Há quatro ou cinco momentos no Raio verde de Eric
Rohmer que ultrapassam a fatura de conjunto do filme e se inscrevem na memória
como impressões frescas e novas vindas do mundo e de sua realidade. O sucesso
“comercial” e de estimação atingido pelos filmes de Rohmer na França e no plano
internacional é o resultado da obstinação de um homem e da lógica de cineasta
neste homem. O sucesso quase constante de seus filmes vem do rigor e
inteligência com os quais o assunto é desenvolvido, examinado e distribuído
entre os personagens. O ritmo dos diálogos, da ação e dos planos, qualquer que
seja o interesse que encontremos em suas ficções ( cujo exotismo pode ser tão
manifesto quanto o de certas aventuras dos filmes de Howard Hawks) é o que
participa ativamente na materialização de um charme único que assombra o
próprio princípio das imagens ( e dos sons), muito além da composição plástica
( ou do polimento sonoro).
Um cinema tão rigoroso- e portanto consciente de si
mesmo e dos efeitos que é suscetível de produzir- não pode deixar de ver sua
trajetória um dia iluminar-se com o brilho ofuscante da certeza enfim
conquistada e do domínio ( maîtrise) enfim possuído. Há, na
história do cinema, um número impressionante de cineastas cujas “obras-primas”
são o feliz resultado de uma criação demasiado segura de si mesma para que seus
filmes suscitem uma impressão durável: talvez seja necessário buscar o cinema
em outra parte, então. O granulado de televisão e a partitura sonora do Raio
verde são consideráveis luzes no nevoeiro americanizado dos dias de hoje.
Em muitas destas “obras-primas” , que muitas vezes
não tem dificuldade em se fazer aceitas, podemos observar um traço em comum:
uma identificação implícita da soma dos meios técnicos requisitados para um
filme com a totalidade do filme a ser feito, como se (para dizer de uma forma
bastante simplista) cada parcela do conteúdo desejado pelo realizador devesse
encontrar seu exato correspondente na repartição dos diversos dóceis materiais
que seriam o quadro, a luz, a focal, a gravação do som e a direção de
atores.
Esta identificação, que postula uma perfeição de
cada instante, é uma forma de querer fazer esquecer ao espectador que este
interrompe o curso de sua vida cotidiana para ver e ouvir o que cada vez
menos podemos chamar de cinema. Está implicado, nesta equivalência entre o suporte
e a mensagem ( que é destruída, desde que o suporte não possa mais coincidir
com a mensagem, por exemplo no fraquíssimo Fedora de Billy Wilder), um desejo
secreto de afastar do filme tudo o que poderia perturbar esta harmonia: os
acidentes do suporte ou da mensagem, uma espécie de brutal penetração da tela
que restabeleceria a comunicação interdita entre a sala de cinema e a rua.
Belíssimos filmes foram e serão feitos com
este cuidado- sempre pronto a aparecer nas declarações dos diretores, de forma
raríssima em seus filmes- da perfeição. Mélo de Alain Resnais resulta desta
idéia de cinema: o domínio ( maîtrise) é utilizado para canalizar
todos os caminhos da consciência dos personagens , sem jamais sugerir uma
possível disjunção entre os personagens e os atores. Talvez esta disjunção seja
também um interdito necessário à própria consistência do cinema, ramificação do
teatro que ganhou autonomia. Neste sentido, a força de Mélo advém desta
insistência manifestada por Resnais em se dobrar à disciplina do teatro até o
ponto extremo ( ponto de usura dos ensaios, diluição progressiva e quase
natural do espaço cênico) onde o cinema vai poder, sem a inflação de sua
importância, tomar a dianteira da mensagem. Resnais foi buscar, em sua modéstia
de cineasta em relação ao teatro, a capacidade de estreitar da forma mais
envolvente a peça de Henry Bernstein, como se encenasse uma intimidante
obra-prima de Racine da qual não poderia excluir nenhum suspiro. Se ele
consegue extrair da peça mais do que esta contém, é porque a confiança que
estabelece com seus intérpretes permite projetar sua representação no espaço
minuciosamente atento e escrutador do cinema. Uma espécie de perfeição da
interpretação dos atores é atingido e fixado: o cinema, ao fixá-la, assinala o
que o separa de seu predecessor, o teatro, esta arte móvel, incontrolável e
efêmera.
Esta perfeição supõe a adequação exata dos atores
aos personagens e dos personagens aos atores, porque é preciso no cinema,
que retoma do teatro estes princípios, que o ator e o personagem façam, por
assim dizer, igual e reciprocamente caminho em direção um ao outro, até atingir
o ponto em que sejam indistinguíveis. Esta concepção de um cinema alavancado
pela dramaturgia- à qual o suporte deve se identificar até a aderência-
foi a de cineastas como Maurice Tourneur, Cecil B. DeMille ou Cukor, que não
acordam nenhuma função ao acidental. O acidental distrai e diversifica ( uma
borboleta que passa no campo acaba com o drama, em Griffith ou Renoir ela o
ilumina); o acidental ameaça a unidade do ator e do personagem, deixando ao
espectador a fadiga “suplementar” do ser humano, que não parece responder mais
ao personagem. O acidental é o ouro do pobre. Estas quatro ou cinco seqüências
do Raio verde são os momentos onde,- estando suficientemente garantida a
"armação" do filme-, a maîtrise renuncia provisoriamente a seus
direitos, a seus poderes, a sues cálculos para deixar entrar a luz do mundo,
com sua linguagem inalterável.
