Ensaio realizado para sessão de A Margem (1967) no Cineclube
Atalante.
Gabriel Lima de Souza Siqueira[1]
Cheguei à conclusão de que havia dois cinemas de Candeias. Um deles eram os filmes que ele fazia, com suas preocupações. Outro, eram os filmes que nós víamos. Esses dois cinemas ficavam superpostos, mas não se entrelaçavam necessariamente. Pouco nos importavam as recomendações morais. E para Candeias, o simples caminhar pela estrada, o andar a esmo, o ritmo do andar, à espera de algo vago e indeterminado, o desejo latente e sempre insatisfeito, uma pulsação de vida mínima em ambientes degradados, esse despojamento do estilo reduzido a um quase nada às vezes bressoniano (nenhuma intimidade entre Mouchette, as Rosas e as Bellas?), esses elementos não interessavam se não viessem carregados das implicações morais que ele lhes atribuía. Candeias sabe por que amamos seus filmes?[2]
A
Margem é o primeiro
longa-metragem do cineasta Ozualdo Candeias, que tem sua estreia em 18 de
dezembro de 1967 nas salas dos cinemas Cine Marabá na Avenida Ipiranga e Cine
Regência na Rua Augusta. Uma obra marcada pelo silêncio que acompanha um ruído
atmosférico sobre quatro corpos não nomeados que perambulam sem rumo, ora
próximos, ora distantes da lente que leva o olhar do espectador a campos
abertos ocupados por ruínas, casas improvisadas e fábricas desativadas. O rio
Tietê é testemunha dessas vidas operadas pela brutalidade do capitalismo, pelo
fantasma do sistema colonial ali transfigurado na presença de prédios e
multidões, que despejam em suas bordas o que não cabe, que tecem o ritmo das
margens do rio onde corpos e paisagens sobrevivem, ou, em pequenas brechas
supravivem, uma vez que ‘’a colonização (pensamos a colonização como fenômeno
de longa duração, que está hoje aí operando suas artimanhas) gera ‘’sobras
viventes’’, gentes descartáveis, que não se enquadram na lógica hiper
mercantilizada e normativa do sistema. Algumas ‘’sobras viventes’’[3]
conseguem virar sobreviventes. Outras nem isso.
A
Margem foi já
intensamente analisado, não tanto sua qualidade estética, mas sobretudo no que
diz respeito a seu contexto de produção, assim como o embate discursivo da
crítica paulista e carioca, a noção de mito e autoria colocada sobre seu
diretor, o marco do Cinema Marginal a partir de sua proposta
estética e a própria tensão entre o filme com outra obra que divide o mesmo ano
de lançamento, Deus e o Diabo na terra do sol, longa de Glauber Rocha.
Porém, proponho neste breve ensaio um exercício de análise voltado à margem
enquanto conceito territorial, onde o espacial e o corpóreo são zonas de interesses
de controle no projeto de Estado-nação a qual denominamos Brasil, e, que
aparecem no filme de forma poética e por isso política.
Pretendo
esboçar então, uma escrita pautada na possibilidade de romper com o elemento da
historiografia do cinema brasileiro, onde, se lê um filme como se seu autor o
dominasse por completo. Proponho tal exercício através de um mergulho nos
lampejos de real que compõe a ficção que Candeias costura em A Margem (1967).
De forma que se possa recolher como
lascas de tempo, os rastros que a imagem deixou na montagem da margem que
Candeias olhou, filmou e montou. Assim, lançamos as perguntas: o que tem esse
filme a nos dizer após mais de cinquenta anos de seu lançamento? Como essa obra
se apresenta como um documento poético, histórico e discursivo sobre uma São
Paulo que ainda hoje é arregimentada pela mesma lógica de exclusão e
extermínio?
BRUTALISMO E A IMAGEM COMO TESTEMUNHA
Pensemos então A margem,
primeiro a partir de um de seus eixos essenciais: a arquitetura e a produção de
periferias gerada pelo projeto de modernização que passou São Paulo a partir da
década de 1960, mesmo período em que o filme é gravado.
O
filme inicia com uma câmera que funciona como uma troca de olhares, onde somos
introduzidos aos personagens através de uma mítica presença, uma mulher que
acompanha o curso do Tietê em uma canoa. Ela figura um fantasma que espreita
constantemente os habitantes da região, o perigo de morte. Talvez Candeias ao idealizá-la
em seu filme tenha pensado no Caronte do mito grego. Mas o rio, a morte e a
canoa podem ecoar também um significado mais latente em nossa história. Se o
rio e o barco remetem a uma passagem, podem nos suscitar a própria ideia de
tempo. Afinal foi por esse mesmo rio que operários transportaram materiais que
foram utilizados na construção de São Paulo e que consequentemente geraram os entornos,
as favelas.
