sexta-feira, 6 de novembro de 2015

ENTREVISTA COM ERIC ROHMER (Primeira parte)


O Antigo e o Novo


É com um cineasta, Eric Rohmer, que queríamos há muito tempo nos ocupar. Mas para nós, nos Cahiers, trata-se antes de devolver a Eric Rohmer uma palavra que, mesmo abortada na ocasião do abandono de uma forma de escrita por outra, jamais deixou de nos guiar. Pois, ao deixar o mármore nosCahiers, ele não nos deu no celulóide suas melhores críticas? Além disso, após a mesa-redonda que precede e a entrevista que nós tivemos no mês passado com Jean-Luc Godard, o que segue deve ser lido no mesmo sentido de um esclarecimento de nossas próprias posições críticas, com ênfase na continuidade de uma linha dos Cahiers a qual Eric Rohmer e Jacques Rivette asseguraram (naquilo que tiveram de melhor) ao mesmo tempo a firme orientação e a flexibilidade (maior do que por vezes se contentaram em imaginar). O título que demos a esta entrevista ecoa tal preocupação; com ele desejamos também, trazendo à mente a conjunção mais aditiva que explicativa, sugerir que o cinema moderno na pessoa de um de seus melhores representantes se reconhece como um local no domínio instaurado por Griffith, da mesma forma que a crítica não saberia ser verdadeiramente nova sem encontrar em Maurice Schérer o segredo de uma tal novidade. E, vindo após o texto de Pier Paolo Pasolini (Le cinéma de poésie, cf. número precedente), é um tour de force teórico que conduz nesta entrevista o defensor de um cinema de prosa.

Eric Rohmer - Admiro que Pasolini possa escrever este tipo de coisa sem deixar de fazer filmes. O problema da linguagem cinematográfica me interessa muito, apesar de não saber se é um problema verdadeiro ou falso, e que ameace desviar a obra da criação em si. Como esse problema é extremamente abstrato, exige a adoção de uma atitude frente ao cinema que não é a do autor, nem tampouco a do espectador. Ela nos interdita de gozar do prazer que vai de encontro à visão do filme. Dito isto, estou de acordo com Pasolini quanto ao fato de que a linguagem cinematográfica seja na realidade um estilo. Não existe uma gramática cinematográfica, mas antes uma retórica que, ademais, por uma parte é extremamente pobre e por outra extremamente mutável.

Cahiers - O que também pode parecer igualmente interessante no ponto de vista de Pasolini é a distinção que propõe entre dois momentos do cinema: um que seria a era clássica e outro que seria a era moderna, a diferença entre elas sendo, grosso modo, que por um longo tempo o autor, o metteurenscène, empenhou-se em apagar de sua arte todos os sinais de intervenção, a suprimir-se por trás de sua obra, enquanto que agora manifesta cada vez mais sua presença.

Eric Rohmer - Neste ponto, estou em completo desacordo com Pasolini. Não creio que o cinema moderno seja necessariamente um cinema no qual se deva sentir a câmera. Acontece que atualmente há muitos filmes dos quais se sente a câmera, e antes também havia muitos, porém não creio que a distinção entre o cinema moderno e cinema clássico possa residir nesta afirmação. Não penso que o cinema moderno seja exclusivamente um “cinema de poesia” e que o cinema antigo seja somente de prosa ou de narrativa. Para mim, existe uma forma de cinema de prosa e de cinema “romanesco”, onde a poesia está presente, mas sem ser buscada de antemão: aparece por acréscimo, sem que se lhe solicite expressamente. Não sei se conseguirei me explicar sobre este ponto, na medida em que isso me obrigaria a julgar os filmes dos meus contemporâneos, o que nego-me a fazer. De todo modo, parece-me que os Cahiers por uma parte, os críticos por outra, têm uma tendência excessiva a se interessar sobretudo por esse cinema onde se nota a câmera, o autor - o que não quer dizer que este seja o único cinema de autor - em detrimento de outro cinema, o cinema de narrativa, que se considera de saída como clássico, ao passo que no meu parecer não é mais que o outro. Pasolini cita Godard e Antonioni. Também poderia citar Resnais e Varda. São cineastas bastante diversos, mas que de um certo ponto de vista podem ser colocados no mesmo saco.

