por José Oliveira
Antes de chegarmos à metade de Inherent Vice, o livro que Thomas Pynchon escreveu sobre a Los Angeles de finais dos anos sessenta e respectiva entrada nos badalados setenta, o narrador põe-se a pensar: O que seria « caminhar sobre as águas » senão a maneira bíblica de dizer surfar? Logo de rajada entramos em Big Wednesday, o filme que John Milius realizou em 1978 e que é, por muito que eu possa divagar, um dos mais belos gritos sobre a amizade acima de todas as coisas que eu já escutei, de proporções e reverberações assustadoras e permanentes até aos dias de hoje, para um sempre. Não ao fato e à gravata e aos mentirosos bons modos da chamada “vida adulta”, tudo por uma conservação dos belos estados, valores e sentimentos iniciáticos. Tudo por esses alvos leites e jardins da infância, ventres de uma Mãe, estelares olhares. Entramos logo na água e no seu movimento libertador, libertador porque perigoso, surf como promessa de totalidade, modo de ser e, como diz Matt já nas Ondas do Oeste, “Só faço surf para estar com os amigos”. Entramos e entram também rufares bélicos na banda-sonora, a rebentarem contra as ondas, a misturarem-se, a brigarem, e assim mesmo o também Nietzschiano Milius delineia uma dimensão e as forças que se degladiarão pelo resto dessa época que o filme abarca, o sagrado das relações entre os homens que se descobre íntegro pelo olhar mais catártico através desse templo à medida das mitologias gregas em que avistam as águas, e o fatal deslizar para a dor por causa do tempo que não perdoa.
Matt Johnson é um dos três amigos que pela fidelidade fizeram a sua revolução. Os outros são Leroy e Jack. E se cada um tem que descer as divinas escadas sozinho, mesmo que se bêbado, triste, podre, o que for, se cada um está sempre sozinho e se esse é o teste capital de qualquer surfista, agüentar-se à bronca sem depender de nada além de si mesmo, num dos planos mais significativos do filme os três equilibram-se e abraçam-se e amam-se em cima de uma só prancha, quais três mosqueteiros e o seu lema. E por isso, por essa consciência da dureza da existência e dessa verdade da união afetiva, eles foram de fato os grandes nomes, os reis, e aquela a singular história deles no lugar deles. O apelidado fascista Milius volve-se sempre o mais generoso e o mais sintonizado com o respeito pelo eu. E a Nietzsche não irei mais.
Primeiro as Ondas do Sul de 1962, os ventos de Santa Ana e as brisas dormentes do verão Californiano. Iremos às do Oeste no outono de 1965, naturalmente mais frio e agreste e pintado a melancólicas cores. 1968 é o ano do encontro com o Vice de Pynchon, completando ambas as obras um vasto painel sociologicamente marginal, norte e inverno, gelo, risco, solidão. Perfurá-las, às malditas, só de longe. Finalmente, ‘74, as Grandes Ondas, o vento que só pode ser o sopro de Deus. E tal cronologia serve menos para estruturar o dramatismo da grande e perene questão, essa da fugidia dança dos anos, e sim para ziguezaguearmos pelas cristas torturadoras da perdição do homem agulha no palheiro absolvido pelo desconhecido infinito buraco. No princípio, todos juntos. Guitarradas Fordianas à luz e de volta de uma fogueira, porradas igualmente vindas do taberneiro irlandês combinadas com bailes. Violência e confraternização, a história de tudo e de todos. Atitudes resolutamente humanas e absoluto. A juventude não como mera etapa rumo a um próximo nível, mas, tudo. Ainda se largam noivas na beira da estrada se os irmãos estiverem mal, parte-se a casa toda porque sim. Mas já há quem queira casamentos e divórcios e contas para pagar...