O rio sofre um ecocídio, o rio que ironicamente tem um nome indígena e que foi ressignificado desde a passagem de bandeirantes sobre suas águas, vive um processo de perda, tão violento e tão relacional ao mesmo processo que sofrem os corpos que vivem em sua margem. Candeias escolhe filmar este rio, escolhe fabular nele uma presença que remete a oposição de vida, e em um traveling, mostra não só a performance de seus atores, mas apresenta todo aquele cosmos distanciado do coração da cidade. Conta constantemente com não atores no fluxo da história, são crianças que brincam à beira do rio, ou passantes que ali de fato habitam. A ponte onde estão situados os atores e atrizes neste primeiro momento, é um portal da periferia para o centro, é a prova de que o centro só se mantém através do trabalho de corpos que a atravessam em direção a cidade para cumprir os mais banais dos serviços, como a personagem que diariamente sai da margem para servir café de um escritório a outro.
Da
ponte vemos a silhueta da estética brutalista que a cidade tomou em sua
arquitetura, Candeias a enquadra, a imagem ‘’vaza’’ cenários e sujeitos que
modelam múltiplas leituras sobre um tempo que alça a verticalidade, uma época
dominada pela lógica da demolição e produção. O historiador e filósofo camaronês
Achille Mbembe nos lembra que a arquitetura é uma ‘’forma de política’’[4],
logo o estar e o pertencer são questões essenciais ao refletirmos
sobre o posicionamento dos corpos no mundo, pois a arquitetura nos é política
uma vez que atende demandas de projetos que possuem intenção de dar e retirar
potência. A disputa de poder no mundo colonial e pós-colonial sempre esteve
vinculada a projetos de formação de territórios que visaram, e, ainda no
presente visam o extermínio ou a castração mental, cultural e subjetiva de
corpos, sobretudo não brancos e não masculinos, além daqueles considerados não
saudáveis, daí a construção compulsória de edifícios de controle que almejam um
‘’progresso’’: fronteiras, presídios, escritórios, megalópoles.
A terra é asfaltada para a passagem de veículos, recebe cimento, concreto e trilhos. Os rios se tornam depósitos constantes de dejetos, as florestas vêm abaixo, não sobram cosmologias ‘’outras’’, nada existe que não seja para ser esvaziado e transformado em recurso. As beiras do centro, a periferia da cidade se torna a testemunha dos que não couberam ao projeto, por isso, marginais. A imagem se manteve nesse processo como um expoente fundamental nesse conflito, assim como o cinema. O que Candeias faz em A Margem é um processo de centralizar vidas que não cabem a essa paisagem, vidas em furtividade, vidas marginais.
DA FÁBULA ÀS BORDAS DA IMAGEM
Trazer os corpos subalternos para a condição máxima de visibilidade é o outro eixo do filme, ‘’ O corpo de quem vive numa periferia como a favela revelada no filme deve ser mantido escondido. É um corpo que envergonha. Candeias vai para a direção oposta. Ele não tem a menor vergonha de mostrar o corpo de seus personagens’’[5].
Como já mencionado, acompanhamos em A Margem, quatro personagens sem nome, vale descrever ao menos de forma pontual, como seus destinos são escritos na trama. A atriz Valéria Vidal, mulher negra que naquele momento ainda não tinha intimidade com o fazer cinema, era passista de Carnaval em Rio Claro, o que explica sua performance profundamente marcada pela dança, pelo corpo e pelo olhar. Ela flerta com o personagem de Mário Benvenutti, são um casal trágico que seguimos até a primeira metade do filme, vivem em um casebre às beiras do Rio, estão sempre em movimento. Ela seduz caminhoneiros, luta se for necessário. Benvenutti é um homem cabisbaixo, vive de bicos, há uma ausência de rumo que marca ambos, perambulam[6]. Valéria é a única personagem que não vemos sair daquela região próxima ao rio. O homem interpretado por Benvenutti se desencontra da personagem de Valéria antes de conseguirem se casar, ela o aguarda de vestido até falecer. Ele, que foi levado pela polícia, é morto. Tudo é sugerido pela imagem, mais do que dito, e mesmo nos poucos diálogos proferidos, a ação remete a uma ação feita em um palco, como no teatro, mas sem que se abandone a estética dos planos proporcionados pelo cinema, enquadramentos no rosto ou planos contra-plongée, sobretudo nas filmagens com Valéria Vidal, atenuando ainda mais a qualidade de sua presença. O outro núcleo, que é interpretado
pelo ator Bentinho e a atriz Lucy Rangel, marca o segundo momento da obra,
ambos os núcleos, este e o anterior não são sumariamente separados, mas os
personagens interagem constantemente enquanto moradores da mesma margem. O
personagem de Bentinho é um homem ‘’louco’’, que carrega uma flor, e que sempre
tenta a entregar a personagem de Rangel, copeira que atravessa a ponte em
direção ao centro, personagem que sofre com abusos de empresários no trabalho,
até ser morta por uma prostituta.