Quanto àqueles que não digo que prefira a estes, mas que me parecem mais próximos daquilo que eu mesmo venho a procurar, quem são? Cineastas em que se nota a câmera, mas em que isso não é a parte essencial: é a coisa filmada que tem maior existência autônoma. Em outras palavras, interessam-se por um universo que não é de antemão um universo cinematográfico. O cinema para eles é menos um fim que um meio, enquanto que em Resnais, Godard ou Antonioni, tem-se a impressão de que o cinema se contempla a si mesmo, que os seres filmados só têm existência no interior do filme; ou do cinema em geral. Para eles, o cinema é um meio para que possamos conhecer, revelarmos os seres, enquanto que para os “modernos” o cinema seria fundamentalmente um meio de revelar o próprio cinema.

São cineastas que rodaram poucos filmes, e os quais não sei se não mudarão, se não passarão para o outro lado. Tomo seus filmes tal como são, e ademais menos os filmes por inteiro que alguns de seus momentos: certas passagens, por exemplo, de AdieuPhilippine, em particular a cena das vespas, bem como esse filme que vocês elogiaram com moderação e do qual gosto enormemente: La vie à l’envers, de Alain Jessua. Ou ainda Chabrol no que tem de melhor - porque evidentemente em Chabrol há também um lado cinéfilo, mas é um lado mistificador e que não me parece o mais profundo. As personagens de Chabrol são interessantes independentemente do fato de que são filmadas. Eis aqui um cinema que não coloca a si mesmo em primeiro plano, mas que nos propõe situações e personagens, enquanto que, no outro cinema, os personagens me parecem menos interessantes na medida em que definem antes de tudo uma concepção de cinema.

Cahiers - Talvez ambas as categorias possam confundir-se: em Bande à part se encontram personagens interessantes em si mesmos e aos quais o cineasta dá uma existência real, e, ao mesmo tempo, um cinema que se interroga a si mesmo.

Eric Rohmer - Isso pode andar de mãos dadas. Mas, precisamente, estas reflexões, eu as fiz logo após a visão Bande à part: é um mau exemplo. Bande à part é um filme extremamente comovente, onde Godard nos emociona; mas não são as personagens que nos emocionam, em absoluto. É outra coisa. As personagens como tais, a garota e os dois garotos, são interessantes apenas por sua situação dentro do filme e por suas relações com o autor. Enquanto que as personagens de Lesgodelureaux nos interessam independentemente da maneira que o autor se expressa e defende sua idéia de cinema através delas, embora elas também sejam fotogênicas.

Cahiers - Não se assiste hoje a uma espécie de evolução global na função das personagens, que cada vez menos são consideradas por si mesmas e em si mesmas, e desempenham cada vez mais o papel de pretextos, de máscaras para o autor?

Eric Rohmer - Nos filmes que cito as personagens não são pretextos. E, ademais, isto não prova nada. Falo em nome próprio, e digo que sinto mais afinidades com certos cineastas, apesar de tudo que me separa deles em outros planos. Tenho a impressão de que, cada vez mais, minha busca se orienta nesse sentido, e reivindico a modernidade da coisa. Um cinema onde a câmera é invisível pode ser um cinema moderno. O que eu gostaria de fazer é um cinema de câmera absolutamente invisível. Sempre é possível tornar a câmera menos visível. Há muito trabalho (ainda) a se fazer nesse domínio.

Moderno é ademais uma palavra um tanto gasta. Não há por que tentar ser moderno, você é se merece sê-lo. E não se deve ter medo também de não ser moderno. Não é algo que deva se converter numa obsessão.