O Raio verde é talvez menos a realização de sucesso
de um projeto inicial de nos dar um retrato de Delphine que a busca modesta da
confrontação de uma idéia do mundo com a matéria luminosa, sonora e carnal
do mundo. A seqüência das groselhas, o passeio de Delphine entre os arbustos
agitados pelo vento, a escada de pedra sob a qual o mar vem se engolfar, a
discussão sobre o pequeno muro em torno do raio verde e do romance homônimo de
Jules Verne, são momentos onde se exprimem a poesia do mundo e a liberdade
do cinema. A identificação da mensagem e do suporte como mecânica da fabricação
de um filme é um tanto quanto ausente dos filmes de Rohmer: seu cinema tira sua
força do leve desequilíbrio que o cineasta estabelece ao submeter o suporte (
seus meios técnicos) a uma ascese que vai impedir, por seu turno,
a mensagem de se sobrepor livremente ao suporte.
Os modos de produção e a própria linguagem da
televisão, menos prestigiosos que os do cinema, menos facilmente carregados de
arte, fazem parte deste arsenal ascético sutilmente tecido e acalentado por
Rohmer. Este mesmo desequilíbrio, que faz a mensagem flutuar com o suporte,
marca também a disjunção entre ator e personagem que favorece a aparição entre
ambos do ser humano.
Por mais perfeitos que sejam os atores de Mélo-
suas performances constituem uma espécie de encantamento crepuscular
e tumular onde atores e personagens ardem e se extinguem, como se fossem
condenados a viver suas vidas até a morte, no teatro-, eles não tem, por efeito
de uma espécie de acordo tácito com seu metteur en scène, o direito
de deixar escapar esta parte de si mesmos que não é o ator, e que colocaria em
risco a perigosa materialização deste fantasma que é o personagem; esta parte
que a câmera e o microfone do cinema da perfeição não querem deixar
emergir: a inconsciência feita carne. Por mais imperfeita que possa parecer
Marie Rivière- sob os rígidos critérios do profissionalismo-, ela no entanto dá
ao personagem de Delphine um caráter de verdade que nenhuma atriz pode
pretender reconstituir unicamente por suas forças de intérprete, pois é
precisamente na disponibilidade que ela mostra em se abandonar e esquecer-se da
atriz, quando o plano ou a seqüência esperam este esquecimento e este
abandono, que Marie Rivière encontra a verdade do personagem: porque não há um
personagem preestabelecido, cujo fantasma deveria ser materializado pela atriz.
Há a vida que se organiza como que por si mesma, perto da câmera e do nagra 1,
e há Marie Rivière, jovem comum dos dias de hoje, como eram comuns as jovens em
Renoir ou os jovens em Hawks. Ela dispõe de seu tempo no tempo presente e,
confiante, espera que seus sentimentos falem: estes sofrem por longo tempo a
ascese da incerteza, que mascara de forma oportuna um caminho que a jovem
arriscaria de reconhecer e de tomar à primeira vista, perdendo assim o
benefício, para ela e para nós espectadores, de uma viagem caótica e
imprevisível.
Os maiores momentos dos filmes de Rohmer são menos
aqueles onde se desenvolve sua acuidade psicológica única ( nesta dimensão,
eles participam com efeito de uma tentação que os aproxima do cinema da
perfeição) que aqueles onde ele capta na natureza o movimento quase invisível
do mundo. Este segredo de fabricação, que talvez não consista em outra coisa
senão na transmutação de uma compreensão íntima deste mundo, reencontra certas
fórmulas dos ritmos amplos de Hawks, do documentarismo noir de Murnau ( onde
ele cruza com Straub), e da esperança mediterrânea de Rosselini.
O cinema da perfeição está hoje também abandonado:
Mélo, por ser o único, não pode exercer o peso majoritário que Providence em
seu tempo suportava injustamente. As grandes máquinas ( com exceção de Ginger e
Fred, ápice poético de Fellini), sejam abertamente coercitivas ou
hipocritamente espetaculares, postulam uma identificação com o mundo e tem por
horizonte cada vez menos secreto o apocalipse, ou seja, a dissolução total do
espectador, que hoje é apenas simbólica, e não mais a perfeição, que deixou de
ser rentável. A perfeição não é terrorista. A lista é longa de cineastas ou de
filmes , de Tarkovsky a Géode, que nos levam a admitir que o que apreciávamos
ontem em matéria de solidão convivial nas salas de cinema do bairro, - que nos
levavam a descobrir os pequenos filmes dirigidos pelos homens portadores do neologismo,
nos dias atuais ultrapassado, de cineastas- , é reencontrado hoje na Televisão,
e cada vez mais deve ser buscado por lá.
Nota:
1. Nagra: tipo de fita portátil para gravação do
som construída a partir de 1950 pelo engenheiro suíço Stefan Kudelski.
"Nagra" significa "ele vai gravar" em polonês.
Cahiers du Cinéma número 388, outubro de
1986.
Extraído do livro Poética dos autores, Escritos de
Jean-Claude Biette.
Tradução:
Luiz Soares Júnior.Texto extraído de: http://dicionariosdecinema.blogspot.com.br/2011/03/borboleta-de-griffith-por-jean-claude.html
Nenhum comentário:
Postar um comentário