sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Debatendo "Nasci de uma Cegonha"


O Cinema Nômade de Tony Gatlif
(fragmentos)

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Há, no cinema de Tony Gatlif, clara influência de Alain Tanner: as duas amigas que caem na estrada, no road movie que vai do nada a lugar algum de Messidor, em que se verifica a marginalização crescente das protagonistas, remetem ao casal de Exílios, que se auto-exilam para entender os párias sociais, verdadeiros exilados com quem travam contanto durante a viagem da França à Argélia. Je suis né d’une cigogne, porém, baseia-se explicitamente em Jean-Luc Godard, o qual é homenageado quando o desempregado Otto (o onipresente Romain Duris), cansado de vender sem sucesso jornal operário, anuncia pela rua "New York Herald Tribune", citando Acossado, ou quando o crítico de cinema carimba a palavra "Deus" na fotografia de Godard (o personagem nada escreve, apenas carimba frases feitas e chavões como "filme asiático de ação" ou "filme europeu de arte" nas fotos das obras assistidas). Como em Weekend à Francesa, tem-se o deslocamento enlouquecido e não-motivados dos protagonistas – além de Otto, Louna (Rona Hartner) e Ali (Ouassini Embarek) – pela França, rompendo no caminho os códigos de conduta e as leis estruturantes, tanto da sociedade, quanto do cinema. Desse modo, enquanto Otto larga a preocupação com o emprego e com a mãe gorda que vive à frente da TV, Louna maltrata de propósito os clientes do salão de beleza onde trabalha para ser demitida (conectando-se à personagem principal de A Salamandra, de Tanner) e Ali incendeia o carro do pai, o qual o obriga a "integrar-se" ao novo país, chamando-lhe agora de Michel (porque, segundo o patriarca, todos os franceses se chamam Michel, piada recorrente durante o filme). Juntos, eles roubam carros, assaltam lojas, invadem casas para almoçar, além de arranjarem tempo para auxiliar cegonha ferida, na realidade imigrante árabe de nome Mohammed que deixou a Argélia rumo à Alemanha. 

Com Je suis né d’une cigogne, Gatlif revela fascinante ambigüidade quanto à imagem cinematográfica, pois, se a contesta, ao quebrar os mecanismos de montagem invisível do cinema clássico, como simples ilusionismo – os personagens conscientes da presença voyeurística da câmera, os jump cuts que suprimem os raccords de continuidade, animosidade de Otto com o narrador, o qual está fora da diegese do filme –, também a exalta, justamente pelo aspecto mágico que possui – a arma que Otto materializa entre um corte e outro, o desaparecimento de Louna da narrativa por insultar mestres tais quais John Ford e John Cassavetes –, em iconoclastia paródica que encontra paralelo na mulher que admite ser erro de continuidade em Viagem ao Fim do Mundo, de Fernando Coni Campos. Mas, a despeito do caráter festivo e carnavalesco, Je suis né d’une cigognereflete como poucos (Os Galhos da Árvore, de Satyajit Ray, por exemplo) o término das ideologias e das crenças modernas que fundamentaram o pensamento contestatório do Ocidente, fim simbolizado no olhar perplexo de Ali (o qual atravessa o filme lendo e recitando Marx, Lênin e Che Guevara) para os livros rasgados e amontoados na biblioteca destruída: na era pós-moderna, quando tudo se problematiza para evitar o posicionamento contra as injustiças do mundo, a solução, proposta por Gatlif, é o renascimento através do contato humano, deste apoiar-se mútuo que aponta o sexo entre Otto e Louna no ninho da cegonha.
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Paulo Ricardo de Almeida
(Revista Contracampo)

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