Cahiers - Para nós, a reivindicação de uma modernidade tem um valor polêmico: os cineastas modernos são todos aqueles - incluindo os cineastas com uma larga carreira, como Renoir - que não somente deram existência ao seu mundo, mas que ao mesmo tempo redefiniram em cada ocasião o cinema em relação a si mesmos, que o orientaram a um novo sentido.

Eric Rohmer - Que sentido é esse? O que é admirável no cinema é que se pode fazer tudo, enquanto que, na música ou na pintura, há tabus, proibições. Na música, é preciso escolher se situar antes ou depois da música dodecafônica; na pintura, antes ou depois da pintura abstrata. Mas no cinema, se é necessário optar por estar antes ou depois do sonoro, essa escolha está ditada unicamente pela técnica. Todas as vezes que se tentou defender as técnicas novas, se teve razão, e a história, o tempo, justificaram essa atitude. Inversamente, cada vez que alguém tentou defender uma posição severamente estética, ainda que parecesse estar ligada a inovações técnicas, acabou sempre se equivocando, por mais inteligente que fosse. Por exemplo, André Bazin: o que há de mais contestável na sua obra é precisamente sua defesa de um novo cinema fundado sobre a profundidade de campo. Isso não se sustenta em absoluto. E o mesmo acontece em relação a um cinema que seria puramente realista. Ou ainda a um cinema que seria puramente “de poesia”; ou um cinema como o de Resnais, onde a cronologia desaparece, onde o subjetivo e o objetivo se mesclam. Abrem-se portas, mas são portas sem saída. Essas inovações não têm necessariamente posteridade. Ninguém jamais pôde dizer em que sentido o cinema poderia ir. Ocorre que cada vez que se acreditava que ia numa direção, acabava indo numa direção completamente diferente.

O que há de melhor e de verdadeiro na Nouvelle Vague é a sua contribuição técnica, tanto no que se refere à realização como à produção. É o fato de rodar filmes baratos. É algo que veio a fazer parte dos costumes e a que não se pode voltar atrás.

Cahiers - A essas inovações técnicas, que obtiveram uma posteridade honrosa, não temos que adicionar a evolução de uma técnica mais geral, como a da narração, que conheceu inúmeras variações, que fixou-se num certo número de convenções na época do reinado de Hollywood, e que agora reage contra essas convenções: a cronologia, por exemplo, não é uma técnica do mesmo modo que a câmera sobre o tripé ou o campo-contracampo e, enquanto técnica, ela não é suscetível a renovações?

Eric Rohmer - Sou favorável ao campo-contracampo e à cronologia. Não quero dizer que sempre seja necessário fazer o campo-contracampo e sempre respeitar a ordem cronológica, não penso que seja algo consubstancial ao cinema; mas, enfim, se é possível raciocinar por analogias, a narração fragmentada à Dos Passos, bem como o monólogo interior à Joyce e à Faulkner não impediram que se voltasse à maneira de narrar denominada clássica, inclusive em obras que, no fim das contas, também são modernas. Veja as pessoas que quiseram imitar Faulkner ou Dos Passos, fizeram coisas da pior espécie, isto é, do estilo Chemins de laliberté de Sartre.

Mas é preciso se resguardar do raciocínio por analogias: o romance não está agora na mesma situação do cinema. Penso que é respeitando a ordem cronológica que se irá o mais longe e que se será o mais moderno. É uma opinião puramente pessoal, não sou capaz de demonstrar sua verdade. Mas as experiências feitas na busca de um cinema não-cronológico demonstram que é um caminho pouco interessante. Observem também que a maioria dos cineastas que citei segue a ordem cronológica. Mesmo Godard não fez nada até agora de realmente não-cronológico.

Cahiers - Não é realmente quanto à cronologia que a técnica da narração evolui hoje. É antes na própria maneira de conduzir a história, de estruturar a intriga, que ela sofre as maiores mudanças: há muito mais elipses, do mesmo modo que se ignoram algumas coisas que durante muito tempo foram consideradas essenciais para destacar outras...

