu senti nos seus braços o peso dos braços encharcados da família
inteira; voltamos a nos olhar e eu disse "não te esperava"
foi o que eu disse confuso com o desajeito do que dizia e cheio de
receio de me deixar escapar não importava com o que eu fosse lá
dizer, mesmo assim eu repeti "não te esperava" foi isso o
que eu disse mais uma vez e eu senti a força poderosa da família
desabando sobre mim como um aguaceiro pesado enquanto ele dizia "nós
te amamos muito, nós te amamos muito" e era tudo o que ele
dizia enquanto me abraçava mais uma vez; ainda confuso, aturdido,
mostrei-lhe a cadeira do canto, mas ele nem se mexeu e tirando o
lenço do bolso ele disse "abotoe a camisa, André".
2
Na
modorra das tardes vadias na fazenda, era num sítio lá do bosque
que eu escapava aos olhos apreensivos da família; amainava a febre
dos meus pés na terra úmida, cobria meu corpo de folhas e, deitado
à sombra, eu dormia na postura quieta de uma planta enferma vergada
ao peso de um botão vermelho; não eram duendes aqueles troncos
todos ao meu redor, velando em silêncio e cheios de paciência meu
sono adolescente? Que urnas tão antigas eram essas liberando as
vozes protetoras que me chamavam da varanda? de que adiantavam
aqueles gritos, se mensageiros mais veloes, mais ativos, montavam
melhor o vento, corrompendo os fios da atmosfera? (meu sono, quando
maduro, seria colhido com a volúpia religiosa com que se colhe um
pomo)
3
E
me lembrei que a gente sempre ouvia nos sermões do pai que os olhos
são a candeia do corpo, e que se eles eram bons é porque o corpo
tinha luzz, e se os olhos não eram limpos é que eles revelavam um
corpo tenebroso, e eu ali, diante de meu irmão, respirando um cheiro
exaltado de vinho, sabia que meus olhos eram dois caroços
repulsivos, mas nem liguei que fossem assim, eu estava era confuso, e
até perdido, e me vi de repente fazendo coisas, mexendo as mãos,
correndo o quarto, como se o meu embaraço viesse da desordem que
existia a meu lado: arrumei as coisas em cima da mesa, passei um pano
na superfície, esvaziei o cinzeiro no cesto, dei uma alisada no
lençol da cama, dobrei a toalha na cabeceira, e já tinha voltado à
mesa para encher dois copos quando escorreguei e quase perguntei por
Ana, mas isso só foi um súbito ímpeto cheio de atropelos, eu
poderia isto sim era perguntar como ele pôde chegar até minha
pensão, me descobrindo no casario antigo, ou ainda, de um jeito
ingênuo, procurar conhecer o motivo da sua vinda, mas eu nem sequer
estava pensando nessas coisas, eu estava era escuro por dentro, não
conseguia sair da carne dos meus sentimentos, e ali junto da mesa eu
só estava certo era de ter os olhos exasperados em cima do vinho
rosado que eu entornava nos copos; "as venezianas" ele
disse "por que as venezianas estão fechadas? " ele disse
da cadeira do canto onde se sentava e eu não pensei duas vezes e
corri abrir a janela e fora tinha um fim de tarde tenro e quase frio,
feito de um sol fibroso e alaranjado que tingiu amplamente o poço de
penumbra do meu quarto, e eu ainda encaixava as folhas das venezianas
nas carrancas quando, ligeira, me percorreu uma primeira crise, mas
nem fiz caso dela, foi passageira, por isso eu só pensei em concluir
minha tarefa e fui logo depois, generoso e com algum escárnio, pôr
também entre suas mãos um soberbo copo de vinho; e enquanto uma
brisa impertinente estufava as cortinas de renda grossa, que
desenhava na meia altura dois anjos galgando nuvens, soprando
tranqüilos clarins de bochechas infladas, me larguei na beira da
cama, os olhos baixos, dois bagaços, e foram seus olhos plenos de
luz em cima de mim, não tenho dúvida, que me fizeram envenenado, e
foi uma onda curta e quieta que me ameaçou de perto, me levando
impulsivo quase a incitá-lo num grito "não se constranja, meu
irmão, encontre logo a voz solene que você procura, uma voz potente
