Um menino sobre o muro
O Som ao Redor, de Kleber Mendonça Filho (Brasil,
2012)
Há um personagem misterioso em O Som ao Redor, sempre às margens da trama, um garoto
negro visto em posições que sugerem que ele está pronto para transpassar a
propriedade privada alheia, até o momento em que a equipe de segurança finalmente
intercede. Como muitos outros elementos do filme, o garoto surgiu direto da
história local, um jovem chamado Tiago João da Silva, que se notabilizou na
virada dos anos 2000 por assaltar apartamentos do Recife e ganhou o apelido de
Menino Aranha. Muito do que O Som ao Redorfaz
pode ser traçado de volta a esta figura a principio marginal, a começar pelo
fato de ele tanto existir na história como ao mesmo tempo ser inserido dentro
do filme como uma criatura de mito, um vulto que surge de relance num plano
numa casa vazia, como uma espécie de bicho papão em miniatura de um filme de
horror à brasileira.
Desde que O Som ao Redor começou
a circular pelos festivais brasileiros, no segundo semestre do ano passado, já
se falou muito do seu caráter ressonante e, se é verdade que possivelmente não
vemos este tipo de evento crítico desde que Cronicamente Inviável, Lavoura Arcaica e O Invasor foram
lançados em sequência no começo da década passada (desde então, nossos eventos
cinematográficos me parecem ou muito mais massificados ou restritos a um gueto
bem específico), não se falou muito de como o filme alcançou tal ressonância.
Sim, é um filme sobre o nosso contrato social, uma espécie de Casa Grande & Senzala vai a Boa Viagem nos Anos Lula,
mas não é como se fosse o único filme a tratar de tal universo com um olhar
incisivo. Do contrário, onde estariam os artigos laudatórios sobre um filme
como Os Inquilinos, do mesmo Sergio Bianchi, cujo cinismo
servira como grande válvula de escape do sentimento de fracasso nacional
durante o segundo governo Fernando Henrique, e cujo Cronicamente Inviável foi varias vezes comparado a
este O Som ao Redor em textos um tanto desastrados? Há
algo que O Som ao Redor faz que lhe é muito particular, e a
figura do Menino Aranha diz muito sobre este processo.
A pergunta inicial que orienta o filme é:
como representar um estado de relações violentas em que o modo dominante é o do
não-dito? – principalmente, num momento em que a ideia de ascensão social do
governo Lula criou em setores consideráveis da nossa classe média um sentimento
de encastelamento. Diante de tal problema, Kleber Mendonça Filho encontra
imagens que surpreendem justamente porque se revelam carregadas ao mesmo tempo
de uma força simbólica muito forte e de uma casualidade que desarma. O Som ao Redor procede em normatizar o gosto do
cinema brasileiro pela alegoria, daí uma figura como o Menino Aranha ao mesmo
tempo trazer com ela o caráter de personagem mitológico, o grande invasor, e
poder ser mostrada de forma tão natural como um moleque a levar palmadas de um
par de seguranças. É um equilíbrio que se aproxima muito de como este mesmo
não-dito domina as relações: tudo em O Som ao Redorsignifica
muito e ao mesmo tempo é esvaziado deste mesmo significado. Uma das imagens mais
felizes do filme é aquela em que acompanhamos uma empregada domestica ir até
seu quarto para trocar seu uniforme pelas suas roupas cotidianas e, naquele
momento, toda uma história de relações de poder contida naquele uniforme se
descortina sem que o filme jamais pareça sobrecarregar o momento de
sentido.
Não existem no cinema brasileiro muitos outros
casos de filmes que apresentam esta ideia de repressão social numa chave que
sugere que ela é essencialmente um dado com o qual todos convivem e há muito
internalizaram. Pode se questionar se O Som ao Redor não
padece do mal de boa parte do cinema brasileiro contemporâneo de emoldurar as
relações num excesso de bons modos derivados do “bom cinema de festivais”, e se
isso acontece em alguns momentos (por exemplo, a sequência em que Gustavo Jahn
guia Irma Brown pela antiga cidade dissipa sua força numa estetização um tanto
forçada), desta vez a ausência de agressão chega naturalmente como recorrência
do que o filme vê e não como um escape de boa arte que o filmes buscam apesar
de si mesmos.