Eric Rohmer - Nisso estou de acordo. Ou seja, o que antes era ensinado, agora já não se ensina, e o que não se ensinava, é ensinado. Mas o cinema poético não é o mais adequado para fazê-lo; acredito que, do ponto de vista das elipses, ele seria mais tradicionalista que o outro, na medida em que mostraria sobretudo os momentos fortes da ação. O cinema poético é feito muitas vezes de morceaux de bravoure. É antes num cinema que não se pretende poético, que se pretende prosaico, onde é possível encontrar uma tentativa de romper a maneira tradicional da narração, mas de modo sub-reptício, não de um modo espetacular, sem apoderar-se de certas técnicas do romance. Quanto a este ponto eu não mudei de opinião em absoluto: creio que não seja necessário transplantar para o cinema alguns procedimentos dos romancistas. Porque é preciso que a coisa seja espontânea e chegue ao cineasta pelas próprias necessidades de sua expressão, ingenuamente, sem referência alguma.

Cahiers - Tomemos o caso de Bresson...

Eric Rohmer - Mas Bresson, eu não sei em que categoria colocá-lo. Pode-se muito bem afirmar que está acima das categorias, mas não estou seguro disto. Atualmente, inclino-me mais a colocá-lo no cinema de poesia que no cinema de narrativa. É um cineasta em que se sente a presença da câmera, mesmo na sua ausência, se me atrevo a dizer. A câmera está eclipsada, mas é o próprio eclipse que indica que poderia estar presente. Em Bresson se sente enormemente o cineasta. Creio que o que lhe interessa é a maneira de mostrar as coisas, mais que a maneira de mostrar certas coisas. Em outras palavras, o cinema é bastante um fim para ele, e não um meio.

Falemos um pouco, se quiserem, da desdramatização. Não me agrada a palavra, nem a coisa. Quando perguntavam a um cineasta dos anos 40, por exemplo Jacques Becker: “Que filme você rodaria se pudesse verdadeiramente fazê-lo com toda liberdade?”, ele respondia: “Gostaria de fazer um filme sem história”. Há muitas pessoas que partilham a mesma opinião. No entanto, eu penso que um cinema pode ser moderno e contar uma história. Não vejo por que o fato de não contar uma história seria mais moderno que o contrário. Isto talvez possa ser verdade no romance moderno, mas é preciso considerar o cinema em si mesmo. Não somente se deve esquecer o que é a literatura moderna, como é necessário também esquecer o que é o cinema, e é por este motivo que não gosto muito de falar dele. Deve-se ir adiante, sem pensar no que quer que seja. Mas há cineastas que não podem; há cineastas que gostam de refletir sobre o cinema e partir desta reflexão no momento da criação, de modo que o cinema contemple constantemente a si mesmo. Não sei em que categoria estou, não posso julgar-me, mas preferiria estar na segunda categoria, e cada vez que vejo um cinema bastante aberto ao mundo exterior, isto me seduz, talvez por considerar que atualmente o cinema não esteja demasiado aberto a esse mundo, esteja um tanto demasiadamente fechado sobre si mesmo. Seja expressamente, seja de maneira dissimulada.

Cahiers - Voltemos ao teu exemplo da cena das vespas em Rozier: seria, ao que parece, antes de tudo um momento poético...

Eric Rohmer - Sim. O que queria dizer é que, mesmo filmada de outra maneira, mesmo filmada por qualquer outro, seguiria sendo como é, igualmente poética. Isso não quer dizer que Rozier não tenha feito um trabalho de câmera muito importante, mas que deu ao espectador o sentimento de uma existência independente da cena. Pode-se distinguir um cinema de poesia de um cinema que filma a poesia. Pessoalmente, posto que realizo documentários pedagógicos, gosto bastante de filmar a poesia, embora seja uma coisa quase impossível. O cinema é um meio para se fazer descobrir a poesia, seja a poesia de um poeta, seja a poesia do mundo. Mas não é o cinema que é poético, é a coisa mostrada que o é. Em La vie à l’envers, tem-se a impressão de que a poesia está no universo mostrado muito mais que na forma com que o cineasta a mostra. O que não poderia ser dito dos filmes citados por Pasolini: neles, não é o universo que é poético, é o olhar do cineasta que o poetiza. É algo que fica bastante claro em Alphaville, que se torna fantástico tão-somente pela maneira com que Godard toma um universo banal e o faz fantástico.