de reprimenda, pergunte sem demora o que acontece comigo desde
sempre, componha gestos, me desconforme depressa a cara, me quebre
contra os olhos a velha louça lá de casa", mas me contive,
achando que exortá-lo, além de inútil, seria uma tolice, e, sem
dar por isso, caí pensando nos seus olhos, nos olhos de minha mãe
nas horas mais silenciosas da tarde, ali onde o carinho e as
apreensões de uma família inteira se escondiam por trás, e pensei
quando se abria em vago instante a porta do meu quarto ressurgindo um
vulto maternal e quase aflito "não fique assim na cama,
coração, não deixe sua mãe sofrer, fale comigo" e surpreso,
e assustado, senti que a qualquer momento eu poderia também explodir
em choro, me ocorrendo que seria bom aproveitar um resto de
embriaguez que não se deixara espantar com sua chegada para
confessar, quem sabe piedosamente, "é o meu delírio, Pedro, é
o meu delírio, se você quer saber", mas isso só foi um passar
pela cabeça um tanto tumultuado que me fez virar o copo em dois
goles rápidos, e eu que achava inútil dizer fosse o que fosse
passei a ouvir (ele cumpria a sublime missão de devolver o filho
tresmalhado ao seio da família) a voz de meu irmão, calma e serena
como convinha, era uma oração que ele dizia quando começou a falar
(era o meu pai) da cal e das pedras da nossa catedral.
4
Sudanesa
(ou Schuda) era assim: farta; debaixo de uma cobertura de duas águas,
de sapé grosso e dourado, ela vivia dentro de um quadro de estacas
bem plantadas, uma ao lado da outra, que eu nos primeiros tempos mal
ousava espiar através das frinchas; era numa vasilha de barro fresca
e renovada todas as manhãs que ela lavava a língua e sorvia a água,
era numa cama bem fenada, cheirosa e fofa, que ela deitava o corpo e
descansava a cabeça quando o sol lá fora já estava a pino; tinha
um cocho sempre limpo com milho granado de debulho e um capim verde
bem apanhado onde eu esfregava a salsa para apurarlhe o apetite; a
primeira ve que vi Sudanesa com meus olhos enfermiços foi num fim de
tarde em que eu a trouxe para fora, ali entre os arbustos floridos
que circundavam seu quarto agreste de cortesã: eu a conduzi com
cuidados de amante extremoso, ela que me seguia dócil pisando suas
patas de salto, jogando e gingando o corpo ancho suspenso nas colunas
bem delineadas das pernas; era do seu corpo que passei a cuidar no
entardecer, minhas mãos humosas mergulhando nas bacias de unguentos
de cheiros vários, desaparecendo logo em seguida no pêlo franjado e
macio dela; mas não era uma cabra lasciva, era uma cabra de menino,
um contorno de tetas gordas e intumescidas, expondo com seus
trejeitos as partes escuras mais pudendas, toda sensível quando o
pente corria o pêlo gostoso e abaulado do corpo; era uma cabra
faceira, era uma cabra de brincos, tinha um rabo pequeno que era um
pedaço de mola revestido de boa cerda, tão reflexivo ao toque leve,
tão sensitivo ao carinho sutil e mais suave de um dedo; se
esculturava o corpo inteiro quando uma haste verde - atravessada na
boca paciente - era mastigada não com os dentes mas com o tempo; e
era então uma cabra de pedra, tinha nos olhos bem imprimidos dois
traços de tristeza, cílios longos e negros, era nessa postura
mística uma cabra predestinada; Sudanesa foi trazida à fazenda para
misturar seu sangue, veio porém coberta, veio pedindo cuidados
especiais, e, nesse tempo, adolescente tímido, dei os primeiros
passos fora do meu recolhimento: saí da minha vadiagem e, sacrílego,
me nomeei seu pastor lírico: aprimorei suas formas, dei brilho ao
pêlo, dei-lhe colares de flores, enrolei no seu pescoço longos
metros de cipó-desão-caetano, com seus frutos berrantes e pendentes
como se fossem sinos; Schuda, paciente, mais generosa, quando uma
haste mais túmida, misteriosa e lúbrica, buscava no intercurso o
concurso do seu corpo.