Ao
encontrá-la morta, o homem caracterizado por Bentinho tem um surto, corre em
direção aos trilhos e é morto por uma locomotiva, símbolo do mesmo progresso
que esfaima as quatro vidas. A presença que vemos chegar pelo rio no início do
longa é a mesma que no pós-morte leva os quatro que acompanhamos, lentamente em
seu barco, até nossa visão ser ofuscada por uma luz.
O rio retorna então não somente como
uma menção à morte, mas tensiona o esquecimento sofridos por aqueles que coexistem
no mesmo projeto de industrialização e modernização da cidade, sendo assim não
é necessariamente um final redentor como parte da crítica comumente aponta, mas
um final que de alguma maneira traz em seu discurso a linha condutora que
amarra esses corpos ao território que pisam, além de desvelar intenções que
estão miradas sobre eles. Não se trata tanto sobre os significados que Candeias
impôs a sua obra no extra filme, mas o que o filme em si, a partir de
repertórios simbólicos e leitura crítica da realidade, pode nos exprimir.
Apesar
de Candeias não ter interesse em documentar propriamente o que filma, sua obra,
ainda que assumidamente ficcional se torna um importante documento sobre a
formação da cidade em um registro que não subestima sua história, nem busca
filmar seus atores e não atores em uma lógica voltada ao didatismo e a
paternalizarão daqueles que filma.
Bibliografia
BERNARDET, Jean-Claude. Ensaio sem
título. In: Portal Brasileiro de Cinema.
SIMAS, Luiz Antonio; RUFINO, Luiz. Fogo
no mato: a ciência encantada das macumbas. Mórula editorial, 2019.
MBEMBE, Achille. Brutalismo. São Paulo:
N-1 edições, 2022.
COSTA, Rodrigo Cazes. A margem ou a
violência estético-política dos corpos no cinema de Ozualdo Candeias. Revista
Concinnitas, v. 1, n. 20, p. 161-176, 2012.
UCHÔA, Fabio Raddi. Perambulação,
silêncio e erotismo nos filmes de Ozualdo Candeias (1967-83). 2013. Tese de
Doutorado. Universidade de São Paulo.
[6] O pesquisador Fabio Uchôa afirma que a ambiguidade gerada
pela perambulação do filme de um lugar a outro cria uma dissolução dos espaços
e movimentos. Ver: UCHÔA, Fabio Raddi. Perambulação, silêncio e erotismo nos
filmes de Ozualdo Candeias (1967-83). 2013. Tese de Doutorado. Universidade de
São Paulo.
[4] MBEMBE, Achille. Brutalismo. São Paulo: N-1 edições, 2022.
[5] COSTA, Rodrigo Cazes. A margem ou a violência
estético-política dos corpos no cinema de Ozualdo Candeias. Revista
Concinnitas, v. 1, n. 20, p. 161-176, 2012.
[1] Possui graduação em Licenciatura em Artes Visuais pela
Escola de música e Belas Artes do Paraná (2021) e mestrado em História pela
Universidade Federal do Paraná (2023). Atualmente é residente técnico do Centro
Juvenil de Artes Plásticas através do programa de pós-graduação em Gestão
Cultural da UNESPAR. Tem experiência na área de educação artística e pesquisa,
com ênfase nos seguintes temas: fotografia, arquivo, colonialidade e cinema
brasileiro.
[2] BERNARDET, Jean-Claude. Ensaio sem
título. In: Portal Brasileiro de Cinema. Disponível em: https://www.portalbrasileirodecinema.com.br/candeias/ensaios/03_01.php.
Acesso em: 05/03/2024
[3] SIMAS, Luiz Antonio; RUFINO, Luiz. Fogo no mato: a ciência
encantada das macumbas. Mórula editorial, 2019, p. 111.
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