Cahiers - Você pôs o dedo sobre uma definição mais séria do moderno: o cinema, hoje, é uma arte que se contempla, que se volta a si mesma. O primeiro objeto do cineasta parece ser a pergunta: o que é o cinema, o que ele teria sido até agora, o que pode ser? Esse não é o seu problema... Mas seria possível continuar fazendo cinema hoje sem se colocar este problema prévio? Seria possível conservar ou reencontrar aquela espontaneidade, aquela ingenuidade dos grandes cineastas que não se colocaram o problema do cinema, mas o do mundo?

Eric Rohmer - Não posso responder-lhes senão sobre o meu caso. Para mim, está claro que, depois que comecei a rodar regularmente, sinto cada vez menos, por um lado, a necessidade de refletir sobre o cinema, e por outro, inclusive, de freqüentar o cinema. Vou muito pouco. Talvez seja uma questão de temperamento. Não sei se disto posso tirar uma regra geral. É possível que pessoas com a mesma idéia que a minha de cinema, ao contrário, freqüentem-no enormemente.

Cahiers - Um cinema que se volta para o mundo e que não tome a si mesmo por objeto é, certamente, o cinema americano que você defendeu nosCahiers.

Eric Rohmer - Estou bem fora do jogo. A ponto de quase dizer que nem sei se um filme é americano ou não. Num certo momento, gostei muitíssimo do cinema americano, mas, atualmente, esse lado americano me interessa menos. Quando afirmo que pode existir um cinema moderno que não seja uma reflexão sobre o cinema, isso não implica que seja um cinema ingênuo. Eu distingo dois cinemas, o cinema que se toma por objeto e por fim, e aquele que toma o mundo por objeto e é um meio. Mas posso refletir perfeitamente sobre o cinema como um meio e sobre o mesmo tenho muitas idéias. Os americanos eram muito ingênuos, como sabido nunca escreveram, nunca refletiram sobre o cinema nem como meio nem como fim. Quando abordados, quase todos (com exceção talvez de Hawks, que tem certas idéias sobre o cinema como meio, porém idéias muito simples) refletiram sobre o cinema como técnica ou então sobre o mundo como objeto, nada mais. Nós podemos refletir ao mesmo tempo o cinema como meio e como fim. Parece que os choco em dizer que o cinema é um meio e não um fim.

Cahiers - Não, em absoluto.

Eric Rohmer - Dou-me conta de que os críticos freqüentemente admiram alguns dos filmes que citei, mas não sabem muito bem o que dizer deles, enquanto que cada vez que um filme toma o cinema como objeto, pode-se falar dele, fala-se muito. Quando este não é o caso, dizem coisas mais banais, mais convencionais: em poucas palavras, acaba-se por considerá-lo um bom filme clássico, o que a meu ver não é o caso.

Cahiers - Se muitos filmes hoje parecem mais complexos, mais abstratos, isso talvez ocorra porque o mundo que tentam descrever parece em si mesmo mais complexo, mais abstrato, mais indefinível. Isso talvez proceda do fato de que o mundo não pode se reduzir a um roteiro linear.

Eric Rohmer - Não estou de acordo. Vocês dirão que sou reacionário, e não somente clássico: para mim, o mundo não muda, ao menos muito pouco. O mundo sempre é o mundo, nem mais confuso nem mais claro. O que muda é a arte, a forma de abordá-lo.

Cahiers - Isso quer dizer a mesma coisa.