5
O
amor, a união e o trabalho de todos nós junto ao pai era uma
mensagem de pureza austera guardada em nossos santuários, comungada
solenemente em cada dia, fazendo o nosso desjejum matinal e o nosso
livro crepuscular; sem perder de vista a claridade piedosa desta
máxima, meu irmão prosseguia na sua prece, sugerindo a cada passo,
e discretamente, a minha imaturidade na vida, falando dos tropeços a
que cada um de nós estava sujeito, e que era normal que isso pudesse
ter acontecido, mas que era importante não esquecer também as
peculiaridades afetivas e espirituais que nos uniam, não nos
deixando sucumbir às tentações, pondo-nos de guarda contra a queda
(não importava de que natureza), era este o cuidado, era esta pelo
menos a parte que cabia a cada membro, o quinhão a que cada um
estava obrigado, pois bastava que um de nós pisasse em falso para
que toda a família caísse atrás; e ele falou que estando a casa de
pé, cada um de nós estaria também de pé, e que para manter a casa
erguida era preciso fortalecer o sentimento do dever, venerando os
nossos laços de sangue, não nos afastando da nossa porta,
respondendo ao pai quando ele perguntasse, não escondendo nossos
olhos ao irmão que necessitasse deles, participando do trabalho da
família, trazendo os frutos para casa, ajudando a prover a mesa
comum, e que dentro da austeridade do nosso modo de vida sempre
haveria lugar para muitas alegrias, a começar pelo cumprimento das
tarefas que nos fossem atribuídas, pois se condenava a um fardo
terrível aquele que se subtraísse às exigências sagradas do
dever; ele falou ainda dos anseios isolados de cada um em casa, mas
que era preciso refrear os maus impulsos, moderar prudentemente os
bons, não perder de vista o equilíbrio, cultivando o autodomínio,
precavendo-se contra o egoísmo e as paixões perigosas que o
acompanham, procurando encontrar a solução para nossos problemas
individuais sem criar problemas mais graves para os que eram de nossa
estima, e que para ponderar em cada caso tinha sempre existido o
mesmo tronco, a mão leal, a palavra de amor e a sabedoria dos nossos
princípios, sem contar que o horizonte da vida não era largo como
parecia, não passando de ilusão, no meu caso, a felicidade que eu
pudesse ter vislumbrado para além das divisas do pai; evitando
conhecer os motivos ímpios da minha fuga (embora sugerindo
discretamente que meus passos fossem um mau exemplo pró Lula, o
caçula, cujos olhos sempre estiveram mais perto de mim), meu irmão
pôs um sopro quente na sua prece pra me lembrar que havia mais força
no perdão do que na ofensa e mais força no reparo do que no erro
deixando claro que deveriam ser estes o anverso e o reverso sublimes
do bom caráter, cabendo, por ocasião de minha volta, o primeiro à
família, e o reparo do meu erro cabendo a mim, o filho desgarrado;
"você não sabe o que todos nós temos passado esse tempo da
tua ausência, te causaria espanto o rosto acabado da família; é
duro eu te dizer, irmão, mas a mãe já não consegue esconder de
ninguém os seus gemidos" ele disse misturando na sua reprimenda
um certo e cada vez mais tenso sentimento de ternura, ele que vinha
caminhando sereno e seguro, um tanto solene (como meu pai), enquanto
eu me largava numa rápida vertigem, pensando nas provisões dessa
pobre família nossa já desprovida da sua antiga força, e foi
talvez, na minha escuridão, um instante de lucidez eu suspeitar que
na carência do seu alimento espiritual se cozinhava num prosaico
quarto de pensão, em fogofátuo, a última reserva de sementes de um
plantio; "ela não contou pra ninguém da tua partida; naquele
dia, na hora do almoço, cada um de nós sentiu mais que o outro, na
mesa, o peso da tua cadeira vazia; mas ficamos quietos e de olhos
baixos, a mãe fazendo os nossos pratos, nenhum de nós ousando
