sábado, 29 de março de 2025

Le Bonheur [As duas faces da felicidade], de Agnès Varda

por João Bénard da Costa


Le bonheur n’est pas gai
Maupassant (citado em LE PLAISIR de Max Ophuls)
LE BONHEUR [As duas faces da Felicidade no título brasileiro] só estreou em Portugal em 1970. Nesses tempos, o tempo passava muito depressa e não me lembro que o filme tenha despertado particulares fervores ou particulares favores. A censura marcelista, que o deixou passar após algumas hesitações, também aos costumes disse nada. Se hesitou foi por causa de acidentes (nudezas a mais para os padrões dela) do que por essências. Em 1970, se a memória me não falha e as minhas fontes são correctas, ninguém, em Portugal, estremeceu com LE BONHEUR.

Mas eu lembro-me perfeitamente de ter estremecido e muito quando vi LE BONHEUR, no ano da estreia (1965) em Paris. E não fui só eu. O filme teve uma aura de escândalo, embora suave e embora rapidamente desvanecida.

Ao revê-lo, agora, na preparação do Ciclo Varda, ia curioso. Seria que o filme (como tantos outros da nouvelle vague) teria envelhecido muito e eu nada ia reencontrar da minha emoção de há vinte e oito anos? Sou suspeito, bem sei. Mas o que é certo é que a revisão de LE BONHEUR me trouxe o mesmo malheur e a mesma perturbação de 1965. Fui mais (ou menos) sensível aos tiques típicos da nouvelle vague, como a mania das citações, o excesso de carga dos significados (cada pormenor acumula) e a ultra-apoiada intencionalidade de diálogos pretensamente banais. Mas esses sinais de época não tocaram no essencial. E LE BONHEUR continua a ser uma parábola moral que, por absurdo, mina a declaração proposta pelo título e o credo sustentado pelos três protagonistas: «oh, quel bonheur!». Ou seja, o filme também se podia chamar Le Malheur. Ainda bem que não se chama (já vou explicar porquê) mas não imagino espectador que possa sair feliz deste filme.

Quando mais o tempo passa – tempo do filme e tempo sobre o filme – mais o coração se nos aperta e mais a sombra ganha à luz, a morte à vida, a tristeza à alegria, a infelicidade à felicidade. LE BONHEUR é um dos filmes mais tristes que já vi. Porque a felicidade nada tem que ver com a alegria, como já ensinava Max Ophuls, pela boca de Guy de Maupassant, no último episódio de LE PLAISIR? Exactamente, não. E exactamente, não, porque, para os personagens de LE BONHEUR, felicidade e alegria são termos sinónimos. Querem ser felizes e querem ser alegres. A felicidade, para eles, é o caminho mais rápido e a solução mais natural para chegar à alegria. É a porta dourada (a inscrição do lugar com esse nome está no filme) para aceder a ela. «Je suis toute heureuse», diz Émilie (Marie-France Boyer) na sua primeira tarde de amor com François (Jean-Claude Drouot). «Quel bonheur!», responde-lhe ele. Perto do fim,Thérèse (Claire Drouot) descobre que o marido está ainda mais feliz, porque está ainda mais alegre do que era costume.

«Ça se voit?» responde-lhe ele, contentíssimo. A música de Mozart cala-se. Ouvem-se só as
cigarras e Thérèse faz-lhe a pergunta fatal: «Qu’est-ce qui te rends si content?» «Une pomme qui a poussé hors le carré». Como sempre – e como já tinha feito com Émilie quando a compara com a mulher – François recorre à natureza para explicar a sua felicidade. A felicidade e a alegria são estados naturais. «Et moi, j’aime la nature», como diz François.Todos a amavam, de resto. E a felicidade e a alegria eram – seriam – coisas tão naturais como ela. Talvez Adão e Eva, antes do pecado original, fizessem associações idênticas entre a natureza, a felicidade e alegria. De certo modo, o mundo dos pic-nics da família Drouot é o mundo do paraíso. Bilhete postal. As fotos dos acontecimentos felizes, quando o fotógrafo pede a toda a gente para rir ou sorrir. Afim de que fique gravado como todos estavam contentes. É Agnès Varda (há uma foto dessas no filme, há um pedido desses no filme, na sequência do casamento) a dizer: «Fotos de família. Olhando-as bem, vêem-se pessoas, um grupo de pessoas, à roda de uma mesa, debaixo de uma árvore. Levantam os copos e sorriem a olhar para a objectiva.Vemos a fotografia e dizemos com os nossos botões: é a felicidade. Só uma impressão. Olhamos melhor, e começamos a sentir-nos perturbados.Tanta gente. Não é possível. Há quinze pessoas na foto, velhos, mulheres, crianças. Não é possível que todos estivessem felizes ao mesmo tempo. Mas então o que é a felicidade, se todos parecem tão felizes? A aparência de felicidade já é a felicidade».