É útil comparar a personagem de Irandhir Santos,
aqui, com o matador profissional que Paulo Miklos interpretou em O Invasor (outro filme construído sobre o medo da
classe média). Ambos se apresentam a nós como seguranças que estão ali para
garantir a proteção dos demais personagens centrais. Mas se tudo na atuação
agressiva de Miklos é transparente – não restam dúvidas que a proteção que ele
vende é contra ele mesmo, assim como nada esconde que seu desejo é justamente
tomar para si o que os dois outros protagonistas possuem –, a presença de
Santos sugere pura dissimulação. Se Miklos é um profissional do medo, Santos
chega até nós como um comerciante desse mesmo medo. Parte da sabedoria de O Som ao Redor se localiza justamente em
reconhecer que o que há de concreto no temor hoje não é o corpo de outro como
Miklos, mas toda a parafernália que supostamente nos oferece segurança. Quando
o filme finalmente abre sua mão e deixa todas suas motivações claras, e o
segurança de Santos se revela menos o invasor agressivo do que o coro histórico
que completa o contexto de toda a violência de relações apaziguadas que vimos
até ali, ele até vem acompanhado de uma carga política-histórica extra com um
pai assassinado dois dias depois da votação das Diretas Já. O verdadeiro outro
permanecia uma abstração, um vulto como o Menino Aranha ou um pesadelo
infantil, peça de ficção presente no nosso noticiário policial.
Existem dois elementos que Kleber Mendonça Filho
lança mão que muito ajudam todo este processo. O primeiro é arquitetura. “Má
arquitetura é eminentemente cinematográfica”, o realizador afirmou numa
entrevista recente, e podemos estender a noção para “má arquitetura é
essencialmente histórica”. Por vezes,O Som ao Redor sugere
uma expansão daquele momento do curta-metragem anterior de Kleber Mendonça
Filho, Recife Frio, no qual o filme revela que, com a radical
mudança de clima, um homem trocou de quartos com a doméstica porque o quarto de
empregada, acanhado e construído sem qualquer preocupação com a circulação de
ar, é o único quarto quente que restou na casa. A má arquitetura sobre a
qual O Som ao Redorse desdobra é justamente a representação
concreta do não-dito que o filme mostra.
Se todos os personagens de O Som ao Redor procuram sempre se desviar da sua
violência diária, cada um dos três apartamentos que lhes servem de locações
principais carrega neles esta mesma violência o tempo todo. A já mencionada
sequência em que a empregada troca de uniforme, por exemplo, é muito reforçada
por acompanharmos o longo e estreito trajeto que ela tem que fazer até seu
quarto, e a forma como ele explicita que, mesmo num apartamento enorme em que
sobra espaço, a última das preocupações é o espaço privado da doméstica. Cada
cômodo em O Som ao Redor, das salas de estar
aos quartos, das cozinhas às áreas de serviço, é igualmente escrutinado pela
câmera do cineasta; a cada espaço, sua função, e desta constatação surge menos
algo natural e mais a extensão da violência da mesma plantação de açúcar que
ajudou a financiar estes mesmos imóveis (as tentativas de os personagens em
parecerem cosmopolitas e fugirem da sua história só revelam mais do seu próprio
desespero). A violência arquitetônica é a única violência honesta do filme. A
feiúra do processo de urbanização, seu elemento de cena mais agressivo.
O outro elemento recorrente é o do filme de
horror. Laura Canepa, num belo artigo publicado em Interlúdio, já atentara para a forma como o filme se juntava a Os Inquilinos e Trabalhar Cansa, da
dupla Juliana Rojas e Marco Dutra, numa nova onda de filmes aparentados ao
horror que usavam recursos de gênero para tentar melhor representar um
mal-estar social. Poderíamos ainda acrescentar à lista de Canepa a forte
influência de Polanski no Meu Nome é Dindi, do
Bruno Safadi (cujo mais recente Éden também
apresenta um trabalho de câmera que às vezes sugere uma filiação de gênero), e
de forma ainda mais radical na maneira como O Fim da Picada, de
Christian Saghaard, reimagina São Paulo como um parque de diversões de horror.
O próprio Kleber Mendonça Filho faz sempre questão de mencionar O Som ao Redor e Trabalhar Cansa como
se fossem espécie de obras irmãs, e o filme de Rojas e Dutra é justamente o
único entre todos estes títulos que faz questão de explicitar sua filiação de
gênero. É uma ideia que diz bastante sobre a preferência de uma parte dos
nossos jovens cineastas pelo cinema marginal, cuja vertente mais agressiva por
vezes sugeria uma chanchada relida pelo cinema de horror, e algo que já se
revelava em vários dos curtas que a produtora paulista Paraísos Artificiais
realizou ao longo da década de 1990, cujo flerte com o gênero como forma de
amplificar uma agressividade política era sempre muito aparente.