Eric Rohmer - O problema que nos ocupa não é o de uma consciência maior ou menor dos meios de expressão, nem da passagem de um estado ingênuo a um estado intelectual: trata-se de opor uma arte que estaria fechada sobre si mesma, que se contempla a si mesma, e uma arte que contemplaria o mundo. Mas esta contemplação do mundo pode ser distinta, ainda que o mundo não mude, na medida em que temos meios de investigação diversos. É uma coisa que aprendo todos os dias, se apenas por estar fazendo documentários escolares para a televisão: tem-se um dado e tem-se um meio, mas este meio pode fazer-nos descobrir naquele dado coisas que não conhecíamos. Não se trata do fato de que o mundo muda, trata-se de descobrir no mundo coisas distintas. O que amo nos filmes de que falei é que nos fazem descobrir coisas distintas: o que há de interessante no cinema é que é um instrumento de descoberta. E esse descobrimento pode ir extremamente longe. Observem que o mesmo ocorre com a arte: sempre é uma descoberta. Vocês me responderão que o cinema poético também é um meio de descobrimento do mundo. Talvez, mas não é isto que diziam. Esta propriedade que há em descobrir o mundo não é o que geralmente se destaca...

Cahiers - O cinema como meio de descobrir o mundo é, no limite, o cinema-verdade. Entretanto, seu itinerário está bem distante daquele do cinema-verdade.

Eric Rohmer - O cinema-verdade sempre me interessou na medida em que é uma técnica. Esta técnica, finalmente, eu não a empreguei, embora tivesse desejo de fazê-lo. Mas é preciso distinguir o que se gosta e o que se faz. Em muitos pontos, sou bastante hostil ao cinema-verdade. Sempre sonhei, eu o farei um dia provavelmente, numa obra pedagógica mais que numa obra romanesca, em deixar os intérpretes improvisarem seu texto.

A verdade que me interessou até aqui é a do espaço e do tempo: a objetividade do espaço e do tempo. Tomemos por exemplo Place de l’Etoile...: tentei reconstituir o lugar de maneira que aparecesse tal como é, pois, no cinema, freqüentemente é muito difícil dar a idéia de um espaço, de um lugar, e o que me interessa é tentar apresentar esse lugar a partir de seus elementos fragmentários. Não quis, com estes elementos, criar um lugar completamente distinto, o que fazem alguns cineastas, filmando Paris e a convertendo em Nova Iorque, bem como uma cidade de 1960 em outra do ano 2000. Pelo contrário, tenho a sensação de que é muito difícil apresentar a realidade tal como ela é, e de que a realidade tal como ela é será sempre mais bela que meu filme. Ao mesmo tempo, somente o cinema pode dar a visão da realidade tal como ela é: o olho não consegue. Portanto, o cinema é ainda mais objetivo que o olho. Trabalhei de maneira que a place de l’Etoile fosse apresentada tanto pela maneira de filmar como de narrar: a narração está a serviço do lugar, foi feita para valorizá-lo. É isto a que chamo de busca da verdade: esta verdade é a que me interessa, ao passo que talvez não seja esta verdade do espaço a que interessa ao cinema-verdade, mas uma verdade psicológica, sociológica ou etnológica: existem milhares de verdades possíveis.

Da mesma forma me interessa a duração, a objetividade da duração. Apresentar uma duração não forçosamente real, mas que exista independentemente da maneira como a mostro. Não creio que o chamado cinema clássico tenha chegado até o limite desta reconstrução e descoberta simultânea do espaço e do tempo, ele permaneceu no meio do caminho. É preciso ir mais longe e, ainda que evidentemente não se chegue, é possível chegar a uma aproximação bastante considerável.

Cahiers - Paralelamente a estas preocupações, você ainda possui as de um moralista...