perguntar pelo teu paradeiro; e foi uma tarde arrastada a nossa tarde
de trabalho com o pai, o pensamento ocupado com nossas irmãs em
casa, perdidas entre os afazeres na cozinha e os bordados na varanda,
na máquina de costura ou pondo ordem na despensa; não importava
onde estivessem, elas já não seriam as mesmas nesse dia, enchendo
como sempre a casa de alegria, elas haveriam de estar no abandono e
desconforto que sentiam; era preciso que você estivesse lá, André,
era preciso isso; e era preciso ver o pai trancado no seu silêncio:
assim que terminou o jantar, deixou a mesa e foi pra varanda; ninguém
viu o pai se recolher, ficou ali junto da balaustrada, de pé,
olhando não se sabe o que na noite escura; só na hora de deitar,
quando entrei no teu quarto e abri o guarda-roupa e puxei as gavetas
vazias, só então é que compreendi, como irmão mais velho, o
alcance do que se passava: tinha começado a desunião da família"
ele disse e parou, e eu sabia por que ele tinha parado, era só olhar
o seu rosto, mas não olhei, eu também tinha coisas pra ver dentro
de mim, eu poderia era dizer "a nossa desunião começou muito
mais cedo do que você pensa, foi no tempo em que a fé me crescia
virulenta na infância e em que eu era mais fervoroso que qualquer
outro em casa" eu poderia dizer com segurança, mas não era a
hora de especular sobre os serviços obscuros da fé, levantar suas
partes devassas, o consumo sacramental da carne e do sangue,
investigando a volúpia e os tremores da devoção, mesmo assim eu
passei pensando na minha fita de congregado mariano que eu, menino
pio, deixava ao lado da cama antes de me deitar e pensando também em
como Deus me acordava às cinco todos os dias pra eu comungar na
primeira missa e em como eu ficava acordado na cama vendo de um jeito
triste meus irmãos nas outras camas, eles que dormindo não gozavam
da minha bem-aventurança, e me distraindo na penumbra que brotava da
aurora, e redescobrindo a cada lance da claridade do dia, ressurgindo
através das frinchas, a fantasia mágica das pequenas figuras
pintadas no alto da parede como cercadura, e só esperando que ela
entrasse no quarto e me dissesse muitas vezes "acorda, coração"
e me tocasse muitas vezes suavemente o corpo até que eu, que fingia
dormir, agarrasse suas mãos num estremecimento, e era então um jogo
sutil que nossas mãos compunham debaixo do lençol, e eu ria e ela
cheia de amor me asseverava num cicio "não acorda teus irmãos,
coração", e ela depois erguia minha cabeça contra a almofada
quente do seu ventre e, curvando o corpo grosso, beijava muitas vezes
meus cabelos, e assim que eu me levantava Deus estava do meu lado em
cima do criado-mudo, e era um deus que eu podia pegar com as mãos e
que eu punha no pescoço e me enchia o peito e eu menino entrava na
igreja feito balão, era boa a luz doméstica da nossa infância, o
pão caseiro sobre a mesa, o café com leite e a manteigueira, essa
claridade luminosa da nossa casa e que parecia sempre mais clara
quando a gente vinha de volta lá da vila, essa claridade que mais
tarde passou a me perturbar, me pondo estranho e mudo, me prostrando
desde a puberdade na cama como um convalescente, "essas coisas
nunca suspeitadas nos limites da nossa casa" eu quase deixei
escapar, mas ainda uma vez achei que teria sido inútil dizer
qualquer coisa, na verdade eu me sentia incapaz de dizer fosse o que
fosse, e erguendo meus olhos vi que meu irmão tinha os olhos
mergulhados no seu copo, e, sem se mexer, como se respondesse ao
aceno do meu olhar, ele disse: "quanto mais estruturada, mais
violento o baque, a força e a alegria de uma família assim podem
desaparecer com um único golpe" foi o que ele disse com um
súbito luto no rosto, e parou, e num jorro instantâneo renasceram