O Som ao Redor retrabalha
o horror numa chave de menos confronto do que, por exemplo, os curtas de Paulo
Sacramento, em um tom que melhor condiz com este não-dito que domina suas
relações. Sua influência é menos os filmes de horror social de George Romero ou
os terrores rurais de Tobe Hooper e Wes Craven, em que o reprimido
frequentemente retornava com violência, mas os à primeira vista muito mais
discretos filmes de John Carpenter, uma das referencias mais fortes do filme,
rebatido diretamente na limpidez dos enquadramentos e também na cuidadosa banda
sonora, sempre pronta para ecoar essa ameaça constante. De Carpenter, surge a
ideia de que a ameaça, este outro, só pode dar as caras no terreno do não-dito
pelas vias do fora do quadro (lição que o cineasta americano absorveu dos
filmes de terror da dupla Tourneur/Lewton), ou de um corpo estranho mitológico
que não existe sob a mesma lógica da dos demais atores. Há, no filme, a
impressão constante de um desastre prestes a acontecer, a certeza de que os bons
tons que regem as relações entre seus personagens vão ser rompidos a qualquer
momento quando alguém pesar demais a mão. O Som ao Redor é
um quase thriller regido por uma frustração constante sobre
seu desejo de assumir ou não a abrasividade típica do filme de horror político.
Vendo seus prédios uniformes, é fácil pensar no arranha-céu de luxo de Terra dos Mortos, de George Romero, ou de forma ainda
mais incisiva no condomínio do Calafrios, de
David Cronenberg. A diferença é que, ao contrario destes filmes, na Recife
de O Som ao Redor a trama de contágio que rege todos
estes filmes é mantida em suspenso, enquanto todos fingem não ver a tensão que
se acumula.
Assim como, antes, Trabalhar Cansa já revisara as relações
trabalhistas por via de um supermercado assombrado, O Som ao Redor termina por se impor ele próprio
como uma história de fantasma. Só que, se o filme de Rojas e Dutra tinha um
foco bem mais fechado e ao mesmo tempo muito mais alegórico, o filme de Kleber
Mendonça Filho tenta dar conta de um processo histórico muito mais amplo e
incontornável. É um sentimento de horror que dá as caras, por exemplo, na
figura do Menino Aranha que a principio é tudo menos assustadora, mas que nossa
convenção social nos manda olhar como uma ameaça. Estamos no território do
filme de fantasma, e o que há de mais potente em O Som ao Redor é justamente a facilidade com que
ele volta da paranóia de segurança da nossas classes mais favorecidas para um
processo de violência histórica. É um ponto obvio, mas ao qual raramente se permite
insurgir de forma tão direta. O vulto do Menino Aranha é um corpo mitológico
que traz nele muitas violências passadas e cuja existência – constantemente
fora do quadro; uma ideia muito mais do que uma presença – ajuda a justificar
uma série de outras violências presentes e futuras (muitas das quais cometidas
contra nós mesmos).
O horror se revela, principalmente, nas duas
únicas sequências em que o filme rompe radicalmente com seu olhar de
observação, em que o tom menor das idas e vindas do cotidiano da rua é
infectado pela ficção e Kleber Mendonça Filho se permite abraçar por completo
uma linguagem mais agressiva: no primeiro, a viagem de volta ao engenho termina
num banho de cachoeira em que a água é substituída por um rio de sangue; e
depois, naquela que é a sequencia mais memorável de todo o filme, uma
pré-adolescente imagina sua casa aos poucos invadida por uma série de vultos
negros, não um ou dois assaltantes, mais uma verdadeira insurreição que rompe a
ordem social. São duas imagens que poderiam tranquilamente estar numa ficção
passada no século XIX, o que ajuda a reforçar a ideia que este filme tão
contemporâneo se encontra também suspenso no tempo. Em ambos estes momentos, o
que O Som ao Redor consegue, com uma clareza que a
ficção brasileira como um todo sempre teve grandes dificuldades de afirmar, é
encontrar imagens que tornam este não-dito que rege a nossa opressão social de
todos os dias um dado concreto físico, muito cruel e inescapável (não é por
coincidência ou acidente que elas pertencem a pesadelos de duas das personagens
mais simpáticas do filme, e não a tipos que o filme facilita o espectador de se
afastar). É só pelo sobrenatural que este não-dito finalmente pode retomar até
nós sem filtros, que a nossa história de violência pode finalmente se afirmar.