II

A aparência da felicidade. À excepção dos cinco minutos do filme que vão do momento em que François repara que a mulher já não está deitada ao lado dele até ao jantar do dia do enterro, a aparência da felicidade não abandona este filme que começa com um girassol (a flor que se volta sempre para a luz). Mozart e imagens captadas por uma câmara à mão de um jovem casal com dois filhos (um rapaz e uma rapariga) louros, saudáveis e bonitos. Instantâneo de família feliz. Um déjeuner sur l’herbe. «Quel beau dimanche».

François, Thérèse e os filhos são naturais, são alegres e são felizes. Muito naturais, muito alegres, muito felizes. Como os personagens de DÉJEUNER SUR L’HERBE, filme de Renoir, que está a passar na televisão quando regressam do primeiro domingo (e que eles não vêem) responderam com essa solução à dúvida hamletiana que aparentemente nunca tiveram. «La campagne est magnifique» diz Thérèse quando se deita nessa noite com o marido para fazerem amor, magnifique, também. Ele é carpinteiro, ela é modista. Não ouvem Mozart, música de fundo do filme e não deles. Ouvem Brassens, Dalida.Vêem filmes com Brigitte Bardot e Jeanne Moreau. VIVA MARIA, chamou-se o primeiro filme com as duas, que eles vão ver.Vivem – vivam – eles, como João, o Bom e Ana, a Boa. Como «os noivos da Torre Eiffel» do quadro de Chagall. Vivem – vivam – eles, em Fontenay.

Nasce-lhes um sobrinho, outro acontecimento feliz numa família feliz. François, que foi em trabalho até Vincennes, manda um telegrama da estação dos correios. E conhece Émilie, a menina dos correios, pálida e loura, muito loura e nada fria. Gosta mais de maçãs do que de rosas e gosta de brincar com as palavras (chatel-chateau, oh saisons). Era no verão.

As legendas falam de tentação e mistério mas aparentemente não há tentação nenhuma nem mistério nenhum para François. É sem dúvidas, e com toda a clareza, que uma tarde lhe diz «Émilie, je vous aime». E explica-lhe que nunca mente.

Não mente, de facto, quando diz à mulher que naquele sábado não pode ir ao casamento da vizinha, que tem uma cliente. E a mulher de nada suspeita quando lhe responde: «C’est triste» (é a única vez que essa palavra é dita no filme). Nessa tarde, beija pela primeira vez Émilie (beijo muito branco, muito casto). «Aime-moi» diz ela. Ele ama. Mas não deixa de amar a mulher. Nada muda, para ele. Ou se muda é porque ama mais, e não menos. Fala com a mulher de mais filhos e diz que o que mais gosta é de estarem todos juntos. Muitos malmequeres.

E segue a história com a «postière très tentante» em que ele pensa «très tendrement». Não se transformou noutro homem, é cada vez mais ele próprio. Como explica a Émilie, cada vez gosta mais da mulher. «Je l’ai connue d’abord. Je l’ai epousée». Se tivesse sido ao contrário, seria o contrário. Émilie faz melhor o amor mas Thérèse é mais «sage». Mais terna, também. Thérèse é como uma planta vivaz. Émilie como um animal selvagem. Plantas e animais são por igual naturais. E é bom para o homem não comer sempre a mesma coisa.

E a aparência de felicidade (ou a felicidade?) continua. A psicologia e a moral não intervêm. Continuam os déjeuners sur l’herbe da família, continuam as tardes de amor em casa de Émilie e as noites de amor em casa de Thérèse. Num momento,Varda monta, rápida e elipticamente, bocados de corpos nus. Corpos de homem e de mulher. É o corpo dele, são os corpos de- las. Corpos não perguntam. Dão-se. Continuam as flores, flores. As festas na aldeia. A alegria. A felicidade.