Eric Rohmer - Sim, já que o que me interessa é mostrar os homens, e o homem é um ser moral. Minhas personagens não são seres puramente estéticos. Possuem uma realidade moral que me interessa tanto quanto a realidade física. No que concerne os meus Contos Morais, considero que estão compostos como numa máquina eletrônica. Na suposta idéia de “contos morais”, se coloco “conto” de um lado da máquina e a “moral” do outro, se desenvolvo tudo o que é implicado por conto e tudo o que é implicado por moral, a situação já estará praticamente estabelecida, pois não sendo um conto moral um conto de aventuras, será forçosamente uma história a meias tintas, portanto uma história de amor. Numa história de amor, há forçosamente um homem e uma mulher. Mas se há um homem e uma mulher, não é algo muito dramático: em todo caso, teria de entrar em jogo os impedimentos: a sociedade etc. Por isso, é melhor que haja três personagens: digamos um homem e duas mulheres, já que sou homem e meus contos são narrações em primeira pessoa. É assim que os temas dos Contos Morais se desprendem da própria idéia de conto moral. Uma vez encontrado o tema, pode-se deduzir o conteúdo de cada um dos seis relatos. No primeiro, a situação aparecerá em sua forma mais simples: a escolha não se projeta verdadeiramente em termos de moral, mas simplesmente de conveniência quase material. Um rapaz busca uma moça, enfada-se, encontra outra. E, dado este lado material, o tema da alimentação terá importância: será portanto uma padeira. O segundo será o mesmo tema ao inverso: o rapaz não será atraído, mas rejeitado pela garota. O terceiro, que ainda não foi rodado, é aquele em que a escolha se projetará finalmente em termos de moral, e até mesmo de religião, já que a personagem principal é católica. E assim sucessivamente. Eu poderia ter perfeitamente usado uma máquina para encontrar estes argumentos, portanto minha intervenção nas histórias não implica em nada. Os problemas a que nos referíamos jamais me incomodaram ao fazer filmes.

Cahiers - Em que medida, então, a prática do cinema modificou as tuas idéias sobre o cinema?

Eric Rohmer - Pode-se dizer que adotei a visão oposta de minhas idéias. Inclusive, pergunto-me se cheguei a ter idéias. Depois de ter pensado bem, creio que Bazin, sim, teve idéias e que nós, nós tivemos preferências. As idéias de Bazin são todas boas, seus gostos são bem discutíveis. Os juízos de Bazin não foram ratificados pela posteridade, em outras palavras não impuseram nenhum grande cineasta. Gostava de alguns que são grandes, mas não penso que o que ele disse realmente os impôs. Nós não dissemos grande coisa sobre a teoria do cinema, não fizemos mais que desenvolver as idéias de Bazin. Em troca, creio que encontramos os bons valores, e os que vieram depois de nós ratificaram nossas preferências: impomos cineastas que permaneceram e que, creio, permanecerão. Senti-me obrigado a atuar contra minhas teorias (se é que alguma vez as tive). Quais eram? O plano-seqüência, a decupagem preferivelmente à montagem. Essas teorias, em sua maioria, estavam tomadas de Bazin e de Leenhardt. Leenhardt as havia definido num artigo que se chamava À bas Ford, vive Wyler!,onde dizia que o cinema moderno é um cinema não de imagem ou de montagem, mas de planos e de decupagem. Não obstante, fiz um cinema que é fundamentalmente de montagem. Até o momento, a montagem é a parte mais importante dos meus filmes. Em última instância, eu poderia deixar de acompanhar a filmagem, mas é necessário que eu acompanhe a montagem. Por outro lado, na filmagem, cada vez me interesso mais pelo enquadramento e a fotografia, até mais que pelo plano. Creio menos no plano do que antes.

Outra idéia, que era comum a todos de minha geração: a direção de atores. Eu pensava que no cinema fosse a coisa mais importante, e sempre mantive certo apreensão neste terreno. Tinha medo de não saber dirigir os atores. Agora penso que a direção de atores é um falso problema, não existe, não há com o que se preocupar, é a coisa mais simples que há no cinema. Portanto minhas preocupações são exatamente o contrário do que eram, mas isso me parece natural.