A arquitetura nova-rica grosseira e os sustos de filmes B podem parecer, à
primeira vista, objetos muito vulgares para carregarem um filme como este, mas
é neles que O Som ao Redor encontra sua
mais direta expressão.
por Filipe Furtado
(Texto original: http://revistacinetica.com.br/home/o-som-ao-redor-de-kleber-mendonca-filho-brasil-2012/ )
(Texto original: http://revistacinetica.com.br/home/o-som-ao-redor-de-kleber-mendonca-filho-brasil-2012/ )
HEY JOE
(Artigo sobre o cinema de Apichatpong Weerasethakul)
A história começa em 27 de setembro de 2002, na sala 1
do Estação Botafogo. Ao meio-dia. Eternamente Sua, o objeto misterioso
daquele e de todos os festivais por que passou, nos convidava a uma sessão de
hipnose. Um convite que aceitamos não se sabe exatamente como – o filme
simplesmente acontecia, e nós simplesmente íamos aonde ele indicava. Era
confirmada, de uma vez por todas, a sobrevivência do cinema para além de
qualquer constrição que a cultura visual favorecesse. A "polícia dos
signos", treinada durante décadas para que nada escapasse a seu arsenal
analítico, nada tinha a fazer diante daquela experiência que, à parcela legível
das imagens, antepunha a beleza crua e direta dos seus significantes primários.
Ao final de Eternamente Sua(Blissfully Yours,
prêmio Un Certain Regard em Cannes 2002), todos como que saídos de um sonho
bom, não podíamos mais exigir muita coisa dos filmes seguintes do festival
(arrebatamento que se repetiria dois anos mais tarde, com Mal dos Trópicos).
Apichatpong Weerasethakul: soubemos de pronto que aquele nome esquisito deveria ser "aprendido" (logo, logo alguém teria o ímpeto de lhe emprestar um apelido internacionalmente pronunciável: Joe). Ao descobrir qual filme ele havia feito antes de Eternamente Sua, a conexão com o que, para nós, fora a "cena originária" não poderia ter sido maior: o primeiro longa-metragem de Apichatpong Weerasethakul se chama Objeto Misterioso ao Meio-dia. E é um filme que, apesar da câmera volta e meia assumir uma postura de reportagem, revela-se muito mais comobricolage do espaço e do imaginário nele incrustado (há mesmo algo de um "pensamento selvagem" no cinema de Apichatpong). Como todo filme dele, inclassificável; tanto documentário como ficção-científica – e nenhuma das duas coisas. A despeito de qualquer generalização que se possa tentar, a constatação fundamental é a de que Apichatpong filma o mundo num momento que antecede a separação e a organização diferencial de seus objetos. Um mundo em que as coisas ainda não receberam nomes, transposto para uma linguagem que, corrompendo a fórmula saussuriana ("em linguagem, existem apenas diferenças"), evolui por desdiferenciação. Antes de uma estrutura estática de nomes designando coisas, pessoas, lugares e eventos, os filmes de Apichatpong trazem um presente fugidio, composto por corpos que se banham na poesia imanente do tempo. Não há narrativa possível senão através do presente bruto, antinarrativo por excelência.
É curioso que a história do que a obra desse cineasta desperta venha a ser uma história de intimidade. Ver Mal dos Trópicos cria o mais feliz dos paradoxos: de uma hora para outra, somos íntimos de um mistério. Conhecemos bem esse mistério: tão de dentro que se torna impossível transpor suas bordas. Como pode se dar isso, intimidade sem entendimento? Escrever-lhe uma carta não adiantaria, pois a experiência com Mal dos Trópicos é daquelas que não se pode partilhar nem com o autor. É muito mais uma experiência que se funda no contato direto com o sorriso do ator durante os créditos iniciais. Ele sorri olhando para nós; um sorriso tímido, mas infinitamente simpático.
A primeira parte de Mal dos Trópicos, que pode iludir o olhar com imagens relativamente conhecidas do cinema contemporâneo, não é em nada realista, não é uma abordagem objetiva a se contrapor à fábula mitopoética da segunda metade. Já está em jogo, mesmo nas passagens mais prosaicas daquela primeira parte, uma apreensão mágica do mundo (com a mesma carga naïf depois corroborada). Basta recapitular as cenas e perceber que tipo de relação o cineasta estabelece com esse espaço "não pré-estilizado": a visita à gruta, o cachorro encontrado na estrada, a cena musical com a cantora, a ida ao cinema, a sucessão de blocos narrativos mais ou menos soltos (desde um grupo de soldados achando um cadáver no meio do mato até o romance entre dois rapazes): tudo conflui para um sentimento oceânico de contigüidade total entre os seres, o tempo e o espaço.