Mais um pic-nic. E Thérèse quer saber demais. Porque é que ele está tão contente, tão feliz? Ele hesita. Ela insiste. E ele conta tudo. «Je ne peux rien, tu comprends?». Nada mudou.

«Tu m’aimes?» pergunta-lhe desassossegado. E ela responde, beijando-o: «Encore plus, parce que tu es si content». Ao lado deles, cobertos por um mosquiteiro, dormem as crianças. Faz calor, faz sol. Marido e mulher despem-se e amam-se, sempre ao som de Mozart. Adormecem. A expressão de ambos é feliz, muito feliz. Corte.

O plano seguinte é das crianças que acordaram e dizem que não têm mais sono. A câmara faz uma panorâmica para a esquerda, para o sítio onde estavam os pais e Thérèse não está ao lado dele. François acorda e pergunta aos miúdos onde está a mãe. Eles não sabem. Vão
procurá-la. Mais uma brincadeira. Mas não a vêem, ninguém a viu. A luz mudou, é luz de fim de tarde, luz obscurecida e esses planos rápidos em que domingueiros respondem que por ali não passou mulher nenhuma, sempre me lembraram A CAÇA de Oliveira. Tudo prenuncia um malheur.

Mas nós, como eles, recusamo-nos a acreditar. Até que alguém grita e François corre. Nas águas do rio, o corpo morto de Thérèse, a evidência do suicídio de Thérèse.

Depois, voltam os girassóis e volta Mozart (outro Mozart). François revisita Émilie que está triste e contente ao mesmo tempo. É o Outono. E François, Émilie e os miúdos voltam aos pic-nics no campo. O sítio é diferente, Mozart é diferente, mas todos estão igualmente felizes. Mudou tudo e não mudou nada. Fim.


III

Sobre o Quinteto para Clarinete (K. 581) que se ouve durante quase todo o filme, até à morte (ou à desaparição) de Thérèse, escreveu Jean-Victor Hocquard: «É uma obra em que não há dualismo entre o instrumento solista e o acompanhamento. Apenas uma rivalidade [...]. A perfeição desta obra é a de um aboutissement, de um parachèvement.Tudo o que até aí, na música de Mozart, era apelo nostálgico, pura intensidade do canto, é levado ao cúmulo. Quão terrível deve ter sido, nos anos futuros, a queda de Mozart na noite mais escura, para que tudo isto se tivesse perdido».

No final do filme, não ouvimos mais esse Quinteto, mas outro (o K. 614) em que o que surge é a «tensão trágica que implica a luta contra o tempo nascido da oposição entre uma matéria musical, que só existe no presente, e a forma dela que só pode ser una para além do tempo, no seio de um Juízo imóvel e silencioso».

Na história do cinema, não conheço muitos exemplos de uma tão singular adequação da música ao filme, como o é a da música de Mozart a LE BONHEUR (por isso mesmo, em tempos, escolhi LE BONHEUR para um ciclo dedicado ao cinema musical).

Porque, ao contrário do que supõe muito imbecil que continua a associar Mozart e alegria, Mozart não é aqui chamado para reforçar o lado cliché da fotografia bilhete-postal, dos girassóis, das margaridas, das rosas, das maçãs ou dos pic-nics. O que essa música nos diz – duzentos anos antes de Varda – é que a felicidade, ao contrário do que pensavam os protagonistas, não é natural nem é provavelmente deste mundo e que o apelo a ela é o apelo mais terrível. Por isso, Bruno Walter dizia aos músicos que era preciso que Mozart soasse tão alegre, tão alegre, que desse vontade de chorar. Entre os dois quintetos – entre 1789 e 1791 – Mozart descobriu quase tudo o que está por trás deste filme.

Aparentemente, François tem toda a razão e a sua moral ou amoral – inocente, terrivelmente inocente – tem toda a razão lógica. Não roubou nada a ninguém. Porque não acrescentar uma felicidade a outra felicidade para uma felicidade ainda maior? Nem Émilie, nem Thérèse o contra- dizem. Ambas parecem vencidas, nas reservas que põem, pela felicidade, pela alegria dele. Só que há uma boca de incêndio ao pé dessa naturalidade. O que provavelmente Thérèse realizou, na prodigiosa elipse da sua última sesta, é que tudo ia mudar, mais nada seria igual. E não aguentou tanta felicidade ou tanta infelicidade. Por isso se matou.Talvez, nesse momento, ela tenha ouvido Mozart (Resnais dizia sentir a morte todo o tempo, porque todo o tempo se ouvia Mozart).