na minha imaginação os dias claros de domingo daqueles tempos em
que nossos parentes da cidade se transferiam para o campo
acompanhados dos mais amigos, e era no bosque atrás da casa, debaixo
das árvores mais altas que compunham com o sol o jogo alegre e suave
de sombra e luz, depois que o cheiro da carne assada já tinha se
perdido entre as muitas folhas das árvores mais copadas, era então
que se recolhia a toalha antes estendida por cima da relva calma, e
eu podia acompanhar assim recolhido junto a um tronco mais distante
os preparativos agitados para a dança, os movimentos irrequietos
daquele bando de moços e moças, entre eles minhas irmãs com seu
jeito de camponesas, nos seus vestidos claros e leves, cheias de
promessas de amor suspensas na pureza de um amor maior, correndo com
graça, cobrindo o bosque de risos, deslocando as cestas de frutas
para o lugar onde antes se estendia a toalha, os melões e as
melancias fartas aos gritos da alegria as uvas e as laranjas colhidas
dos pomares e nessas cestas com todo o viço bem dispostas sugerindo
no centro do espaço o mote para a dança, e era sublime essa alegria
com o sol descendo espremido entre as folhas e os galhos, se
derramando às vezes na sombra calma através de um facho poroso de
luz divina que reverberava intensamente naqueles rostos úmidos, e
era então a roda dos homens se formando primeiro, meu pai de mangas
arregaçadas arrebanhando os mais jovens, todos eles se dando rijo os
braços, cruzando os dedos firmes nos dedos da mão do outro compondo
ao redor das frutas o contorno sólido de um círculo como se fosse o
contorno destacado e forte da roda de um carro de boi, e logo meu
velho tio, velho imigrante, mas pastor na sua infância, puxava do
bolso a flauta, um caule delicado nas suas mãos pesadas, e se punha
então a soprar nela como um pássaro, suas bochechas se inflando
como as bochechas de uma criança, e elas inflavam tanto, tanto, e
ele sanguíneo dava a impressão de que faria jorrar pelas orelhas,
feito torneiras, todo o seu vinho, e ao som da flauta a roda
começava, quase emperrada, a deslocar-se com lentidão, primeiro num
sentido, depois no seu contrário, ensaiando devagar a sua força num
vaivém duro e ritmado ao toque surdo e forte dos pés batidos
virilmente contra o chão, até que a flauta voava de repente,
cortando encantada o bosque, correndo na floração do capim e
varando os pastos, e a roda então vibrante acelerava o movimento
circunscrevendo todo o círculo, e já não era mais a roda de um
carro de boi, antes a roda grande de um moinho girando célere num
sentido e ao toque da flauta que reapanhava dês voltando sobre seu
eixo, e os mais velhos que presenciavam, e mais as moças que
aguardavam a sua vez, todos eles batiam palmas reforçando o novo
ritmo, e não tardava Ana, impaciente, impetuosa, o corpo de
campônia, a flor vermelha feito um coalho de sangue prendendo de
lado os cabelos negros e soltos, essa minha irmã que, como eu, mais
que qualquer outro em casa, trazia a peste no corpo, ela varava então
o círculo que dançava e logo eu podia adivinhar seus passos
precisos de cigana se deslocando no meio da roda, desenvolvendo com
destreza gestos curvos entre as frutas e as flores dos cestos, só
tocando a terra na ponta dos pés descalços, os braços erguidos
acima da cabeça serpenteando lentamente ao trinado da flauta mais
lento, mais ondulante, as mãos graciosas girando no alto, toda ela
cheia de uma selvagem elegância, seus dedos canoros estalando como
se fossem, estava ali a origem das castanholas, e em torno dela a
roda girava cada vez mais veloz, mais delirante, as palmas de fora
mais quentes e mais fortes, e mais intempestiva, e magnetizando a
todos, ela roubava de repente o lenço branco do bolso de um dos
moços, desfraldando-o com a mão erguida acima da cabeça enquanto