Cahiers - Teus gostos em matéria de cinema talvez correspondam mais ao que fazes que às tuas teorias... Quais seriam as referências cinematográficas de teus filmes?

Eric Rohmer - Não tenho. Se as tivesse, acabaria provavelmente paralisado. Admiro as pessoas que podem dizer: “Pergunto-me o que Hitchcock faria em meu lugar?” Pessoalmente, não só evito a pergunta, como nem vejo sequer como poderia perguntar-me, já que não sei o que faz um Hitchcock: quando vejo um filme, não penso em absoluto na técnica, e seria incapaz de plagiar um filme. Conservo a lembrança do que se sucede, vejo momentos interessantes, um rosto que tem uma expressão extraordinária, mas a maneira com que é mostrado, não a vejo nem na primeira nem na segunda ou terceira visão, e isto não me interessa. Quando filmo algo, penso naquilo que mostro. Se eu quero mostrar essa cadeira, isso me trará alguns problemas, é possível que titubeie, mas o fato que Hitchcock ou Renoir ou Rossellini ou Murnau filmaram uma cadeira não me socorrerá. Quando fazia curtas-metragens mudos, eu certamente me inspirei em Murnau, enfim, eu acreditava que havia sido inspirado sobretudo por ele, bem como por Fritz Lang ou por Griffith: são os cineastas bem antigos, aqueles em que posso encontrar o gênio do cinema, da mesma maneira que se pode encontrar o gênio do idioma nos clássicos. Quando escrevo, poderia chegar a pensar mais em Tácito, ou em Virgílio, do que em Marcel Proust ou em Jean Paulhan. Deste ponto de vista, oponho-me bastante à maioria das pessoas dos Cahiers que, ao contrário, gostam bastante de referências.

Cahiers - E das quais se poderiam dizer, elas mesmas o disseram, que as críticas delas eram os seus primeiros filmes. Não foi este o seu caso.

Eric Rohmer - Não creio. Rodei pequenos filmes amadores ao mesmo tempo em que escrevia. Creio que todos nós nos Cahiers começamos bem rápido, senão a filmar, visto que carecíamos de meios, pelo menos a querer fazer filmes. Fazíamos crítica interessada. Não somos críticos que passaram ao cinema, mas cineastas que fizeram um pouco de crítica para começar.

Quando filmo, reflito sobre a história, sobre o tema, sobre a maneira de ser das personagens. Mas a técnica do cinema, os meios empregados, são-me ditados pelo desejo de mostrar algo. Em outras palavras, se faço planos curtos, não é porque gosto dos planos curtos mais que dos longos, é que, para aquilo que quero mostrar, o plano curto é mais interessante. Se me ocorre que só poderia mostrá-lo em planos longos, faria planos longos. Não tenho nenhuma forma a priori, isso é fato.

Cahiers - Godard dizia que existiam dois tipos de cineastas: os que queriam fazer cinema a qualquer custo, e os que queriam fazer um certo filme. Você estaria mais enquadrado no segundo. E, contudo, trabalha na televisão escolar, sobre temas de encomenda...

Eric Rohmer - Não considero em absoluto a televisão escolar como um trabalho de subsistência. Trata-se, certamente, de um campo de experiências menos livre que o cinema de autor que pretendo fazer com os meus Contos Morais. Há um lado de obra, se não imposta, ao menos circunstancial, de obra proposta. Acomodo-me muito bem. Chega a ser mesmo estimulante, quando me propõem algo, perguntar-me: “Faço, não faço?” Quando talvez nunca me tivesse ocorrido a idéia de fazê-lo.

(...)


(Declarações recolhidas ao magnetofone por Jean-Claude Biette, Jacques Bontemps e Jean-Louis Comolli.)

(CahiersduCinéma nº 172, novembro 1965, pp. 32-43+56-59. Traduzido por Felipe Medeiros e publicado na íntegra em 
http://www.focorevistadecinema.com.br/FOCO3/rohmer.htm)

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