E se o Quinteto para Clarinete se consegue casar com as duas felicidades de François, não há música possível para a felicidade a três. E a felicidade do final, outonal e sem flores, já não é a felicidade da aliança fraterna entre instrumento solista e os instrumentos que o acompanham, mas a felicidade de quem quer persistir nela, sabendo-a já irrealizável. Depois de comerem a maçã proibida, Adão e Eva descobriram que estavam nus e tiveram medo. Perderam o paraíso. Em LE BONHEUR, François e Émilie recusam-se à nudez, ao medo e à ideia de um paraíso perdido. Mas o pic-nic final é o negativo do pic-nic inicial. E a felicidade surge, então, como a solução mais artificial. O círculo da harmonia rompeu-se. E nenhum deles, mortos ou vivos, saberá jamais explicar porquê. E o que mais perturba neste filme não é a sua falada amoralidade.

É exactamente a implacável demonstração que a moral da amoralidade é mais terrível do que a moral da moralidade. E que não devia ser assim. E que é assim.

Contra tudo o que vemos, tudo o que ouvimos (Mozart). Contra tudo o que vemos, tudo o que não vemos (a elipse da morte de Thérèse). E Mozart e esse buraco negro (a morte) são mais fortes. Muito mais fortes.

Em 1965, como em 1993, Agnès Varda fez-me perceber, menos e mais, o que era Le Malheur. Com este filme, chamado LE BONHEUR.


Texto originalmente escrito para publicação em Agnès Varda : os filmes e as fotografias (concepção e direção do catálogo: Luciana Fina). Lisboa, Cinemateca Portuguesa, 1993, p. 51-54, editado por ocasião do Ciclo “Agnès de 54 a 93”, que teve lugar na Cinemateca, em Junho de 1993. Publicado pelo site da Cinemateca Portuguesa como obituário à cineasta. Optamos por manter a grafia no português de Portugal.

quinta-feira, 27 de março de 2025

Cineclube do Atalante: As duas faces da felicidade

Neste sábado às 16h na Cinemateca de Curitiba. Sempre com entrada franca e seguido de conversa!

Sábado, 29 de março:

AS DUAS FACES DA FELICIDADE

Dirigido por Agnès Varda.

(Le bonheur, França, 1965, 80 min., drama, 14 anos.)
Com Jean-Claude Drouot, Claire Drouot, Olivier Drouot.

François, um jovem carpinteiro, vive uma vida contente e descomplicada com sua esposa Thérèse e seus dois filhos pequenos. Mas um dia ele conhece Emilie, uma funcionária nos correios locais. François decide que a vida feliz poderia ser ainda mais feliz, com consequências inesperadas.

Serviço:

CINECLUBE DO ATALANTE
“As duas faces da felicidade” (1965), de Agnès Varda
Sábado, 29/03
Às 16h
Na Cinemateca de Curitiba
(Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174 - São Francisco)
(41) 3321-3552
ENTRADA FRANCA

Realização: Coletivo Atalante


quinta-feira, 20 de março de 2025

Cineclube do Atalante: Férias de amor

Neste sábado às 16h na Cinemateca de Curitiba. Entrada franca!


Sábado, 22 de março:

FÉRIAS DE AMOR

Dirigido por Joshua Logan.

(Picnic, EUA, 1956, 114 min., drama, 14 anos.)
Com Kim Novak, William Holden, Rosalind Russell, Susan Strasberg.

Hal (William Holden) é um viajante atraente que chega a uma pequena cidade do Kansas para tentar um emprego com Alan, um rico colega de faculdade. Hal se apaixona por Madge (Kim Novak), namorada de Alan. A mãe da jovem sente que a paixão é correspondida e se desespera.

SERVIÇO:
CINECLUBE DO ATALANTE
“Férias de amor” (1956), de Joshua Logan
Sábado, 22/03
Às 16h
Na Cinemateca de Curitiba
(Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174 - São Francisco)
(41) 3321-3552
ENTRADA FRANCA

Realização: Coletivo Atalante