Nos outonos os amarelos acastanhados, empalidece-se. De Oeste, agruras e desertos. Pedras nos sapatos e gripanços. Alianças já se enroscaram por alheios dedos e inseparáveis amigos de outrora já se vêem à distância, demoram-se a reconhecer, trocam socos. Matt, o que já foi a estrela maior do surf já o não quer ser, assume-se um falhado, um merda, e ao invés de pegar as águas pelos cornos decide tourear carros e provocar acidentes. Elos básicos quebraram-se, filhos nasceram, uns querem crescer, outros não. Descem e sobem o templo curvados, um peso qualquer secular e moderno que sobre eles se abate. Já nem o surf parece salvar e a guerra estoura e chama-os. Tempos de Vietnam, tempos de ver descer funéreos retângulos à terra. Uns ainda tentam mais desgostosamente do que comicamente escapar às bombas, outros abrem o peito às balas. Jack vai a ela e antes dela ganha coragem sobre a prancha. Só ela ainda injeta força. Matt fica-se pelos cemitérios dos regressados. ‘68, velamentos, névoas, solidões lacustres. Drogas, hippies, misticismos. Charles Manson. E há que ser leal e ir contra vegans e karmas, nem com tudo se convive - é a mesma moral dos socos colaterais e da violência anárquica e essencial de Conan, o Bárbaro, o primeiro assalto de John Dillinger, os vôos rasantes e ofensivas por conta própria em Intruder A-6 - Um Vôo para o Inferno. Há mais do que guerras armadas para combater e um crepúsculo esvai-se definitivamente. Não dá para pensar em Big Wednesday sem pensar na cena central dos três amigos a beberem e a falarem aos de lá de baixo circundados pelas campas alinhadas, acontece logo depois de um deles ter voltado do oriente e de ter ido em primeiro lugar à praia e seguidamente encontrado mulheres desejadas em braços de outros. Cena que se inaugura em lua cheia nublada a tons azuis, negros e inevitáveis cinzas e se fecha com um caminhar cambaleante de costas em que os temas da seriedade e dos impostos voltam sem que se acredite. Poucas vezes o cinema se deixou impregnar de tamanho desamparo e perda mas ao mesmo tempo de algo que julgamos que nem a crua morte irá vencer.
Momento para vos falar de Bear, personagem tão comovente e de olhar tão cintilante, profundo, bondoso e despido como agora só me lembro do Sam the Lion que também tão fugazmente passou pelo A Última Sessão de Cinema de Bogdanovich. É ele que de adulto condensa todas as ânsias, aflições, dúvidas, contradições de todos. Ele que também todos os tempos, fluxos e estações citadas ilude. A sua impossível resolução ou equilíbrio. Ainda nos inícios dos sessenta era o veterano das ondas que no pontão fabricava as melhores pranchas e contava e se calhar até mitificava um pouco as histórias que valiam a pena. Depois rendeu-se à estabilidade e às lojas de puro comércio e brilho, luxos e esposa. Nada contra, mas contra a natureza própria poucos conseguiram ir e regressa ao habitat natural dos grãos e das gotas e já prefere os buracos escuros aos quentes dos fogões e das famílias. Acaba irônico ou orgulhoso ou conformado a admitir-se garbageman e a admirar os seus miúdos.
Porque se por ‘74 os ventos já são outros e as suas direções diversas, o templo encontra-se anacrônico, proibido e estilhaçado, os ídolos parecidos à nova década surfam sobretudo ácidos, Matt é como Bear o exemplo da contradição ambulante, da anomalia oficial, por isso só pode ousar um radical gesto final sobre declínios que ficará para sempre como a redenção dos que amaram algo imensamente mais do que é permitido pela intelligentzia e assim mesmo viram vários fogos e vários infernos. Com essas ondas terminais, céu + chama, abismos bíblicos, inauditas vociferações, uma vida inteira justificada. Ainda como no princípio alguém de boca aberta oferece o veículo mor a Matt, mas este, só desinteresse e só comoção, passa o testemunho, permite herdeiros. Ainda os três como cola, proibidas despedidas, proibidas nostalgias mesmo que sem escape, a vida é o que é e os degraus de entrada e saída ainda se agüentam de pé. Surfersrule! grafitado, pôr-do-sol queimante de até já, Wewerefriendsthat rode thewaves / The time wespent in ouryoungerdays / Wereall in fun, oh thegood times thatwehad..., elementos do mesmo ADN e do mesmo nexo. Sem rendição.
Postura hawksiana, outro “oneofours” da santíssima trindade do Cinema Americano, ir para a frente a pé ou rio acima ao jeito de cada qual mesmo sem um dedo ou com fraturas expostas, subir montanhas e trepar ondas e matar o diabo, bem visto. “A mudança não está na praia, nas rochas, nem nas ondas. Está nas pessoas”. Foi o que António Reis nos mostrou, essa cosmologia mútua, e que Milius filmou classicamente com coração de guerreiro e mãos de filigrana, num retorno à fonte primeira que representou em plena década de setenta e seus respectivos neos-qualquer coisa, uma purificação em ingênuas águas. Tudo o que Joaquim Sapinho não entendeu pelas ondas da Caparica, nesse filme todo ele falso como Judas porque assente numa fé mentirosa de alguém que nem um segundo acredita em algo superior e que por isso se refugia covardemente em esoterismos de pacotilha ou luzes pestilentas. Um olhar de uma velhinha na igreja da minha terra e a farsa de “Deste lado da Ressureição” vinha ao de cima. Questão de criação do mundo, olhar e escala conforme, sintonia em pacto mortal, honestidade. Milius como Ford. Olhos nos olhos.
(janeiro 2013)
Texto original: http://www.focorevistadecinema.com.br/FOCO5/bigwednesday.htm
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