sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Debatendo "O Beijo Amargo"


Crítica sobre “O Beijo Amargo” de Samuel Fuller, 1964.
(fragmento)

(...)

Uma das seqüências que consegue resumir de forma bastante expressiva esse admirável – como se todos os demais igualmente não o fossem – filme de Samuel Fuller  é antecedida por um estranho momento no qual Kelly e as crianças cantam uma canção que parece funcionar como um oráculo de que, mesmo dentro de uma aparente harmonia, as coisas não estariam todas em seu devido lugar. Nela Fuller consegue ser mais brutal que na apresentação, mas guardando, ao mesmo tempo, uma inusitada tangente poética. Após fixar a câmera no rosto da personagem e destacar de forma mais que expressiva em poucos segundos toda a queda de uma vida de esperança, Fuller registra, como em flashes que simulam reproduzir a sensação de um choque, as palavras que parecem praticamente causar uma espécie de morte em Kelly e que a fazem retomar, de forma ainda mais radical, o seu ato da seqüência inicial. Após sobreposição do vestido de noiva – símbolo da quase materialização dos sonhos de Kelly – à figura de um cadáver – que marcará uma nova derrocada para a personagem – vemos o vestido retornar, amarfanhado, à sua caixa, assim como Kelly, semi-catatônica, configurada então como figura trágica que não pode fugir a seu destino.

Em O Beijo Amargo temos Samuel Fuller trabalhando uma curiosa mistura de filme noir e melodrama rasgado para, muito à maneira do que fizera Douglas Sirk durante a década anterior, utilizar-se do melodrama para criticar o que ocultava a hipocrisia da sociedade americana. Fuller, no entanto, como sempre foi de seu feitio, é muito mais direto e menos sutil. As metáforas ficam pelas deliciosas ironias de tratar o mercado do sexo como o da venda de "champanhes" ou "bombons". Mas, no fundo, Fuller faz da pacata Grantsville – e essa cidade serve como um modelo para o qual David Lynch regressaria décadas depois com Veludo Azul ou Twin Peaks – um microcosmo para uma América ideal na qual as sujeiras parecem estar sempre ocultas para baixo do tapete.

A visão extremamente corajosa do diretor caracteriza-se principalmente, numa época na qual ainda inocentemente acreditava-se na realização do tão decantado "american dream", em mostrar que para Kelly esse sonho nunca chegaria, não pelo fato de que ela, por sua trajetória, estivesse distante dele, mas por que tal sonho simplesmente não existiria. Não deixa, inclusive, de mostrar o cinema como um eterno propagador desse sonho falido, como vemos nos momentos em que Grant e Kelly assistem a imagens filmadas em Veneza. E mais, apresenta o destino de Kelly como partilhado, de uma forma ou de outra, pela grande totalidade das mulheres, sujeitas a tê-lo traçado pelas figuras masculinas. Curioso ver que em O Beijo Amargo a única figura feminina detentora de alguma espécie de poder, a cafetina Candy, reproduz os códigos de dominação masculina. Para um cineasta que não poucas vezes foi taxado como "misógino", temos aí um filme com uma visão, mesmo que bastante particular, inequivocamente feminista, com uma protagonista que sempre, de alguma maneira, busca, trafegando quase sempre em contramão, manter o controle das rédeas de sua existência.

Gilberto Silva Jr.
(Texto na íntegra: 
http://www.contracampo.com.br/77/dvdvhsobeijoamargo.htm)

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