serpenteava o corpo e sabia fazer as coisas, essa minha irmã,
esconder primeiro bem escondido sob a língua a sua peçonha e logo
morder o cacho de uva que pendia em bagos túmidos de saliva enquanto
dançava no centro de todos, fazendo a vida mais turbulenta,
tumultuando dores, arrancando gritos de exaltação, e logo entoados
em língua estranha começavam a se elevar os versos simples, quase
um cântico, nas vozes dos mais velhos, e um primo menor e mais
gaiato, levado na corrente, pegava duas tampas de panelas fazendo os
pratos estridentes, e ao som contagiante parecia que as garças e os
marrecos tivessem voado da lagoa pra se juntarem a todos ali no
bosque e eu podia imaginar, depois que o vinho tinha umedecido sua
solenidade a alegria nos olhos do eu pai mais certo então de que nem
tudo em um navio se deteriora no porão, e eu sentado onde estava
sobre uma raiz exposta num canto do bosque mais sombrio, eu deixava
que o vento leve que corria entre as árvores me entrasse pela camisa
e me inflasse o peito, e na minha fronte eu sentia a carícia livre
dos meus cabelos, e eu nessa postura aparentemente descontraída
ficava imaginando de longe a pele fresca do seu rosto cheirando a
alfazema, a boca um doce gomo cheia de meiguice, mistério e veneno
nos olhos de tâmara, e os meus olhares não se continham eu
desamarrava os sapatos, tirava as meias e com os pés brancos e
limpos ia afastando as folhas secas e alcançando abaixo delas a
camada de espesso húmus, e a minha vontade incontida era de cavar o
chão com as próprias unhas e nessa cova me deitar à superfície e
me cobrir intero de terra úmida, e eu nessa senda oculta não
percebia quando ela se afastava do grupo buscando por todos os lados
com olhos amplos e aflitos, e seus passos, que se aproximavam, se
confundiam de início com o ruído tímido e súbito dos pequenos
bichos que se mexiam num aceno afetuoso ao meu redor, e eu só dava
pela sua presença quando ela já estava por perto, e eu então
abaixava a cabeça e ficava atento para os seus passos que de repente
perdiam a pressa e se tornavam lentos e pesados, amassando
distintamente as folhas secas sob os pés e me amassando confusamente
por dentro, e eu de cabeça baixa sentia num momento sua mão quente
e aplicada colhendo antes o cisco e logo apanhando e alisando meus
cabelos, e sua voz que nascia das calcificações do útero
desabrochava de repente profunda nesse recanto mais fechado onde eu
estava, e era como se viesse do interior de um templo erguido só em
pedras mas cheio de uma luz porosa vazada por vitrais, "vem,
coração, vem brincar com teus irmãos", e eu ali, todo quieto
e encolhido, eu só dizia "me deixe, mãe, eu estou me
divertindo" mas meus olhos cheios de amargura não desgrudavam
de minha irmã que tinha as plantas dos pés em fogo imprimindo
marcas que queimavam dentro de mim. . .; que poeira clara, vendo
então as costas daquele tempo decorrido, o mesmo tempo que eu um
dia, os pés acorrentados, abaixava os olhos para não ver-lhe a
cara; e que peso o dessa mochila presa nos meus ombros quando saí de
casa; colada no meu dorso, caminhamos como gêmeos com as mesmas
costas, as gemas de um mesmo ovo, com olhos voltados pra frente e
olhos voltados pra trás; e eu ali, vendo meu irmão, via muitas
coisas distantes, e ia tomando naquele fim de tarde a resolução
desesperada de me jogar no ventre mole daquela hora; quem sabe eu de
repente terno ainda pedisse a meu irmão que fosse embora:
"lembranças pra família", e fecharia a porta; e quando
estivesse só na minha escuridão, me enrolaria no tenro pano de sol
estendido numa das. paredes do quarto, entregando-me depois,
protegido nessa manta, ao vinho e à minha sorte.
Livro
completo em pdf:
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