Mal dos Trópicos foi prêmio da crítica na Mostra de São Paulo e, em maior ou menor intensidade, agradou também ao público em geral. Surpresa? Nenhuma: o contrário seria algo como não preferir vivenciar a imagem a apenas conhecê-la de vista. Seria tapar os ouvidos para aquela "canção de felicidade" que é cantada por "cada gota da alma". Seria deixar escapar por entre os olhos a chance rara de ver o mundo ser filmado enquanto está nu. E seria negar uma das maiores provas recentes da vitalidade do cinema. Dessa obra que vem se construindo de forma grandiosa, fica desde já a certeza de que dormir não é mais tão importante, pois Joe nos mostrou a possibilidade de sonhar ao meio-dia.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
(Texto original: http://www.contracampo.com.br/66/heyjoejunior.htm)
Apichatpong Weerasethakul: soubemos de pronto que aquele nome esquisito deveria ser "aprendido" (logo, logo alguém teria o ímpeto de lhe emprestar um apelido internacionalmente pronunciável: Joe). Ao descobrir qual filme ele havia feito antes de Eternamente Sua, a conexão com o que, para nós, fora a "cena originária" não poderia ter sido maior: o primeiro longa-metragem de Apichatpong Weerasethakul se chama Objeto Misterioso ao Meio-dia. E é um filme que, apesar da câmera volta e meia assumir uma postura de reportagem, revela-se muito mais comobricolage do espaço e do imaginário nele incrustado (há mesmo algo de um "pensamento selvagem" no cinema de Apichatpong). Como todo filme dele, inclassificável; tanto documentário como ficção-científica – e nenhuma das duas coisas. A despeito de qualquer generalização que se possa tentar, a constatação fundamental é a de que Apichatpong filma o mundo num momento que antecede a separação e a organização diferencial de seus objetos. Um mundo em que as coisas ainda não receberam nomes, transposto para uma linguagem que, corrompendo a fórmula saussuriana ("em linguagem, existem apenas diferenças"), evolui por desdiferenciação. Antes de uma estrutura estática de nomes designando coisas, pessoas, lugares e eventos, os filmes de Apichatpong trazem um presente fugidio, composto por corpos que se banham na poesia imanente do tempo. Não há narrativa possível senão através do presente bruto, antinarrativo por excelência.
É curioso que a história do que a obra desse cineasta desperta venha a ser uma história de intimidade. Ver Mal dos Trópicos cria o mais feliz dos paradoxos: de uma hora para outra, somos íntimos de um mistério. Conhecemos bem esse mistério: tão de dentro que se torna impossível transpor suas bordas. Como pode se dar isso, intimidade sem entendimento? Escrever-lhe uma carta não adiantaria, pois a experiência com Mal dos Trópicos é daquelas que não se pode partilhar nem com o autor. É muito mais uma experiência que se funda no contato direto com o sorriso do ator durante os créditos iniciais. Ele sorri olhando para nós; um sorriso tímido, mas infinitamente simpático.
A primeira parte de Mal dos Trópicos, que pode iludir o olhar com imagens relativamente conhecidas do cinema contemporâneo, não é em nada realista, não é uma abordagem objetiva a se contrapor à fábula mitopoética da segunda metade. Já está em jogo, mesmo nas passagens mais prosaicas daquela primeira parte, uma apreensão mágica do mundo (com a mesma carga naïf depois corroborada). Basta recapitular as cenas e perceber que tipo de relação o cineasta estabelece com esse espaço "não pré-estilizado": a visita à gruta, o cachorro encontrado na estrada, a cena musical com a cantora, a ida ao cinema, a sucessão de blocos narrativos mais ou menos soltos (desde um grupo de soldados achando um cadáver no meio do mato até o romance entre dois rapazes): tudo conflui para um sentimento oceânico de contigüidade total entre os seres, o tempo e o espaço.
Mal dos Trópicos foi prêmio da crítica na Mostra de São Paulo e, em maior ou menor intensidade, agradou também ao público em geral. Surpresa? Nenhuma: o contrário seria algo como não preferir vivenciar a imagem a apenas conhecê-la de vista. Seria tapar os ouvidos para aquela "canção de felicidade" que é cantada por "cada gota da alma". Seria deixar escapar por entre os olhos a chance rara de ver o mundo ser filmado enquanto está nu. E seria negar uma das maiores provas recentes da vitalidade do cinema. Dessa obra que vem se construindo de forma grandiosa, fica desde já a certeza de que dormir não é mais tão importante, pois Joe nos mostrou a possibilidade de sonhar ao meio-dia.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
(Texto original: http://www.contracampo.com.br/66/heyjoejunior.htm)
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