sábado, 3 de maio de 2025

Corpo [sobre Husbands de John Cassavetes]

 por João Piovan


Mais uma vez retornamos ao evidente interesse de Cassavetes na fisicalidade das ações de seus personagens e retornamos à temática do corpo enquanto veículo de manifestação de gestos, sentimentos e intenções. O “cinema de ação” de Cassavetes é menos impulsionado por uma necessidade narrativa, como provavelmente seria se estivesse mais intimamente ligado ao cinema clássico, e mais vinculado à uma necessidade expressiva, uma forma de sublimar os sentimentos latentes e daí deriva sua intensidade. Ainda dentro desta sequência na casa de banho do bar, Archie acaba por vomitar em seu próprio sapato. Gus expressa um absoluto asco, beirando o completo desespero causado pelo nojo. Narrativamente, esse momento não progride ou acrescenta informações relevantes, mas oferece a oportunidade de Gus, interpretado por Cassavetes, incorporar um certo comportamento, a expressão de um sentimento de horror absoluto e, profundamente, a possibilidade da atuação em plena liberdade.

O corpo masculino surge como veículo ideal para esse cinema, uma vez que mais livre para alcançar seus limites, suspensos de censura, e mais constitutivamente apto para o exercício dos gestos de expressão, comummente violentos, mas também das mais variadas naturezas. Em oposição, dentro da própria filmografia de Cassavetes, temos A Woman Under the Influence, em que a protagonista, interpretada por Gena Rowlands, vive crises nas quais age de forma infantilizada, ou, em outras palavras, expressa um profundo afeto pelo seu marido, pelos amigos do marido ou pelos seus filhos. A esta mulher, cabe ser constantemente podada, constrangida e finalmente internada para retomar seu estado de normalidade. Seja de forma consciente ou não, Cassavetes expressa essas duas diferentes formas de experiência do corpo entre o homem e a mulher, como sintetizado por Simone de Beauvoir em ‘O Segundo Sexo’:

(O homem) Encara o corpo como uma relação direta e normal com o mundo, que acredita apreender na sua objetividade, ao passo que considera o corpo da mulher sobrecarregado por tudo o que o especifica: um obstáculo, uma prisão.” (Beauvoir, 2009, 10-11, o ênfase é meu)


A cena inicial de Husbands oferece um retrato interessante sobre a dúbia relação desses homens com seus corpos. Perante uma concepção ancestral do corpo masculino, como símbolo de poder tal qual nas figurações gregas das divindades, sempre tão cheias de vigor e virilidade física, belos em suas proporções harmônicas e plenos de potência atlética, vemos Archie, Gus, Harry e Stuart celebrando seus corpos ao redor da piscina. Nestas imagens, que passam tal qual slides fotográficos ou uma revisita a um antigo álbum familiar, este grupo de homens exibe seus músculos e celebram seus corpos, orgulhosos e satisfeitos. A contradição, no entanto, é que em pouco podem se comparar com a vigorosidade juvenil ou a plenitude física: sua condição já se aproxima de uma certa decadência, os músculos contraídos apresentam flacidez e a gordura abdominal é evidente. A calvície avança por entre alguns fios grisalhos. Todos esses elementos expressam a contradição entre o ideal masculino e a realidade destes homens, mas que não é motivo de vergonha, pois possuem o privilégio da liberdade. Com isso, nada os impede de exibi-los livremente e expressar, simbolicamente, suas aptidões físicas, e, mesmo que em tom jocoso, gozar.

A resposta de Harry, Archie e Gus para a crise que lhes é imposta se posiciona entre a lógica esportiva e a bélica: necessitam superar seus inimigos particulares (o trabalho, a vida doméstica, a sociedade) e a si mesmos (a insatisfação, a tristeza, o luto) através de vitórias, ou, melhor dizendo conquistas simbólicas que afirmam a sua superioridade e a sua capacidade de dominação. Tal qual Archie diz a Harry, quando questionado sobre a sua indignação sobre aqueles que jogam para ganhar, “If you don't' play to win, why keep scoring?

Esta expressão tão tensa da vida certamente só pode ser aliviada pela amizade, pelo profundo afeto que compartilham. Em conjunto, contam com a compreensão de seus pares, conscientes das que só eles podem compartilhar. Este coletivo, como posto anteriormente por Bourdieu, facilita a expressão da carga à qual esses homens são submetidos, pois unidos podem triplicar suas capacidades de dominação, de expressão da violência e também da sua compreensão mútua. Formam assim um time ou um pelotão, daí também derivam suas inseguranças e desconfianças, advindas do medo da traição ou do abandono. Recusam sua individualidade por que nela são mais frágeis. Eis a contradição: na prisão desta parceria, encontram sua liberdade.


Texto retirado de "
Homens sob influência: a masculinidade em ‘Husbands’ (1970), de John Cassavetes" (Editora Onze Cultural, 2024) de autoria de João Piovan, resultado de sua dissertação de mestrado homônima defendida na Escola Superior de Teatro e Cinema da Politécnica de Lisboa, disponível em e-book pela Amazon.

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